Cidade, educação e patrimônio são termos amplos, mas essenciais ao desenvolvimento de políticas públicas e ações culturais voltadas para preservação daquilo que nos representa. Embora seja possível fazer uso dos termos a partir de diversas variáveis, os três podem funcionar como filtros e como organizadores para experiência social ao nos possibilitar reinterpretar e realocar a história e a cultura. A cidade nas últimas décadas vem sendo considerada o espaço físico do debate em torno da concepção de patrimônio e, sobretudo, do desenvolvimento e amadurecimento da educação em seu sentido mais amplo possível.
No contexto das grandes cidades brasileiras, o debate sobre escola e patrimônio encontra desafios ainda maiores e esbarra a todo momento em questões éticas e políticas. A renovação dos laços culturais e compreensão do nosso passado torna-se cada vez mais fundamental para a ampliação de políticas de preservação eficazes. A educação patrimonial, a escola e a cidade assumem posições destacadas pois devem contribuir para que a sociedade renove constantemente seus vínculos com o passado, e, claro, a crítica deste passado. É fundamental para que os jovens definam a importância dos bens culturais para si e se reconheçam como parte na formulação da sociedade, endossando ou não a relevância dos bens culturais na coletividade.
Neste sentido, de qual maneira poderíamos resgatar, entre as diversas publicações sobre o assunto, as referências para continuar avançando nas práticas que concernem ao universo urbano, aos princípios da educação e cidadania, e a constante renovação da noção de patrimônio? Colin Ward (1924-2010) foi um proeminente e participativo anarquista britânico que se dedicou à educação, à infância e à cidade de uma maneira vigorosa e criativa, contribuindo no Reino Unido para uma visão mais aberta do que concerne o complexo sistema de interseção entre a construção da autonomia, escola, espaço público, habitação e herança cultural. Ao considerar a história como relações de poderes, e, ao mesmo tempo, relações de resistência e construção da autonomia, Ward projetou sobre os problemas contemporâneos o anarquismo não só como uma ideologia, mas também como uma metodologia. No que tange à educação, o anarquismo de Ward enfrentou as fronteiras da escola e os limites subjetivos da cidade que estavam atrelados a normatização dos corpos a partir do trabalho e do lazer ordenado.
Seus escritos e sua vida pública nos ajudam a entender por que ele permanece até hoje reconhecido como um dos pioneiros e entusiastas dos playgrounds, dos parques, da habitação social e das cooperativas e das ocupações. Inspirado por Peter Kropotkin (1842-1921), Ward defendeu o prevalecimento total das formas de organização horizontais e autônomas em detrimento da exclusão provenientes do autoritarismo nas organizações sociais. Era um defensor da ocupação e da apropriação criativa e comunitária da cidade, dos squats, das escolas e de todo patrimônio industrial inglês. Muitos de seus escritos sobre a cidade abordam a juventude, a escola e a vida pública, enquanto seus escritos sobre a escola por diversas vezes abordam a complexidade da cidade. Além de editor de revistas como a importante Anarchy, Ward foi técnico em arquitetura, professor em Wandsworth e editor do The Bulletin of Environmental Education. Ele também foi secretario de educação na Town and Country Planning Association, fundada em 1899 por Ebenezer Howard, conceptor e difusor da ideia de “Cidade Jardim”.
Seu livro mais divulgado é talvez um dos mais cativantes: Utopia, publicado em 1974 pela Penguin Books na sua divisão educacional. Trata-se de um livro infanto-juvenil que explora os limites da cidadania e da apropriação dos espaços urbanos em uma linguagem acessível e inteligente. Nele, Colin Ward sutilmente problematiza as noções de participação e, junto com o leitor, se propõe a entender como estabelecemos nossos vínculos de identidade, como moldamos nossa cultura e como projetamos nossas aspirações. Ao trazer a “utopia” para o debate franco e aberto com os jovens, Ward apresenta as possibilidades de reconstrução da realidade, de criação de novos laços que vinculam a sociedade e suas inúmeras comunidades com o espaço. Em Utopia o autor nos mostra como muitas das ideias utópicas de nossos precedentes culminaram em experiências diversificadas e reais que estimulam, de alguma maneira, a descongelar e desmonopolizar o futuro. Utopia explicita ainda mais suas conexões diretas com as ideias libertárias, e nele lemos que o anarquismo está mais acessível do que imaginamos, não somente a partir da crítica às instituições e aos artifícios de controle, mas na necessária construção contínua da nossa autonomia. Está presente como uma semente repousada sob a neve.
