O filme Aquarius, roteiro e direção de Kleber Mendonça Filho (1), estreou nos cinemas sob o impacto da grande polêmica no festival de Cannes. Em maio de 2016, o diretor e o elenco aproveitaram a visibilidade do carpete vermelho para mostrar ao mundo que consideravam o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, que estava em curso no Brasil, um golpe de estado.
A manifestação, amplamente divulgada na imprensa e principalmente nas redes sociais, repercutiu diretamente na quantidade e especificidade do público nas salas de cinema. Desde sua estreia, que ocorreu simultaneamente ao afastamento definitivo da presidente, o filme se tornou um símbolo de resistência para uns e de oportunismo para outros, independentemente de seu enredo. O resultado desta polêmica foram salas de cinema lotadas de partidários da teoria do golpe e boicote por parte dos que apoiaram o processo de impeachment. Como o bom homem cordial, o público brasileiro foi ou não foi ao cinema assistir Aquarius movido pelo coração.
Em outubro deste ano comemora-se oitenta anos da publicação da primeira edição do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (2), e o conceito homem cordial, dominado pelas emoções e originário da família patriarcal de herança rural, se mostra ainda hoje presente, contrariando a expectativa do próprio autor, de que a cordialidade seria gradativamente extinta, possibilitando a transformação da sociedade brasileira.
O filme Aquarius narra a luta de Clara, personagem interpretada brilhantemente por Sônia Braga, que resiste às investidas de uma construtora interessada em demolir o pequeno edifício em que vive, para construir no local um grande empreendimento imobiliário. Antes de prosseguir, adianta-se aqui que as descrições e argumentação a seguir revelam parte da trama, portanto só deve enfrentar os próximos parágrafos o leitor que já assistiu ao filme ou aquele que não se incomoda com spoilers. De volta ao filme, portanto.
Clara é uma jornalista aposentada, viúva, mãe de três adultos e vive sozinha em frente à praia de Boa Viagem, em apartamento dos anos 1950 que é palco e testemunha de sua vida. A construtora, que já adquiriu todos os outros apartamentos do prédio, faz de tudo para conseguir convencer Clara a vender o imóvel para viabilizar o início das obras. Para além do debate acerca das cidades brasileiras, que são cruelmente desenhadas pelo poder do mercado imobiliário, o filme retrata em cada personagem, em cada diálogo e em cada cena, a psicologia social da sociedade brasileira, tão bem diagnosticada por Sérgio Buarque de Holanda.
A primeira conversa entre Clara e os representantes da construtora está carregada de simbologia. Já no toque da campainha do apartamento, as presenças do dono da construtora e de seu neto revelam a reprodução dos círculos familiares em ambientes empresariais. A cordialidade se apresenta novamente no diálogo que se segue, quando os empreendedores, ignorando o ritualismo social inerentes às relações institucionais e comerciais, se apresentam de forma afável e cortês como membros da família Bonfim, tratam a interlocutora pelo primeiro nome, pedem cafezinho, tentam estabelecer uma relação de intimidade para alcançar o único objetivo da visita: convencer Clara a vender seu apartamento. Diante da proprietária refratária, os empreendedores partem para métodos de convencimento invasivos. Da afabilidade ao constrangimento, manifestações subjetivas e personalizadas, os empresários não destinam à moradora resistente o relacionamento impessoal e objetivo esperado em uma barganha comercial.
A definição do conceito homem cordial trabalhada por Sérgio Buarque de Holanda sofreu substanciais alterações entre a primeira e a segunda edição do livro – de 1936 e 1948, respectivamente – devido ao polêmico debate público que o autor teve com o poeta Cassiano Ricardo, que questionava o conceito de cordialidade, interpretando-o como uma técnica de bondade. Esta visão otimista e equivocada do conceito ainda é comum, muito embora a partir da segunda edição de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda deixe claro que a cordialidade tem tanto a ver com a bondade quanto com a inimizade, sendo o homem cordial dominado pelo coração tanto na afabilidade quanto na violência.
Responsável pelo empreendimento, as ações de Diego Bonfim – neto de Geraldo Bonfim, dono da construtora – estão impregnadas da cordialidade enraizada na sociedade brasileira. No decorrer da trama, Clara se encontra com o jovem empreendedor nas dependências do prédio e questiona seus métodos de intimidação – realização de orgias, cultos religiosos e queima de objetos nas dependências do edifício, e que chegam à uma ação extrema que se revela no fim do filme. O jovem empreendedor, mantendo o comportamento de aparência afetiva, agora escandalosamente dissimulada, demonstra preocupação com a integridade física da moradora, que vive sozinha em um prédio vazio, e diz reconhecer os motivos do apreço de Clara por seu apartamento, uma vez que a conquista do imóvel, em localização privilegiada, não deveria ter sido fácil para uma pessoa de pele com tom escuro. Neste momento, com a ameaça implícita e o racismo explícito, o filme denuncia a persistência nefasta da herança aristocrática de origem rural, baseada no trabalho do escravo africano implantado no Brasil durante a colonização portuguesa.
