O livro tem nos novos espaços públicos da área metropolitana de Lima seu principal foco de interesse. Ao contrário do habitual, o autor não parte de princípios teóricos e tipológicos que dominam a pesquisa da cidade ocidental do primeiro mundo: pelo contrário, Wiley Ludeña (1) recupera e divulga uma realidade não sistematizada de uma série de espaços públicos inviabilizados pela pesquisa urbana latino-americana. Desta maneira, o livro permite uma leitura que revela aspectos comuns da cidade latino-americana, assim como dos aspectos específicos de uma das metrópoles mais complexas do continente.
O texto é resultado de uma investigação livre, não associada a nenhuma instituição governamental, baseada na experiência do autor como docente universitário e consultor do Serviço de Parques de Lima, assim como no amadurecimento de suas ideias ao longo de suas pesquisas e publicações na área do Urbanismo.
Com o uso de metodologia própria e original e registro fotográfico impecável, o autor analisa diferentes tipologias e contextos espaciais da capital peruana com grande entusiasmo sobre a vida urbana, seus espaços e lugares de vivência coletiva, de reconquista e reconstrução de espaços cotidianos. Essas áreas não edificadas tão diversas vêm atraindo a atenção de estudiosos de diferentes campos do conhecimento pela importância de suas dimensões não apenas espacial, mas também social, cultural e política. A partir de novos insumos, o autor revela uma outra compreensão do que sejam áreas livres, embasada simplesmente na noção de que essas são e devem ser espaços públicos de interesse fundamental para a vida coletiva, com o devido cuidado de não se tornarem espaços de representação e encenação de uma sociedade do espetáculo, que encontra ressonância em muitas intervenções locais.
A primeira parte do livro apresenta os domínios e conceitos de base para o termo espaço público. Para o autor, a noção de espaço público é problemática, complexa e também difusa e polissêmica, em permanente mutação e interação com a noção de espaço privado, o que revela sua preocupação com a identificação dos limites e extensões de ambos os termos. Assim, o espaço público pode compreender um território maior e agregar áreas livres diferentes, superfícies de água e edifícios de interesse público, para além de seu substrato estritamente normativo. Como o autor explica, “Esta noção de espaço público associado com a de ‘espaço livre’ é tributária da identificação histórica e da extrapolação do público/privado ao coletivo/individual e ao aberto/fechado” (p. 34). Para o estudo da cidade de Lima, o autor realizou uma pesquisa histórica onde identificou uma lacuna de informações precisas, mapas ou estatísticas oficiais, o que trouxe enorme prejuízo para a valorização e preservação dos espaços públicos e, sobretudo, verdes. Esses resultam para Lima em um conjunto de espaços hiperfragmentados, não planejados, residuais e marginalizados na sua localização e na relação com o habitante. Daí a importância desse estudo para a análise das intervenções que estão em curso na cidade em prol da melhoria da qualidade da vida urbana.
A segunda parte do livro trata de relacionar os fundamentos para a formação de novos espaços públicos em Lima. O autor delimita nessa parte o que é o objeto de suas análises, quais são seus componentes e onde se localizam, e isso inclui espaços de uso consagradamente público, formais ou informais, dentro da cidade planejada, intermediária ou periférica, incluídos ou não na mancha urbana, a partir da estimativa de que 70% do solo urbanizado de Lima é ocupado por uma cidade construída de maneira informal e precária em sua constituição urbanística e popularmente edificada. Metodologicamente, o autor apresenta um esquema analítico que combina tanto o critério morfológico (linha, ponto) com o critério de movimento e capacidade de irradiação e atração (fluxo, nó), o que remete a uma resignificação da metodologia antológica de Kevin Lynch dos anos 1960, para se entender o que estrutura o espaço urbano e a vida das pessoas. O autor destaca o centro histórico da cidade, objeto de importantes intervenções desde o século XIX, e que hoje, além de ser objeto de afeição, atrai uma população flutuante diária de 2 milhões de pessoas, dos 7,5 milhões de habitantes da capital e região metropolitana Lima-Callao.
A terceira parte apresenta as análises e estimativas sobre s espaços públicos da cidade de Lima traçando um perfil atual e com vistas a projeções futuras. Essa é uma parte analítica significativa onde são apresentadas tabelas e quadros que identificam numericamente os diferentes espaços públicos das diversas localidades metropolitanas como: os pavimentados (passeios, praças, átrios); os verdes (jardins, parques, vegetação silvestre); os de superfície líquida (espelhos d’água, fontes) e os de feição interiorizada (hortas, terraços). Ludeña mapeou cada espaço-base a partir de registro cartográfico existente e os articulou com dados de inventários e questionários disponibilizados pela prefeitura. No total são dezessete tipos de espaços analisados e quantificados, que traduzimos, por aproximação, como: ruas e ruas de pedestres; escadas; calçadas; canteiros centrais; praças; largos; quadras esportivas; calçadões; alamedas; parques lineares; parques públicos; parques residenciais; parques temáticos; parques metropolitanos; parques distritais; parques naturais e/ou baldios e superfícies líquidas.
