Simplicidade, funcionalidade, durabilidade e elegância são algumas das qualidades associadas aos móveis desenhados pelo francês Michel Arnoult em sua longa, produtiva e diversificada trajetória profissional no Brasil. Sua loja Mobília Contemporânea marcou época ao propor a preços acessíveis móveis leves de madeira maciça com desenho primoroso, produzidos industrialmente com o máximo de precisão e esmero. Entre 1954 e 1974, jovens recém casados e famílias de classe média, principalmente cariocas e paulistas, encontraram nas lojas da MC os móveis de que precisavam para mobiliar suas casas e afirmar uma modernidade esclarecida e cosmopolita. Num mundo menos imperfeito, os móveis de Arnoult continuariam sendo fabricados e poderíamos hoje adquiri-los inclusive pela internet e não apenas em exclusivos modernariatos.
Michel Arnoult: design e utopia é uma belíssima e consistente edição organizada por Ethel Leon sobre a obra do designer e empresário, que escolheu o Brasil para trabalhar e viver, tendo aqui chegado em 1950. Estão em harmonia os ensaios dos pesquisadores Mina W. Hugerth, Marcello Montore, Yvonne Mautner e Ethel Leon, complementando-se perfeitamente. O livro esclarece em profundidade sobre os princípios que nortearam o trabalho de Arnoult, assim como sobre sua persistência quase heroica em projetar, produzir, divulgar e comercializar, ao longo de várias décadas, móveis ao mesmo tempo acessíveis e duráveis, visando o amplo leque social. O arquivo de Annick Arnoult, filha de Michel, foi o ponto de partida essencial dos pesquisadores.
Ethel Leon aponta as influências decisivas que modelaram (e cristalizaram) desde cedo a orientação profissional de Arnoult: desenho voltado para a produção seriada de móveis em madeira maciça modernos e acessíveis. Com 21 anos, em substituição ao serviço militar durante a Segunda Guerra Mundial, o jovem Michel trabalhou na fábrica alemã Paidi Möbel, especializada em barris e móveis de madeira, com produção bastante organizada – a montagem dos dois berços, que eram os principais produtos da fabrica, baseava-se na combinação diferenciada de praticamente os mesmos componentes. Poucos anos após, quando estudava na Escola Comondo, em Paris, Arnoult estagiou no escritório de Marcel Gascoin, arquiteto e designer que, no pós-guerra, participou de projetos governamentais de reconstrução com ênfase no desenvolvimento de mobiliário moderno em madeira acessível e de boa qualidade. Inspirado no design sueco, Gascoin buscava ao mesmo tempo despojamento e conforto, privilegiando a acolhedora madeira, em vez de materiais estreitamente associados ao mundo industrial, como o ferro e o aço, na expectativa de que seus móveis tivessem aceitação imediata por parte do grande público, que deles necessitava. Leon interpreta a inspiração sueca de Gascoin, tão influente também sobre Arnoult, como uma opção simultaneamente distinta do decorativismo luxuoso do art déco, do styling aerodinâmico do design norte-americano, assim como do modernismo mais simbólico do que prático de Le Corbusier, inicialmente assimilado apenas por uma elite.
Ethel Leon e Yonne Mautner analisam minuciosamente a extraordinária atividade de Arnoult como designer e empresário, com foco na Mobília Contemporânea, porém sem perder de vista tantos outros projetos não tão duradouros, bem sucedidos ou sequer iniciados. Que fôlego tinha Arnoult para criar, empreender, produzir, organizar, ampliar, comercializar, promover e distribuir seus produtos! Sempre buscando alcançar um público mais amplo, atingir novos mercados reais ou imaginários no Brasil e no exterior, propondo inclusive os móveis Peg-Lev, comercializados em caixas para serem montados em casa. Tantas vezes disposto a recomeçar, mantendo-se fiel a seus princípios essenciais de simplificação, racionalização e democratização. As pesquisadoras explicitam o conceito de série industrial, para além da estratégia racional de incremento da produção, enfatizando o sentido caro à Arnoult, como possibilidade de desenvolvimento a longo prazo de um repertório modular coerente, propício a novas combinações e resistente aos ciclos de moda. Durante quase vinte anos, a MC apresentou apenas duas linhas de móveis, cujos componentes construtivos foram racionalmente simplificados de modo a agilizar e baratear a produção no interior da fábrica, mas também a permitir que os clientes regulares da loja acrescentassem novos móveis ou módulos às suas casas e/ou escritórios, seguindo uma mesma e harmoniosa linguagem.
