A discussão sobre a habitação, salubridade e conforto esteve presente na pauta do movimento moderno, sendo as casas inclusive objeto de propostas arrojadas das vanguardas. Em 1927, a exposição de arquitetura moderna de Sttutgart colocava em evidência esses temas e convocava arquitetos, designers e outros profissionais a refletir sobre habitação e os espaços domésticos. Aproximadamente noventa anos depois, o Museu de Arte Moderna de Nova York lança um olhar apurado sobre os interiores modernos projetados na primeira metade do século 20. A associação entre as duas exposições não é casual. O título da exposição inaugurada no Moma no dia 01 de outubro de 2016, “How should we live? Propositions for the Modern Interior” (1), aponta diretamente para os temas lançados na amostra de 1927 e reforça o diálogo ao instalar logo no acesso principal da exposição o texto da equipe de curadoria ao lado do cartaz da amostra Die Wohnung, (Weissenhofsiedlung Werkbund Exposition).
No texto de abertura, Juliet Kinchin (curadora) e Luke Baker (assistente de curadoria) nos informam que o recorte temporal se dá a partir de três décadas de produção (anos 1920 até 1950) e as grandes transformações e incertezas políticas, sociais e econômicas daquele período. Os diversos núcleos apresentam as novas maneiras de organizar os espaços e os lugares, o uso de modernas tecnologias e materiais: vidro, madeira, tecidos sintéticos, aços tubulares e plásticos. Importante dizer que Juliet Kinchin – que tem atuado no Departamento de Arquitetura e Design do Moma desde 2008 e também foi curadora de uma exposição nesse museu sobre as cozinhas modernas intitulada “Counter Space: Design and the Modern Kitchen” (2010-2011) – tem uma vasta experiência com a questão da domesticidade e dos interiores modernos (2). A curadora defende que cada proposição para o morar moderno apresenta uma visão coerente que corresponde a fatores externos variados como o clima, a legislação ou condições políticas, socioeconômicas e tecnológicas.
Logo no acesso principal, a presença de um exemplar da famosa Cozinha de Frankfurt causa grande impacto ao visitante. Proposta por Margarete Schütte-Lihotzky na década de 1920, alguns exemplares foram construídos entre 1927 e 1929 e, recentemente, uma delas foi adquirida pelo acervo MoMA em 2009 e reconstruída nas proximidades do acesso principal. Ali são apresentadas as preocupações da arquiteta com o trabalho diário na casa – de acordo com as teorias contemporâneas sobre eficiência, higiene e fluxo – e sua busca por uma eficiência necessária no trabalho das mulheres. Além da própria cozinha, a projeção de um vídeo demonstra os estudos, as análises e finalmente a proposta para as práticas domésticas, informações que reforçam o avanço que foi essa cozinha na década de 1920. A possibilidade de se aproximar daquele espaço – até então conhecido apenas por desenhos e fotografias preto-e-branco – encanta os observadores logo de cara e demonstra a preocupação do MoMA com as questões da modernidade. Dentro da caixa onde está inserido, é possível visualizar seu interior a partir dos vãos das janelas e compreender seu espaço mínimo de circulação e, mesmo sem tocar os objetos desenvolvidos – depósitos de alumínio, bancada de corte, ou pequenos frascos de vidro pendurados – compreender o quão arrojado e inovador foi este projeto.
Além da arquiteta Margarete Schütte-Lihotzky , outras profissionais ganham na discussão pelos espaços domésticos modernos e pela rede de trabalho e parceria: Eileen Gray (Irlanda, 1878-1976), Charlotte Perriand (França, 1903-1999), Marguerita Mergentime (Estados Unidos, 1894-1941), Clara Porset (México, 1895-1981), Ray Eames (1912-1988), Noemi Raymond (Americana, 1899-1980), Aino Aalto (Finlandia, 1894-1949) e Florence Knoll (Estados Unidos, 1917). A exposição demonstra o pioneirismo dessas profissionais e de seus trabalhos na discussão dos espaços modernos do início do século 20. Suas propostas estão presentes ao longo da exposição em objetos, croquis, estudos e ambientes reproduzidos espacialmente para a amostra.
Além da Cozinha de Frankfurt, chamam a atenção outros três ambientes dispostos ao longo da exposição: 1) o quarto do apartamento de Philip Johnson (1930-1931), proposto por Lilly Reich e Ludwig Mies van der Rohe onde se apresenta uma tentativa de realizar nos Estados Unidos um cômodo barato, simples e decisivamente moderno; 2) o apartamento para um designer em Nova Iorque (Apartment for a New York Designer), proposto por Frederick Kiesler entre 1935-1938, onde cores frias, formas orgânicas, materiais transparentes são utilizadas na organização de imóvel no contexto ainda de recessão americana; 3) uma unidade habitacional da Maison do Brasil na Cidade Universitária de Paris, onde Charlotte Perriand e Le Corbusier desenvolveram um espaço multifuncional, confortável e estimulantes para os estudantes. Em cada um dos espaços apresentados chama atenção o uso de materiais, de cores e da iluminação na organização de lugares de intimidade e/ou convívio dos habitantes.
As discussões e ideias fomentadas pelo Moma é destaque na exposição que apresenta diversas propostas e soluções de concursos desenvolvidos a partir do programa Good Design (que teve início na década de 1940). São apresentados protótipos de mobiliários, croquis, desenhos e publicações que buscam demonstrar a participação dessa instituição na constituição de um legado do design moderno. Destacam-se, entre outros, alguns móveis – poltronas e cadeiras – desenvolvidos pelo casal Eames, por Eero Saarinen, entre outros.
Aos que estiverem interessados em uma experiência ainda mais profunda com os ambientes modernos, em um dos lados da exposição foi construído o Cafe Velvet que reproduz o projeto de Lilly Reich e Mies van der Rohe para uma feira de moda em Berlim, em 1927, (Die Mode der Dame). Nesse terceiro andar do edifício do Moma, o espaço executado com tecidos e perfis metálicos possibilita aos visitantes tomar um café entre as cortinas de veludo com vista para o jardim das esculturas do próprio museu, sentado e cercado pelo mobiliário desenvolvido pelos arquitetos. A exposição faz qualquer visitante repensar as soluções de seu dia-a-dia, de suas práticas e a modernidade de seu cotidiano.
notas
1
Exposição “How Should We Live? Propositions for the Modern Interior”, curadoria de Juliet Kinchin (curadora) e Luke Baker (assistente de curadoria), Museum of Modern Art – MoMA, Nova York, 01 de outubro de 2016 a 23 de abril de 2017.
2
Juliet Kinchin foi curadora em museus e galerias de Glasgow e do Museu Victoria & Albert de Londres. Além de professora de História da Arte e do Design na Escola de Artes de Glasgow e da Bart Graduate Center for Studies in Design em Nova Iorque, destaca-se pela produção bibliográfica relacionada aos temas da exposição, entre eles In the Eye of the Storm: Lili Mårkus and Stories of Hungarian Craft, Design and Architecture 1930–1960 (2008), Performance and the Reflected Self: Modern Stagings of Domestic Space, 1860-1914 (2008) e Hungary, Shaping a National Consciousness (2004).
sobre a autora
Sabrina Studart Fontenele Costa é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal do Ceará. Mestre e Doutora pela FAU-USP. Pesquisadora colaboradora de pós-doutorado do IFCH Unicamp onde estuda questões como domesticidade, preservação e arquitetura moderna com apoio da Fapesp. Funcionária do Centro de Preservação Cultura da USP(CPC-USP). Autora do livro “Edifícios modernos e o traçado urbano no Centro de São Paulo” (Annablume, 2015).