Como se estruturou a prática do patrimônio cultural no Brasil? O patrimônio se constitui em um campo de conhecimento autônomo e seus elementos constitutivos são decorrências naturais de eleição por toda a sociedade? Ou, os bens patrimoniais são decorrentes de escolha deliberada de grupos de interesse específicos que os naturalizam como de interesse geral de toda sociedade e do estado?
A discussão dessas questões perpassa todo o livro “Os arquitetos da memória”, lançado pela Editora UFRJ, em 2009. De autoria da historiadora Márcia Regina Romeiro Chuva, funcionária do Iphan e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o livro tem como subtítulo e como objetivo traçar a “sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural do Brasil (Anos 1930 – 1940).” Segundo a própria autora, o trabalho “enfatiza o momento fundador das práticas de preservação cultural no Brasil, sem deixar de tangenciar a ampla gama de questões que se colocaram para esse campo com a formulação de políticas públicas que visam a patrimonialização de manifestações culturais de natureza imaterial” (p. 29).
O texto é eficiente para o objetivo proposto: colocar em evidência o papel do patrimônio (o papel da dimensão cultural) na estratégia de construção da noção do estado brasileiro, na perspectiva teórica de Antonio Gramsci e Norbert Elias, e na contramão de grande maioria de trabalhos da área que tendem a enaltecer virtudes de certas figuras consensuais e certo heroísmo de grupo. Auxiliada ainda pelas teorias de sociólogos, historiadores e antropólogos como Pierre Nora, Dominique Poulot, Eric Hobsbawn, Maurice Halbwachs, Pierre Bourdieu, Chuva se propõe revelar como o poder simbólico é constituído e exercido a partir de grupos e de idéias.
O tom adotado pela critica da autora oscila entre a abordagem de Hobsbawn e de Bourdieu relativas à invenção da tradição e ao campo patrimonial. Segundo Chuva, a abordagem de Hobsbawn quando trata de invenção das tradições no processo de construção dos estados nacionais modernos implica certo reducionista por entender que quando o autor utiliza a expressão inculcar valores “leva a uma possível redução desse processo a um projeto consciente de manipulação dos cidadãos por um grupo ou pelo estado, justamente porque atrela à noção de invenção uma concepção de ideologia como falseamento ou mascaramento da realidade.” (p.47). Como contraponto a autora indica a abordagem de Bourdieu implícita no conceito de habitus a qual apresenta uma “perspectiva de uma reflexão que privilegia as capacidades inventivas dos agentes como parte integrante do tecido social, dando conta da idéia de “invenção” como criação e/ou apropriação, pertencente, assim, à própria dinâmica social, que coloca em movimento inúmeras relações, em meio a diferentes interesses em jogo. Poderíamos perguntar se, ampliando a abordagem de Bourdieu, o campo patrimonial não seria, como no clássico conceito de campo do autor, constituído e constituinte, produto e produtor - ou seja dialeticamente exerceria um papel de fixação de uma certa tradição e ao mesmo tempo potencializaria o seu questionamento, ampliação e inovação.
Baseada nas teorias das áreas das ciências sociais e em sua experiência profissional na gestão do patrimônio a autora mergulha fundo na pesquisa junto ao amplo acervo do Arquivo Central do Iphan, no Rio de Janeiro. Ali analisa os mais diversos tipos de fontes como correspondências, ofícios, informações técnicas, pareces, vistorias e relatórios de obras, orçamentos, recibos, contratos, fotografias, detalhando a rotina da instituição, na busca de seu sentido constitutivo.
Fruto de revisão de tese de doutoramento em História na UFRJ, o livro, que tem Prefácio curto e preciso de Antônio Carlos de Souza Lima, do Departamento de Antropologia da própria UFRJ, é estruturado em três partes principais. Na primeira parte (Capítulos 1, 2 e 3) a autora analisa as estratégias de construção da idéia de nação no Brasil e a relação entre a formulação do estado e o patrimônio cultural; essa análise se desdobra verificando a relação entre os intelectuais e o Estado brasileiro nas décadas de 1930 e 1940; enfatiza o papel de um certo grupo (uma rede de interesses) na eleição de pontos e princípios que irão constituir o núcleo central, a base discursiva e operacional para a prática patrimonial no País: a síntese modernidade e a tradição, a crença na universalidade da cultura e da arte, a eleição do barroco brasileiro como núcleo primordial e carro chefe da idéia de patrimônio. A análise dessa primeira parte é concluída com a descrição e análise da forma como se preparou e consolidou a proteção patrimonial institucionalizada: os projetos de lei que antecederam o anteprojeto de Mário de Andrade e o cânone fundador, a doxa, o Decreto Lei 25/1937, além das legislações complementares que formaram o corpus da “musealização” do patrimônio histórico e artístico nacional.
