“Se pudesse definir em uma só frase a civilização de um país como o Brasil, talvez se pudesse dizer que é um país condenado ao moderno desde o seu nascimento“ (Mario Pedrosa)
Cataguases, município do Estado de Minas Gerais. Em dezembro de 1995, o Conselho do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – , acatando parecer do conselheiro relator, arquiteto Ítalo Campofiorito, por sua vez contando com o apoio do processo de tombamento proposto e instruído pela representação do IPHAN em Minas Gerais, decidiu pelo tombamento de uma poligonal no centro da cidade, aproximadamente 60 quadras, considerando sua importância para a cultura nacional. Primeiro a surpresa; depois os questionamentos. Porque a cidade de Cataguases foi objeto de especial proteção? Exatamente “o que” em Cataguases foi objeto de especial proteção? Como tornar efetiva essa especial proteção?
Se nos debruçarmos sobre a formação do município de Cataguases vamos encontrar uma cidade mineira, tão brasileira como a mais brasileira das cidades mineiras na previsibilidade e nas contradições de seu desenho, de sua história, de seu desenvolvimento. Como não poderia deixar de ser essa história começa com a expulsão e catequese de índios nativos (no caso os Coropós), das margens de um rio (no caso o rio Pomba) e a construção de uma capela (no caso a capela de Santa Rita). E a história continua com a exploração de minérios, diamantes, e com o aquartelamento de militares que trabalhavam na abertura de novas estradas no final do século XIX.
Em 1875 o Arraial de Meia Pataca é elevado a vila, recebendo o nome de Cataguases. Dois anos depois, a vila vai incrementar seu desenvolvimento com a chegada dos trilhos e a construção de uma estação da Estrada de Ferro Leopoldina que vem em busca da próspera produção de café da Zona da Mata. Cataguases vai ganhando cada vez mais importância como nó de articulação da comunicação regional. Em 1905 são implantadas no município a primeira usina geradora de energia e a primeira fábrica de tecidos, tendo início o ciclo industrial têxtil, sinônimo de progresso e prosperidade, um dos principais fatores a propiciar a construção de um “ambiente moderno” para a cidade (2).
Quanto ao traçado urbano, definiu-o, em 1828, o Coronel Comandante das Divisões Militares do Rio Doce e Inspetor-geral das estradas, encarregado também da civilização e catequese dos índios por D.Pedro I, Guido Thomaz Marlière. Tomou como ponto de partida o arraial da Meia Pataca, à margem esquerda do rio Pomba: “neste sítio mandei afincar por este mesmo três marcos de pau, chamado marmelada, e lavrados, para evitar discussões futuras entre ele e os moradores do arraial. A estrada nova atravessa este em linha reta. Delineei as ruas na distancia de 50 passos de um a outro ângulo da igreja, a praça pública e o lugar futuro para o corpo da Igreja, que por ora não tem senão a capela-mor, a fim de que se forme uma povoação bem regular, para a qual convida a sua bela localidade” (3).
O traçado urbano teve portanto início no Largo da Matriz de Santa Rita – sítio ao qual se refere o Inspetor-geral –, e no Largo do Rosário – atual Praça Rui Barbosa. A partir do Largo da Matriz até a margem direita do ribeirão Meia Pataca foi aberto o caminho do Sobe-desce, atual rua Coronel Vieira, ponto de partida para a definição de outros caminhos: Passa-cinco (rua alferes Henrique de Azevedo), Pomba (rua Major Vieira), do Meio (rua Rebelo Horta), do Cemitério (rua Marechal Deodoro) e da Estação (rua Coronel João Duarte) (4). Portanto, a malha de ruas retas e perpendiculares, com praças espaçosas, localizada na área plana definida pelos cursos do rio Pomba e dos ribeirões Meia Pataca e Lava-pés, é a mesma que pode ser observada hoje. Nas expansões futuras, a malha urbana passa a acompanhar os terrenos planos ao longo dos trilhos da Leopoldina, ou as curvas de nível das encostas dos morros, sem outro plano ou diretriz de expansão além das primeiras normas do engenheiro militar e as contingências topográficas.