Em texto conciso, Marcello Montore, também responsável pelo projeto gráfico do livro, aborda as sucessivas mudanças da marca Mobilia Contemporânea desde a vaga evocação da madeira e da modularidade até a precisa e definitiva síntese visual elaborada pelo artista e designer concretista Willys de Castro a partir do tipo de encaixe privilegiado por Arnoult entre os componentes retos (travessas) e cilíndricos (pés) de suas cadeiras e poltronas. Concordamos com Montore, que trata-se “de uma das marcas mais memoráveis criadas no Brasil no século XX”.
Mina W. Hugerth analisa a estratégia discursiva promocional da Mobiliária Contemporânea, incluindo seu envolvimento no notável esforço de formação de um público para o mobiliário moderno juntamente com empresas concorrentes como Mobilínea, Oca, L’Atelier, Ambiente, Forma e Arredamento. Hugerth destaca o fato de que, apesar das muitas diferenças entre os produtos destas empresas, algumas encontraram soluções materiais e formais similares, tendo a MC sempre se destacado em oferecer preços mais acessíveis. Segundo Hugerth, o fechamento de várias empresas de mobiliário ao longo dos anos 1970, inclusive a MC, pode ser explicado pela saturação do mercado devido à uniformização da oferta ininterrupta de um mobiliário moderno austero em madeira.
Arnoult tinha consciência de que a implantação de um sistema racional e coeso de produção em larga escala, representava, ao menos com a tecnologia então disponível, risco de enrijecimento refratário a mudanças – assim lemos em “O móvel em série, uma experiência”, texto do próprio designer, datado de 1965, ou seja, da época áurea da MC, incluído ao final na recente edição. Em meados dos anos 1970, a forte coerência estilística proposta por Arnoult pode ter sido percebida por seus clientes como monótona ou esquemática. Sua opção pela exclusão dos modos artesanais de produção, que propiciou, no interior fabril, a substituição de marceneiros por operários não qualificados com a finalidade expressa de reduzir custos, talvez tenha limitado sua capacidade de transformação e adaptação à mudança de expectativa com relação ao conforto próprio ao espaço doméstico. O design escandinavo sueco, que deu origem à gigante Ikea, foi referência constante para Arnoult, porém não tanto o design dinamarquês, que optou por preservar e estimular a contribuição artesanal, evitando a polarização de natureza bélica entre indústria e artesanato, que tende a limitar tanto a prática quanto a reflexão sobre o design. Os ofícios artesanais modernos permanecem importantes não apenas na criação de protótipos apesar dos avanços recentes da prototipagem digital, mas sobretudo como incessante e multifacetado laboratório de criação e experimentação.
Hoje, a rarefação, senão a extinção, de espécies como jacarandá, pau-ferro, pau-marfim, utilizadas por Arnoult, mas principalmente da imbuia, que caracterizou a produção da MC, torna ainda mais evidente o refinamento especial de seus móveis, para além do estrito programa industrial moderno. A associação entre o excelente desenho de Arnoult e as madeiras nobres brasileiras permitiu rara síntese entre leveza, solidez e permanência, reservando a seus móveis, que estiverem ao alcance de tantos, um lugar de destaque na história do design, em contraste radical com a imensa maioria do móvel popular brasileiro, predominantemente copiado de péssimas fontes estrangeiras e produzido com madeira aglomerada para não durar e ser esquecido.
Fruto de pesquisa séria e edição exigente e cuidadosa, incluindo versão resumida em inglês, o livro desponta como referência indispensável sobre o design moderno.
sobre o autor
Gilberto Paim é ceramista e escritor; autor de A beleza sob suspeita, o ornamento em Ruskin, Lloyd Wright, Loos, Le Corbusier e outros. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000.