A quarta parte analisa o contexto histórico de carências e desafios, identificando o que permaneceu e o que tem mudado ao longo dos últimos 30 anos nas administrações municipais. Essa é a parte mais densa do livro, onde são apresentados os resultados das análises em conjunto com uma recapitulação de fatos históricos e acepções conceituais. O autor recupera a origem do esvaziamento dos espaços públicos na capital durante os anos 1980, tempos de terrorismo e de crise econômica, e o renascimento eufórico desses espaços na década seguinte, quando houve uma retomada de investimentos e melhoria da qualidade da vida urbana. Entretanto, há atualmente sinais de descontentamento pela degradação e pela redução da quantidade e qualidade dos espaços públicos, devido (nas palavras do autor, e que não se referem apenas à realidade local ou latino-americana), “ao fenômeno irrefutável, da perda e erosão sistemática do valor do público em contraste com a sobrevalorização dos interesses privados sobre o bem comum” (p. 129).
O autor identifica ainda nesse capítulo os efeitos do capitalismo avançado para a consolidação de um mercado imobiliário que faz acelerar caótica e excludentemente a expansão suburbana, sem conexão com a cidade preexistente, um urbanismo “fashion” de primeiro mundo que convive com estruturas da extensa cidade marginal – um “urbanismo espontâneo”, com seu “paisagismo espontâneo”. Junto com mapas analíticos dos espaços públicos da capital peruana, formais e informais, o autor aponta a complexidade do intenso processo de expansão vivido, onde as necessidades e desejos dos habitantes mudam constantemente e surgem novas problemáticas que nem o Estado nem os profissionais têm sabido entender, processar ou intervir (p. 161).
O baixo índice de espaços verdes por habitante, em torno de 2.82m2/hab, índice que só se eleva nas áreas centrais, colabora na configuração em que se percebem várias cidades (centro colonial, neobarroco, moderno e popular) numa mesma cidade, a partir de fundamentos sociais e morfológicos distintos. Entretanto, como senso comum, grande parte das intervenções realizadas se baseia em uma tendência de “ideologia do urbanismo seco” e uma “ideologia do verde artístico”, que são reproduzidas em muitos projetos, mas que podem e devem ser subvertidas em nome de uma conurbação que se estende por 400 km de costa marítima expandindo a originalmente quase desértica área metropolitana.
É portanto urgente pensar com espírito crítico os espaços públicos em quantidade e qualidade para o futuro da “sociedade tardocapitalista, posmoderna e globalizada”. Wiley Ludeña conclui “afirmando que a única condição possível para aprender sobre democracia, tolerância, respeito à diferença e convivência com a pluralidade, significa ser autênticos cidadãos, é seguir vivendo na cidade. E cidade sem espaços públicos não é cidade” (p. 221).
Em forma de um anexo (elaborado pelos arquitetos Anna Zucchetti e José García Calderón, a convite do autor) o dossiê de obras e projetos da atual gestão municipal, que se conclui em 2014, apresenta uma série de intervenções que vão desde a recuperação da estrutura ecológica do território urbano à construção de novas escadarias, passando pela construção de parques, a criação de um sistema de áreas verdes e de acessibilidade universal em bairros. O dossiê é também ricamente ilustrado com mapas, fotos e simulação gráfica das intervenções que ainda estão em curso e complementa o minucioso trabalho analítico do autor, com dados da atual administração.
O livro, como um todo bem acabado, possibilita o conhecimento da prática de projetos em uma capital sul-americana que muito se aproxima em termos sociais, espaciais e simbólicos com as nossas cidades. Além disso, abordar o tema dos espaços públicos é oportuno para a reflexão, sobretudo nesse momento brasileiro de muitas intervenções arquitetônicas e urbanas de grande porte, na quais parece que o espaço público vem sendo tratado como mero coadjuvante.
nota
1
Wiley Ludeña Urquizo, autor do livro, é arquiteto, mestre e doutor em Habitação e Urbanismo (Universidade Técnica Hamburgo-Harburgo). É professor universitário em Lima e já foi professor visitante na Alemanha, Chile, Argentina e Brasil. Destacam-se dentre seus livros publicados Arquitectura. Repensando a Vitruvio y la tradición occidental, Mario Vargas Llosa. Ciudad, arquitectura y paisaje, Ideas y arquitectura en El Perú del Siglo XIX e Lima. Historia y urbanismo (3vol).
sobre os autores
Lilian Fessler Vaz é professora Associada no Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB/FAU/UFRJ).
Antonio Colchete Filho é professor Associado no Programa de Pós-graduação em Ambiente Construído da Universidade Federal de Juiz de Fora (PROAC/FENG/UFJF).