Ward, em seus eixos de atuação e escrita – educação, espaço urbano e habitação – deixou evidente a materialidade da escola como um problema a ser enfrentado pela sociedade inglesa. Streetwork: Exploding Schools (1973), escrito em parceria com o jornalista Anthony Fyson, é um de seus exercícios mais importantes como proposta de superar os limites que a escola impõe à cidade e que a própria cidade impõe à escola. Nesta obra, os autores exploram as práticas e espaços de aprendizagem fora da escola propondo experiências libertárias e críticas, quase como uma antecipação da crítica à escola enquanto mecanismo de controle e disciplina dos corpos.
Em Child in the city, publicado em 1978, seu objetivo principal era tentar explorar a relação entre crianças e seu ambiente urbano, considerando que possivelmente perdemos algo quando, em algum momento, paramos de aprender com as crianças e consequentemente sobre as nossas cidades. Segundo ele, através da apropriação e imaginação, as crianças podem contrariar as intenções e interpretações baseadas na experiência dos adultos no ambiente construído. Dez anos mais tarde, em The Child in the Country (1988), Ward chamou atenção para os jovens e os processos de marginalização que começam com a ausência de participação e autonomia e terminam com atos violentos de repressão e exclusão.
Em seus trabalhos, Ward expôs a possibilidade de construção da autonomia, a alteridade, a individualidade e a força da mobilização coletiva. Ele abordou a cidade contemporânea a partir do anarquismo enquanto metodologia útil à retomada da cidadania, por um viés autônomo e comprometido com o interesse público. Esse comprometimento, essa percepção da cidade, da educação e da participação, são bases importantes de uma educação patrimonial que buscamos, isto é, àquela que permita que as vinculações entre os indivíduos e a cultura ocorram de maneira positiva e libertadora sem minimizar ou ignorar os conflitos. No contexto inglês, não podemos nos esquecer, ocorreu um amplo debate relativo à preservação de um patrimônio industrial que envolve a história econômica de todo o país. No Brasil há em curso a potencialização das tensões em torno da identidade e apropriação dos espaços urbanos e escolares. Os conflitos sobre o que deve ser preservado, sobre o que é esquecido, ressignificado ou problematizado, entre a memória que se originou das aristocracias ou das elites e aquela que vem do operariado e dos grupos marginalizados que lutam pelo direito à cidade permanecem latentes. Ward contribui diretamente para não deixarmos que a escola sucumba às hierarquias impostas pela organização social e que nossa noção de patrimônio não reflita somente os interesses dos grupos sociais dominantes. Nesse sentido, não há dúvidas de que, se estivesse vivo e observando nosso contexto, o anarquista inglês não negaria nenhum apoio às recentes ocupações das escolas públicas espalhadas por todo país.
nota
NA – Outras publicações do mesmo autor: WARD, Colin. Connexions: violence. A Series of Topic Books for Students in Schools and Colleges of Further Education. Harmondsworth, Penguin, 1970. WARD, Colin; FYSON, Anthony. Streetwork: The Exploding School. London, Routledge & K. Paul, 1973; WARD, Colin. British School Buildings: Designs and Appraisals 1964-74. London, Architectural Press, 1976; WARD, Colin. Freedom to Go: After the Motor Age. London, Freedom Press, 1991; WARD, Colin. Talking to Architects: Ten Lectures. London, Freedom Press, 1996.
sobre o autor
Carlos Alberto Oliveiraé doutorando em História no Instituto de filosofia e Ciências Humanas da Unicamp com a pesquisa “Prescrições para o futuro: Belo Horizonte no processo de modernização do estado de Minas Gerais”.