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Resenhista comenta livro Arquitetura de grife na cidade contemporânea, de Márcio Moraes Valença, e aponta para o resgate do modelo de intervenção urbana dominante no final do século 20 e que, segundo Valença, ainda impera como modo de intervenção.

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GATTI, Simone. Tudo igual, mas diferente. A arquitetura de grife segundo Márcio Moraes Valença. Resenhas Online, São Paulo, ano 15, n. 180.01, Vitruvius, dez. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/16.180/6311>.


As teorias urbanas do início do século 20 foram marcadas pela crítica à avalanche discursiva e projetual que dominava as intervenções urbanas das últimas décadas ou a chamada 'volta à cidade', reflexo das políticas neoliberais que trouxeram o privatismo e o desenvolvimento imobiliário para o cerne das políticas públicas. Após a derrocada do projeto moderno estruturador e funcionalista e com a proliferação de áreas subutilizadas advindas do processo de transformação do sistema produtivo, as cidades passaram a se destacar pela forma como lidavam com os vazios urbanos e as áreas remanescentes dos processos de desindustrialização. A utilização da cultura como elemento transformador do espaço urbano, intensificada em meados da década de 1980, vai se adentrar no século 21 e ocupar o destaque não somente dos investimentos internacionais e dos roteiros turísticos, mas também passa a ser pauta principal do urbanismo crítico.

Passados alguns anos, o debate sobre arquitetura e urbanismo passa a permear outras fronteiras, que adentram o campo da gestão participativa, da ocupação dos espaços públicos, dos projetos integrados e das transformações sistêmicas. A premiação do arquiteto Alejandro Aravena para o prêmio Pritzker 2016, com base na sua leitura metodológica de projeto que integra necessidades do usuário à materialização da forma e que busca alcançar soluções para a melhoria dos contextos urbanos frente à crise mundial de habitação, é reflexo da consolidação de outras formas do fazer arquitetônico e de intervir em cidades, de outras possibilidades de apropriações do espaço que elencam o cidadão e a vida existente como principal norteador da atividade projetual.

Ponte Zubizuri, de Santiago Calatrava, com edifícios de Arata Isozaki ao fundo, Bilbao
Foto Márcio M. Valença, 2008

Em contrapartida, o projeto urbano brasileiro de maior destaque no ano de 2016 se pauta na mesma lógica do marketing urbano e do planejamento estratégico tão criticado no início do século 21. O Porto Maravilha, base do cenário dos jogos olímpicos do projeto Rio 2016, tem como principais referências projetos de uso cultural projetados por arquitetos internacionais, como o Museu do Amanhã do arquiteto espanhol Santiago Calatrava sobre a Baía de Guanabara, âncora cultural do projeto de revitalização da frente marítima do porto carioca, e também as Trump Towers Brasil, que têm como objetivo ser o maior empreendimento comercial dos BRICS. Ou seja, o modelo anacrônico dos grandes projetos midiáticos, que têm o uso da cultura, o nome de grandes arquitetos e projetos de grande escala como seus principais norteadores ainda se faz presente na produção urbana, sobretudo quando aliada aos grandes eventos.

Petronas Twin Towers (com Shopping Suria), de Cesar Pelli, e a torre Menara Maxis, de Roche-Dinkeloo, Kuala Lumpur
Foto Márcio M. Valença, 2009

É neste contexto que o livro Arquitetura de grife na cidade contemporânea, de Márcio Moraes Valença, resgata o modelo de intervenção urbana dominante nas últimas décadas do século 20 e que ainda impera como fórmula de intervenção. A partir de uma significativa documentação iconográfica, Valença analisa os casos de Bilbao, Kuala Lumpur, Hong Kong e Londres, e vai mostrar que as transformações urbanas iniciadas através de marcos arquitetônicos não se limitam aos edifícios singulares, mas irão necessitar de renovações constantes para se manter competitivas e interessantes turística e economicamente. O livro defende a tese do conjunto de elementos necessários para garantir a manutenção do marketing urbano, que vai se configurar pelo novo skyline, pelo uso concomitante dos edifícios contemporâneos e históricos, pelos atributos da própria cidade (como natureza, relevo, culinária, etc), aliado às intervenções de mobilidade, segurança, limpeza e animação urbana, evidenciando que os ícones da arquitetura não trabalham sozinhos, mas integrados a uma estrutura urbana que busca qualificar todas as dimensões do espaço do consumo.

Parque do Centro da Cidade de Kuala Lumpur, de Roberto Burle-Marx. À direita, o Centro de Convenções de Cox Architects
Foto Márcio M. Valença, 2009

A transformação da área industrial de Abandoibarra nas margens do rio Nérvion na pequena cidade espanhola de Bilbao, por exemplo, que se tornou ícone pelo efeito transformador da arquitetura de Frank Gehry e serviu de referência para muitas outras cidades, é avaliada por Valença ao longo do tempo com destaque para as intervenções recentes e para a dinâmica incessante das intervenções urbanas e dos lançamentos de grandes projetos arquitetônicos. O que David Harvey denominou na década de 1980 como “empreendedorismo urbano” e, posteriormente, Castells e Borja chamaram de “planejamento estratégico”, continua sendo implementado e renovado em cidades como Bilbao, que se lançaram na promoção econômica das cidades na década de 1990, e que ainda continuam a apresentar um novo arsenal de espaços públicos e objetos arquitetônicos, que inclui projetos de arquitetos como Arata Isozaki e Santiago Calatrava, o mesmo arquiteto escolhido para ser o ícone da principal obra do Porto Maravilha no Rio de Janeiro.