A segunda parte – e sem dúvida a mais curiosa e instigante – constituída dos Capítulos 4, 5 e 6, trata da operacionalização da prática do patrimônio e suas instâncias de reprodução de valores e de debate intelectual. No Cap. 4 é detalhada a forma como se deu a profissionalização do “arquiteto do patrimônio” (em detrimento do “historiador do patrimônio” como parece lamentar a autora...), a constituição e o papel do Conselho Consultivo do Sphan. A relação entre proprietários particulares de bens patrimoniais (principalmente a igreja católica) e o Conselho são vivamente detalhados com dados reveladores do modus operandi da instituição e a visão de segmentos da sociedade sobre o assunto. Considerada o alicerce teórico e de comunicação do campo, a política editorial da instituição é delineada na análise da Revista do Sphan onde discussões giravam em torno do que era entendido como “civilização material” no Brasil. A constituição de redes de relação, com compromissos, fidelidade e negociação é revelada a partir da análise da rotinização dos serviços do patrimônio, sendo a área técnica administrativa da instituição o ambiente escolhido pela autora para ilustrar aquelas práticas. Tudo com ampla informação documental e detalhes.
Os argumentos das Conclusões, que diante do laborioso e amplo trabalho de pesquisa, sistematização e consolidação dos capítulos anteriores – e talvez por isso -, parecem um pouco caudatários e exauridos, deixando no leitor certa sensação de frustração e um desejo de um maior desenvolvimento e elaboração. A frase final do texto é reveladora dessa exaustão e formalidade: “Consagrados os vestígios da nação e legitimadas as formas adequadas de sua proteção, torna-se inquestionável o papel do Estado numa ordem cultural” (p. 380).
O leitor pode também sentir falta de um maior desdobramento daquela dialética apontado por Bourdieu em seu conceito de campo. O campo patrimonial, na abordagem de Chuva foi amplamente explorado nos aspectos de sua constituição (produto) e menos no seu papel constituinte (produtor). Embora não pareça intenção da autora, a tônica de Hobsbawn termina por impressionar mais nesse trabalho: sobressai a idéia de patrimônio como uma manipulação da realidade na busca de ratificar um projeto de nação específico e programado.
Mas, a semente foi colocada: cabe a outras pesquisas, com dedicação e trabalho como essa, dar prosseguimento à discussão, quem sabe explorando mais o aspecto constituinte aqui embrionário, ou seja, que a produção do sistema simbólico patrimônio inclui outros grupos de interesses intervenientes, não estando reduzida aos seus agentes oficiais.
De toda forma, o balanço geral é altamente positivo e dois pontos merecem ser ressaltados/ratificados. Primeiro, de viés prático e operacional, a oportunidade que a pesquisa e exposição de trechos inéditos de pareceres, fotos e cartas , bem como as suas pistas no Arquivo Central do Iphan, oferece a outros pesquisadores para desdobramentos de pesquisa, ampliando o debate e potencializando novas reflexões; os Anexos apresentam trabalho de fôlego e de importância como Tabela de colaboradores, na Revista do Sphan de 1938-1946, com suas especialidades e o Quadro geral de autores, membros do conselho consultivo e técnicos do Sphan de 1930 -1940, com rápida descrição da trajetória de cada componente. E, segundo, do ponto de vista teórico e analítico, a visão desmistificadora do papel do campo patrimonial que o trabalho apresenta e que o autor do seu Prefácio já havia assinalado: “Chuva alicerçou solidamente os Arquitetos da memória em proposições teóricas pautadas pela vontade de historicizar e desnaturalizar as práticas cotidianas da instituição como existentes até o presente” (p. 26, grifos nossos).
sobre o autor
Jayme Wesley de Lima é Arquiteto e Urbanista, Especialista em Gestão Integrada do Patrimônio Cultural Urbano - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil. Mestre em Arquitetura e Urbanismo - Patrimônio Moderno e Doutorando em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, Brasil.