No final do século XIX, junto com a riqueza do café e as novidades trazidas pela ferrovia chegam as epidemias, os projetos de saneamento de Paulo de Frontin e as famílias da capital perseguidas por Floriano Peixoto, atraídas pela proximidade geográfica entre Rio de Janeiro e Cataguases, famílias que acabam colaborando para o fortalecimento dos vínculos entre as duas cidades. Praças e jardins são remodelados de acordo com projetos de paisagismo e os novos edifícios obedecem à diretrizes e linguagem da arquitetura eclética, símbolo do fausto e do poder da capital, podendo-se citar: a matriz neogótica (de autoria de Augusto Rousseau – 1894), o Paço Municipal (de autoria de Agostinho Horta Barbosa – 1893), o Teatro Recreio (1893) e o Hotel Villas (de autoria de Bergamini – 1893), além de chalés e palacetes. Na mesma época as ruas são calçadas, pontes e estradas são construídas. Afirma-se o eixo principal da cidade, o mesmo constituído hoje pelas ruas Major Vieira e Lobo Filho, ambas de traço do engenheiro Marlière (5).
Foi nessa pequena cidade da Zona da Mata mineira , definida no início dos anos 20 por Guilhermino César, um de seus poetas modernos, como “um cafundó que modorrava aos pés do ribeirão Meia-pataca, ouvindo berros de boi, os raros fusos de sua fábrica de tecidos, o ronco de meia dúzia , se tanto, de automóveis” (6), onde ocorreram dois acontecimentos culturais dentre os mais significativos do modernismo brasileiro, que localizaram definitivamente a cidade no mapa do Brasil: o cinema de Humberto Mauro e a revista literária Verde. Com seis números que circularam entre 1927 e 1929, a revista começou a ser editada a partir do lançamento do Manifesto Verde, liderado por um grupo de literatos da cidade – Henrique de Rezende, Rosário Fusco, Guilhermino César, Francisco Inácio Peixoto, Martins Mendes, Ascânio Lopes, Christophoro Fonte-Bôa, Oswaldo Abritta, Camillo Soares – , e apoiado pelos modernistas de Belo Horizonte e Juiz de Fora, de São Paulo e Rio de Janeiro. “O movimento modernista em Minas não se limita ao de Belo Horizonte e Juiz de Fora. Também aqui, nesta pequenina cidade de algumas milalmas, cresce a flor maravilhosa do movimento moderno”, escrevia Henrique de Resende na revista Verde n. 1, em 1927. “Todo o Brasil está surpreso: existe Cataguazes! (...) VERDE integrou Cataguazes na realidade nacional atingível.”, escrevia Ribeiro Couto no n. 5 da mesma revista, em 1928.
A reação da cidade ao movimento não foi das melhores, como esclarece a mensagem enviada por José Américo de Almeida ao Grupo Verde em 1927: “Eu sonhei com vocês: todo o Brasil espiando pra Cataguases e Cataguases dando as costas a vocês. Cidade pequena é assim mesmo. Tem raiva de quem fica maior do que ela dentro dela. Vocês, poetas de cidade pequena fizeram de Cataguases uma cidade grande. Porque é grande tudo quanto se vê de longe, inclusive certas coisas pequenas. Queiram bem a Cataguases que não quer bem a vocês. Cataguases é pequena, mas vocês só são grandes porque são poetas de Cataguases" (7).
Quanto às conseqüências do movimento para a cidade , por um lado encontram-se afirmações de que “Cataguases é uma cidade rara. Na década de vinte, o cinema de Humberto Mauro e Pedro Comello fizeram os habitantes da cidade se transformarem em atores e as ruas em cenário. No quarteirão seguinte, a revista Verde ganha o Brasil e a América Latina. Quatro décadas depois, aparecem suplementos literários e concursos de poesia, e a cidade tem que conviver com outra vanguarda.(...) Histórias e estórias criam uma tradição, criam o hábito literário” (8) . Por outro lado, enfatiza-se o caráter “comum” da cidade, a sua quase banalidade enquanto ambiente urbano, a “pequenez” citada por José Américo, se abstraída a efervescência literária: “O que a cidade não sabe é que Cataguases só existiu quando havia a Verde e o cinema de Humberto Mauro. Só será lembrada como uma realidade quando nos tratados de literatura se falar de um certo interessantíssimo período de nossa cultura, que se chamou movimento modernista, ou quando se falar nos primórdios da filmagem no Brasil. No mais não existe, apesar do seu riso, é uma cidade como tantas outras cidades, à beira de um rio como tantos rios, com uma ponte metálica como tantas outras pontes metálicas feitas pela bem pouco imaginosa engenharia estadual” (9).