A grande ‘sacada’ do filme, que o faz dar um mergulho em profundidade nas raízes do Brasil, é não escamotear o enraizamento da heroína da trama na classe dominante opressora, originária na velha ordem colonial e patriarcal. Clara não escapa de seu papel social; vive confortavelmente no melhor endereço do Recife graças à renda oriunda do aluguel de quatro imóveis herdados de seu marido, que por sua vez os herdou dos pais. Clara nada tranquilamente no mar revolto de Boa Viagem, pois é especialmente protegida por Roberval, salva-vidas da praia, com quem mantém uma clássica relação de cordialidade, onde não faltam o flerte e uma leve tensão sexual.
Clara também pode fazer sua ginástica na praia e escutar seus discos de vinil sem pressa, ostentando sua intelectualidade dos privilegiados, pois tem uma empregada doméstica para limpar sua sujeira e para – com direito ao característico emprego do diminutivo na linguagem – lhe preparar um franguinho e uma saladinha para o almoço. A cordialidade dá o contorno da relação entre Clara e Ladjane, a empregada; ela é “quase da família”. Patroa liberal, moderna, praticamente uma “amiga”, Clara participa da festa de aniversário de sua funcionária na laje de sua casa em alvenaria incrustrada na “Brasília Teimosa”, favela urbanizada símbolo da luta dos movimentos de moradia do nordeste e que se localiza a poucos metros da praia de Boa Viagem.
A proximidade extrema dos contrários que vive a sociedade cordial brasileira se apresenta de forma brilhante no filme de Kleber Machado: nas relações entre Clara e a família Bonfim, entre Clara e sua empregada Ladjane, entre a praia de Boa Viagem e a comunidade Brasília Teimosa. Uma sociedade que se aferra a valores arcaicos e que se exprime nos extremos das relações afetuosas, oscilando entre a intimidade e a opressão, sem deixar de passar pelas situações de nepotismo, corrupção e monopólio.
De forma organicamente articulada ao roteiro, a relação cordial – onde o convívio é ditado por uma ética de fundo emotivo que nega o ritualismo social abstrato das sociedades modernas – vai ser manejada pelo diretor para apaziguar a última peripécia do filme. Fazendo uso do “favor”, manifestação típica das relações baseadas nos laços afetivos, Clara vai obter de seu amigo executivo, da família poderosa Cavalcanti, controladora da mídia local, uma informação confidencial que lhe permitirá reverter a disputa em seu benefício. À ameaça destrutiva de Diego Bonfim e sua corporação antiética, Clara reage com equivalente ameaça de aniquilamento familiar. A peça chave que resolve os problemas do âmbito socioeconômico está dentro da mesma lógica de ausência de civilidade.
Assim, por detrás do desfecho aparentemente feliz de Aquarius, com a vitória do oprimido sobre o opressor, se esconde a triste realidade da sociedade brasileira, onde o desfecho positivo está muito longe de se concretizar. Ao invés de termos alcançado o que Sérgio Buarque de Holanda prognosticou como “Nossa revolução” – a extinção total de nossas raízes oligárquicas e de suas consequências éticas e sociais, propiciando a emergência das camadas oprimidas da população – o que se vê na trama inventada e encenada por Kleber Mendonça é uma metáfora da história brasileira atual, com a manutenção e, mais recentemente, o recrudescimento do sistema arcaico de dominação.
notas
NA – o presente texto é desenvolvimento da apresentação realizada na disciplina “Teoria do conhecimento: história e cultura”, ministrada pelos professores Carlos Guilherme Mota e Abilio Guerra no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, segundo semestre de 2016.
1
Aquarius, roteiro e direção de Kleber Mendonça Filho, Brasil, 2h25’, 2016. Com Sônia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Humberto Carrão, Zoraide Coleto, Fernando Teixeira, Pedro Queiroz, Carla Ribas.
2
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 1a edição. Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1936; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2a edição revista e ampliada. Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1948.
sobre a autora
Helena Strada Nosek é arquiteta e urbanista (Faculdade de Belas Artes de São Paulo, 2003) e tem mais de dez anos de atuação profissional na prefeitura de São Paulo, nas secretarias de Habitação e Desenvolvimento Urbano. Atualmente está cursando mestrado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Plesbiteriana Mackenzie.