“Mas é a observação atenta de pequenos cacos, fiapos, pequenas lascas e pequenos restos que torna possível reconstruir, nos milênios, a história das civilizações. O desenho industrial e a arquitetura de um país baseados sobre o nada são nada. Num país que, sobre uma pseudo-arquitetura mais especulação-da-construção, sobre um pseudo-industrial design, desfralda um pressuposto ingresso no convívio das grandes nações, essas notas querem ser um repensamento, não apenas para quem conhece o caminho, mas também para quem, em boa fé, pensou que o caminho aparentemente mais fácil fosse o caminho válido.”
Lina Bo Bardi, “Por que o Nordeste?” (1963) em Tempos de Grossura: o design no impasse.
“Percebemos uma linha torta do design: Bauhaus Imaginista, Internacional Situacionista, design tropicalista, design encarnado na multidão”.
Bárbara Szaniecki (tese de doutorado, 2010)
A tese de doutorado de Bárbara Szaniecki, agora transformada em livro, é uma defesa apaixonada do que seria uma linha torta ou caminho errante, do design – de certa forma antecipada por Lina Bo Bardi e antes dela, no Brasil, pelos artistas antropófagos e depois dela, pelos tropicalistas – uma busca do que seria um design encarnado, monstruoso, nômade, uma história do design a contrapelo (Benjamin) aberta a outros designs possíveis, ou seja, a defesa de um campo ampliado do design que se afirma como uma ciência “menor” ou nômade, molecular ou máquina de guerra (Deleuze/Guattari), des-utópica (Negri) ou, ainda, uma afirmação do campo ampliado do design como um “gai savoir” (Didi-Huberman via Bataille). Um alegre saber do design, torto ou “menor” – construído pela ou a partir das minorias, como Deleuze/Guattari escrevem a partir de Kafka: “uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” – e, sobretudo, encarnado.
O design encarnado, proposto por Bárbara Szaniecki, se aproxima muito do que defendo com a ideia de urbanismo incorporado (Elogio aos errantes), apesar de buscarmos traçar as linhas tortas ou marginais de campos de conhecimento tidos como distintos (design e urbanismo), as pistas seguidas – cacos, fiapos, pequenas lascas e pequenos restos, como diz Lina Bo Bardi – parecem bem próximas (o que também aproxima os próprios campos) e se encontram nas práticas populares, coletivas ou anônimas dos espaços urbanos. Táticas desviacionistas (De Certeau) ou profanatórias (Agamben), como aquelas usadas pelos construtores informais das favelas brasileiras: gênio anônimo coletivo (Hélio Oiticica), homens lentos (Milton Santos), sujeitos corporificados (Ana Clara Torres Ribeiro), praticantes ordinários que criam, modificam e transformam, no cotidiano, outros usos e novas possibilidades alegres e tortas de apropriação dos espaços e objetos. Trata-se da linha desviante das micro-resistências, das sobrevivências e coexistências não pacificadas, o caminho errante ou linha de fuga das gambiarras, dos devires-galinha caipira, cão mulato ou gato pardo, só para usar alguns dos termos usados pela autora, que explica: “para persistir nesse mundo-cão, precisamos criar, inventar, gerar outros mundos-gatos”.
Para construir as bases iniciais desta linha torta a autora cria ou se apropria de uma multidão de conceitos, noções e termos, todo um novo léxico é construído ao longo do texto: monstruação, multiformances, plataformas, commons, disforme, dentre vários outros. As ideias se multiplicam, o argumento central se desdobra na multidão conceitual que abre, a cada momento, novas linhas de fuga, desvios, desterritorializações... As ideias não seguem uma linearidade, elas vão e vem, parecem dar voltas, escapam, mas se articulam, “precariamente”, por platôs em contínua variação. Vários monstros surgem e conduzem erraticamente o leitor. Sim, outras monstruações são possíveis. Algumas ideias do livro anterior da autora (Estética da Multidão) também ressurgem, atualizadas. Várias pistas aparecem de forma fugidia, não são seguidas ou são deixadas, como rastros, ao longo do caminho errante, tortuoso, do texto. Algumas intuições mais livres da autora nos deixam com um gosto de “quero mais”. São inúmeros devires-outros, devires-desvios que nos sugerem um devir-menor da multidão, ou devir-micro, como indica a resposta de Deleuze a Negri citada no texto: “Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempo, mesmo de superfície ou volume reduzidos”. Micro-multidões que articulam singularidades menores, dissonantes, na esfera pública. Diante do momento atual de mega-eventos (e mega-manifestações), pensar o micro, o “menor”, o pequeno acontecimento dissensual é fundamental, urgente e, como sabemos, não se trata de uma simples diferença de escala, mas de uma diferença fundamental de forma de pensar e de estar no mundo. E mais do que uma forma de estar no mundo, o que a autora nos propõe são outras formas de produzir, de criar, de inventar mundos outros.
A linha torta que aparece nas brechas do campo do design e da sua articulação com o campo da arte desviam das práticas do design mais racional e racionalizante ainda hegemônico ou “maior”, são contrapontos críticos que surgem como micro-resistências potentes, insistentes e propositivas. Como diz a própria autora: “Ao desenho de um mundo hierarquizado contrapomos um design encarnado na multidão como desejo de outros monstros possíveis.” O presente livro mostra de forma veemente e, por vezes, quase de um manifesto, que outros tipos de design são possíveis e que estes emergem, horizontais e coletivos, contra o design hegemônico, empresarial e mercantil (em particular hoje da dita economia ou indústria criativa). Contudo, estes outros tipos de design não podem nem devem ser confundidos, por sua potência política e de resistência crítica, com uma forma mais tradicional de design militante, engajado e, menos ainda, com um design holístico (Bruce Mau). São outros designs experimentais, desejantes e dissensuais, onde estética e política são indissociáveis, um tipo de design encarnado na multidão em seu devir-menor. Como o urbanismo incorporado (que seria seu maior aliado nas questões urbanas), o design encarnado também operaria pelo princípio da montagem (Didi-Huberman via Warburg/Benjamin) compreendida tanto como uma ação (micro) política quanto como uma outra forma de conhecimento crítico que, ao reunir narrativas e imagens distintas, dissonantes, paradoxais e, a partir do choque e do conflito entre elas, seria capaz de tensionar, desestabilizar e, assim, desterritorializar a linha reta, ou o caminho hegemônico, do design.
nota
NE – A presente resenha está publicada no livro como apresentação.
sobre a autora
Paola Berenstein Jacques é arquiteta-urbanista, professora da faculdade de arquitetura e do programa de pós graduação em arquitetura e urbanismo da UFBA, coordena o grupo de pesquisa laboratório urbano, a plataforma de ações Corpocidade e edita a revista Redobra.