Portanto, se tomada até aqui a história dessa cidade mineira do sul, prevalecendo o julgamento de José Américo, “uma cidade como tantas outras”, e considerando os critérios de tombamento que direcionam a atuação do IPHAN, não nos restaria senão parafrasear Mario de Andrade: em Cataguases haveria que tombar o sentimento da cidade....Devendo, porém, o tombamento recair sobre “a coisa”, ou sobre “os objetos sólidos que os valores que queremos preservar tingem ou cavalgam”, nas palavras de Ítalo Campofiorito, em Cataguases buscou-se como suporte físico do tombamento um recorte da própria cidade na diversidade dos seus elementos constitutivos, o ambiente das manifestações desse “sentimento moderno”, citando ainda individualmente as obras de arte e de arquitetura mais significativas que colaboraram na construção desse ambiente.
Com o fim da Revista Verde, em 1929, dispersaram-se os intelectuais integrantes do movimento. Francisco Inácio Peixoto, que participara do grupo como poeta e contista e cuja família era proprietária da tecelagem Cataguases, principal foco de desenvolvimento industrial da cidade, viaja para o Rio de Janeiro. Ao retornar, torna-se o principal responsável pela re-introdução de Cataguases na história da modernidade brasileira, sempre contando com a preciosa parceria do escritor Marques Rebelo. Para além de iniciativas gerais de caráter social e “civilizatório”, desta vez o movimento de vanguarda artística na cidade terá sua expressão principal nas áreas das artes e da arquitetura e, diferentemente do movimento literário, não será conduzido por arquitetos e artistas plásticos locais. O líder deste segundo movimento, Francisco Peixoto, é um mecenas esclarecido e impetuoso, ele próprio poeta, que “importa” projetos e obras de artistas da vanguarda carioca, e mesmo nacional e internacional, criando um ambiente na cidade para que a burguesia se interessasse em seguir seus passos e, em seguida, começassem a se generalizar as expressões modernistas locais.
Em 1943, Francisco Inácio Peixoto encomenda ao então jovem arquiteto Oscar Niemeyer o projeto para sua residência em Cataguases. No mesmo momento era concluída a obra do edifício do MES no Rio de Janeiro- atual Palácio Gustavo Capanema – e o governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, encomendava, ao mesmo arquiteto carioca, o projeto para o conjunto da Pampulha. Três anos depois, também atendendo a pedido de Peixoto, Oscar Niemeyer desenvolve o projeto do Colégio Cataguases. A partir de então arquitetos como Carlos Leão, Francisco Bolonha, Aldary Toledo, os irmãos Roberto, Gilberto Lemos, Luzimar Cerqueira de Goes Telles, Flávio Almada; paisagistas como Burle Marx, Carlos Percy e o próprio Bolonha; o designer de móveis Joaquim Tenreiro; artistas como Anisio Medeiros, Portinari, Di Cavalcanti, Djanira, Iberê Camargo, Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Emeric Marcier, Jan Zach, Bruno Giorgi, irão povoar a cidade com suas obras. “A importância de Cataguases está justamente na sua exposição pública (...). Se, por um lado, a partir da construção do Colégio e de outros edifícios públicos sugere-se um convívio cotidiano com a modernidade, por outro a população de maior poder aquisitivo se interessa pela aquisição de acervos modernos propiciando o surgimento de coleções” (10).