Essa profusão de lançamentos imobiliários e equipamentos culturais identificados por Valença nos faz considerar uma série de aspectos inerentes a este modelo de intervenção urbana, como as formas de financiamento destes projetos e sobre as relações existentes entre os diversos atores, públicos e privados, nacionais e internacionais, na conformação dessa nova cidade. Bem como nos permite fazer relações com as intervenções similares implementadas nas cidades brasileiras.

Banco da China, de I.M. Pei, Hong Kong
Foto Márcio M. Valença, 2011

Segundo Valença, parte significativa dos novos empreendimentos internacionais está vinculada a empresas multinacionais e são anunciados ostensivamente para investidores estrangeiros e locais, denunciando o caráter rentista deste modelo de desenvolvimento urbano, porém majoritariamente implementado pelo capital privado. Enquanto no Brasil, grande parte das intervenções de grandes projetos urbanos, como o Porto Maravilha, são viabilizadas através de benefícios públicos concedidos ao mercado privado, como doação de áreas, incentivos fiscais, flexibilização na regulamentação urbanística, etc. Parte destes benefícios são oriundos de parcerias público-privadas ou formatações contratuais como as Operações Urbanas Consorciadas que buscam, em tese, o resgate dos investimentos através da venda de potencial adicional de construção ou então através da definição de contrapartidas a serem executadas pelo concessionário privado. A captura dessa ‘mais valia’, porém, nem sempre acontece, não tem destinação para investimentos prioritários, como habitação social ou mitigação dos impactos causados pelas intervenções, ou tais investimentos simplesmente não estão inseridos na lógica dos projetos urbanos.

Panorama de Hong Kong, desde o Monte Victória, com edifícios icônicos: International Commerce Centre (torre ao fundo), de KPF, o 2IFC (International Finance Centre), de Cesar Pelli (torre ao centro), HSBC, de Norman Foster, e Banco da China, de I.M. Pei,
Foto Márcio M. Valença

É importante relativizar, contudo, o impacto destas intervenções em países com dinâmicas econômicas e índices de vulnerabilidade social distintos, e o quanto este modelo pode ou não ser transportado para as cidades brasileiras. Enquanto Hong Kong, caso analisado por Valença, apresenta índice zero de desemprego, itens da cesta básica dos trabalhadores a preço baixo e controlado e possui o maior estoque de habitação social pública do mundo, cidades brasileiras como o Rio de Janeiro possuem déficit habitacional de 220 mil unidades (dados da pesquisa Déficit Habitacional Municipal no Brasil 2010, divulgada pela Fundação João Pinheiro, em parceria com o Ministério das Cidades) e altos índices de desemprego para a mão de obra menos qualificada, como a construção civil, que aumentam exponencialmente após o fim das obras dos grandes eventos, como os jogos olímpicos. De janeiro de 2015 para janeiro de 2016 a taxa de desemprego no Rio de Janeiro já havia subido de 3,6 para 5,1% (pesquisa nacional de empregos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE), antes mesmo do final das obras dos jogos olímpicos. Somente na área do Porto Maravilha, há 800 domicílios em cortiços e 1465 em favelas, conforme pesquisa do projeto Prata Preta do Observatório das Metrópoles, realidade esta não absorvida nas intervenções propostas pela Operação Urbana. Nos restam algumas perguntas: este modelo de intervenção urbana nos cabe? E quais os danos financeiros e sociais resultantes de tais investimentos? Em 2015 o Governo do Estado de São Paulo cancelou o projeto Complexo Cultural Luz desenvolvido pelos arquitetos suíços Herzog & de Meuron em função de ações legais contra a contratação do projeto sem licitação pública e de questionamentos referentes à própria necessidade do equipamento na região. Qual a pertinência em se dispensar 500 milhões de reais para a implantação de um equipamento cultural, sem contar os 39,6 milhões de reais já gastos com o projeto, em uma área socialmente frágil e de urgências habitacionais?