Ainda no ano de 1943, Edgar Guimarães do Valle termina o projeto para a nova matriz (concluída apenas em 1968), que deveria substituir a matriz neo-gótica que mal completara 40 anos, e Oscar Niemeyer entrega o projeto para a Casa de Saúde. Dois anos depois Francisco Peixoto e Marques Rebelo discutiam a substituição do eclético Teatro Recreio, palco das manifestações de vanguarda dos anos 20 na cidade, substituição que se efetiva em 1953 com a inauguração do cine-teatro Edgard, projeto de Carlos Leão e Aldary Toledo. A concentração de poderes, econômico e político, nas mãos de um mesmo grupo familiar, por sua vez comprometido com as idéias vanguardistas e com o movimento moderno, criou, neste momento, as condições para a transformação do espaço físico da cidade: “Nota-se claramente a intenção de transformar a cidade mediante um processo que, logo de início, envolve edifícios de grande significado simbólico como a igreja e o teatro. Revela-se, portanto, uma característica do movimento da nova arquitetura que consiste na implicação da reformulação arquitetônica à rede simbólica de um modelo político. Em Cataguases, uma circunstância especial coloca-se neste sentido, quando o fim do período Vargas abre as eleições diretas à prefeitura e o primeiro prefeito eleito é João Inácio Peixoto que, exercendo seu primeiro mandato de 1947 a 1951, apoiará iniciativas de Francisco Peixoto” (11).
Porém, se alguns dos edifícios mais importantes são, simbolicamente, reconstruídos sobre as recentes ruínas dos seus antecessores, como é caso da igreja matriz e do teatro, na maior parte da cidade a linguagem do movimento moderno vai transformando fachadas existentes, enquanto novos projetos de concepção modernista vão ocupando terrenos vagos com residências, edifícios comerciais, conjuntos residenciais operários, escolas, hospitais. Ao mesmo tempo em que os novos edifícios resolvem novos programas, ou dão outras soluções para programas tradicionais, eles passam a ser lidos, codificados e incorporados pela população. Constitui-se assim um conjunto de “vocábulos modernos”, de sotaque local, ao qual recorrem as obras modestas e anônimas que vão povoando a cidade, constituindo um interessante conjunto de construções que o arquiteto Antonio Luiz Dias de Andrade batizou de “arquitetura vernacular moderna”, ambiente que se tornou indissociável das numerosas e excepcionais manifestações da arquitetura moderna “erudita” que povoam Cataguases.
Apesar da preocupação de Marques Rebelo com a urbanização, manifesta na sua correspondência com Francisco Peixoto, e da existência de um projeto para a cidade provavelmente elaborado por Aldary Toledo (12), as obras modernas continuavam a ser semeadas na malha antiga, sem que nenhum plano de renovação tenha sido implantado na cidade. A atual Praça Rui Barbosa, por exemplo, renova-se sob o traço modernista de Luzimar Cerqueira de Goes Telles, recebendo inclusive um coreto projetado por Francisco Bolonha, mas respeitando os limites e o desenho do traçado oitocentista.
Do ponto de vista da preservação, é importante ressaltar o fato de que Cataguases, cidade pequena e provinciana nos anos 1920 quando se torna palco de importante movimento de vanguarda, e que passa mais tarde por essa verdadeira “transformação moderna”, não chegou a negar e excluir os diferentes testemunhos do seu processo de formação. Em Cataguases , apesar da exceção representada pela igreja matriz e pelo teatro, não houve “tábula rasa” como regra para o crescimento urbano e o tombamento optou por levar esse fato em conta, considerando-o como parte de sua história e de sua identidade. Portanto, o movimento de renovação modernista de Cataguases foi tomado na sua integridade, no tempo e no espaço, assim como nas diferentes expressões artísticas das quais se constituiu, a consubstanciação mesma da “síntese das artes”. Assim é que a proteção recaiu sobre o paisagismo, sobre o mobiliário e as obras de arte no contexto dos edifícios, sobre os edifícios no contexto da cidade, considerada como ambiente histórico, plural e heterogêneo. Ao desenhar uma poligonal de proteção onde estão localizados 16 edifícios citados individualmente (dos quais 11 representantes da arquitetura do movimento moderno), não cedendo à tentação mais evidente de proteger obras isoladas de artistas hoje reconhecidos, o processo de tombamento de Cataguases optou por considerar os bens no contexto da cidade e de sua história, e não no contexto das obras de seus respectivos autores.