O Pepino (Gerkin), de Norman Foster, e o Ralador de Queijo (Cheesegrater), de Richard Rogers, Londres
Foto Márcio M. Valença, 2014

Outro aspecto a ser considerado é para qual público se destinam as intervenções e quais os impactos para a população local. Valença cita a crítica inicial da opinião pública à construção do Guggenheim em Bilbao e a posterior aceitação das novas intervenções, em função do surpreendente sucesso do empreendimento e o efeito que teve sobre a dinâmica econômica local. Cabe avaliar, na comparação entre este tipo de intervenção em contextos diversos, a diferença entre intervenções que acontecem sobre áreas vazias e de fato subutilizadas, como no caso de Bilbao, ou sobre tecidos urbanos consolidados, bem como às precariedades dispersas ou invisíveis que não são revelados para o olhar estrangeiro mas que estão presentes na vida cotidiana daqueles que habitam ou exercem atividades produtivas nestas regiões consideradas degradadas. Valença nos mostra que em Kuala Lumpur, na Malásia, o desenvolvimento imobiliário impulsionado por grandes projetos desde a instalação das Petronas Twin Towers, de Cesar Pelli, em 1998, avança com grande velocidade sobre ruas de comércio tradicionais e atividades populares, sobre conjuntos habitacionais públicos datados da década de 1950, que correm o risco de serem substituídos por novos empreendimentos, e também sobre marcos arquitetônicos históricos representantes da tradição chinesa. No Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, o contexto sócio-cultural das comunidades quilombolas e do samba carioca é desconsiderado pelas intervenções urbanas. Há em pauta um ideal de renovação do aparente 'desocupado' território da região portuária, tal como ocorreu na região de Docklands, em Londres, desde o início da década de 1960, lembrada por Valença, onde uma gentrificação generalizada se deu com a retirada de vários conjuntos habitacionais públicos e a renovação ou semi-privatização de outros. Novos espaços e novos usos vão sendo sobrepostos à cidade real e aos modos de vida e relações territoriais construídas historicamente.

Lloyds Building, de Richard Rogers, Londres
Foto Márcio M. Valença, 2014

Nessa tentativa de contrapor a tese de Valença a experiências similares em contextos diversos, há de se verificar ao longo do tempo os logros que tais projetos trazem para a vida urbana, e também como a cidade irá protagonizar a regeneração e renovação de suas estruturas e infraestruturas, a fim de que a área envoltória das intervenções não sucumbam à ociosidade e possam se integrar à dinâmica urbana. Valença nos mostra como os resultados das intervenções urbanas de cidades como Londres estão conectadas sistemicamente com um projeto de qualificação do espaço público que supera os obetivos dos projetos individuais, “um urbanismo que visa tanto os edifícios quanto os espaços públicos a eles associados e ao seu entorno próximo”, e que ainda permanece integrado ao desenvolvimento urbano que alcança a escala municipal, seja na configuração dos passeios públicos, na oferta de um transporte sobre trilhos capilarizado e eficiente e de um dos melhores sistemas de ônibus do mundo. Contudo, os níveis de qualificação do espaço públicos se apresentam antagonicamente a medidas como a garantia da função social da propriedade, já que este não é, definitivamente, o objetivo primordial. O caráter rentista e a consecutiva predominância da vacância dos imóveis, seja em usos residenciais ou comerciais, reforça a produção especulativa do espaço. Nas palavras de Valença, o city branding e o city marketing garantem uma “forte dinâmica imobiliária que tem elevado os preços do imóveis de forma exponencial”, evidenciada pela manutenção de muitos imóveis fechados a espera de valorização.

Rio Tâmisa e panorama da The City, com o Walkie-Talkie, de Rafael Viñoly, o Ralador de Queijo, de Richard Rogers, e o Pepino, de Norman Foster, Londres
Foto Márcio M. Valença, 2014

No Brasil, projetos como o Porto Maravilha trouxeram novos pontos turísticos e espaços de consumo para a cidade. A derrubada da antiga Perimetral devolveu ao cidadão carioca um espaço público generoso, que fora retirado do tecido urbano pelo planejamento urbano rodoviarista de meados do século 20, contudo apresenta-se como ilha de transformação em meio a uma complexa trama de déficits e deficiências a serem tratadas, não somente na escala municipal mas na precariedade do seu entorno imediato. Daremos conta do dinâmico e contínuo processo de intervenções, necessárias para garantir a vitalidade e dinâmica econômica dos projetos originais, tal como se deu nas cidades de Bilbao e Kuala Lumpur analisadas por Valença? Daremos conta de intervenções não excludentes que incorporem as dinâmicas, necessidades e precariedades reais, qualificando espaços e vidas de forma integrada? Ao que podemos ver, embora a teoria urbana tenha alcançado novos patamares do debate crítico a partir de novos modelos de intervenção urbana, continuamos incorporando modelos e não considerando suas pré-existências. Continuamos ignorando o tecido urbano real e a complexa trama de relações sociais e culturais que os envolvem, onde os impactos não são meramente pontuais, mas estruturantes. O subtítulo de 'Arquitetura de grife na cidade contemporânea' é 'tudo igual, mas diferente', e essa menção nos faz útil não apenas para a compreensão dos objetivos primordiais do autor, que é entender como se deu a continuidade das intervenções iniciais do city marketing no contexto internacional, mas também para refletirmos sobre este modelo no contexto das cidades brasileiras, onde a fórmula aplicada é a mesma, mas suas implicações, bem distintas.

sobre a autora

Simone Gatti é arquiteta e urbanista, doutora e pós doutoranda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Apoio à Pesquisa, Produção e Linguagem do Ambiente Construído – NAPPLAC, da FAU USP.

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Arquitetura de grife na cidade contemporânea

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Arquitetura de grife na cidade contemporânea

Tudo igual, mas diferente

Márcio Moraes Valença

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