A “cidade modernista”, que teve que esperar 20 anos a partir do surgimento dos movimentos de vanguarda para começar a se concretizar, foi construída sobre a malha original do século XIX, pavimentada de paralelepípedos e sombreada de oitis. Mais do que permitir, ela propiciou a coexistência concreta de diferentes épocas, a transformação e a conservação harmônicas do casario simples e dos edifícios que construíram sua história de “cidade brasileira comum”, como bem observa Sebastião Martins, ainda no ano de 1992: “Ao longo do rio e do córrego, é possível descobrir as marcas das diversas etapas que a região viveu. Sinais do garimpo frustrado no Meia Pataca. Do café, que garantiu a ocupação da terra. Das primeiras instalações hidrelétricas. Das tecelagens pioneiras e do modernismo que vestiu a cidade de verde” (13).
Talvez tenhamos chegado ao ponto que singulariza Cataguases no seu estudo de tombamento, base para se estabelecer os critérios de proteção: o moderno como parte do processo histórico. Para que esses critérios fiquem claros, ou melhor, para que fique claro porque Cataguases, na sua complexidade aceite, está longe de ser a “Ouro Preto da modernidade”, reproduzimos abaixo trechos do parecer justificativo do processo de tombamento do IPHAN, elaborado pelo arquiteto Antonio Luiz Dias de Andrade:
“(...) No plano conceitual é mister situar o debate, orientando-se no sentido de superação da dicotomia entre as obras tidas e havidas de excepcional valor, expressões máximas e acabadas de novos enunciados estéticos, emblemáticas de um novo período artístico ou reveladoras de notáveis qualidades de seus criadores aquelas que apenas denotam os padrões recorrentes, diluídas nas paisagens rotineiras do cotidiano urbano ‘que não são dignas de admiração, não orgulham o país e nem celebrizam o autor delas’( Mario de Andrade). Esforço de superação que pressupõe a compreensão dos bens culturais de forma indissociável dos quadros de vida dos quais são parte integrante, denunciando os conflitos e as contradições da realidade.(...) Coloca-se contudo a dificuldade de se traduzir a real dimensão dos processos culturais ali ocorridos na seleção de um conjunto de bens para efeito de sua respectiva inscrição nos Livros do Tombo. Com efeito, permanecem como testemunhas evidentes, denunciando os movimentos culturais que conferem notoriedade à cidade, as obras de arquitetura moderna, seu mobiliário e acervo artístico, insuficientes, entretanto, para atestar a complexidade, amplitude, e até mesmo as contradições, das iniciativas ‘modernistas de Cataguases’.
Restrito o tombamento às obras de arquitetura mais representativas, não há como evitar a redução do sentido e o significado do movimento moderno alcançados na cidade. Há o risco inclusive destas obras virem a ser compreendidas como referências significativas no quadro da produção de arquitetos ilustres, autores de seus respectivos projetos, e que têm assegurado lugar de destaque na historiografia da arquitetura moderna no Brasil, dissociando-as, portanto, das peculiares condições em que foram produzidas em Cataguases, e de seus antecedentes.(...) Mesmo apreendidas no âmbito da fisionomia urbana, tais obras não configuram um conjunto homogêneo e articulado, encontrando-se disseminadas na cidade, mesclando-se às manifestações de períodos mais antigos, ora perturbadas pela presença de construções recentes, sem nenhum caráter, desorientando as tentativas de se identificar uma área de abrangência e tratar o problema na sua dimensão urbanística.(...) A melhor forma de se promover o reconhecimento e a proteção do patrimônio cultural da cidade é considerá-lo enquanto parte integrante do centro urbano; a ausência de unidade enfatiza uma das principais características do movimento moderno de Cataguases, qual seja, seu caráter inconcluso.
(...) Francisco Inácio Peixoto declarou, em uma de suas últimas entrevistas, que Cataguases havia sido um grande equívoco, pensando assim justificar o insucesso de seu empenho em moldar a cidade à imagem do projeto professado pelos arquitetos modernos.
Permanecem mesclado aos modernos edifícios, os sinais do passado, estabelecendo contraponto, diálogo silenciosos que faz desvelar as entranhas dos processos de vida que acompanham a história da cidade. (...) Surge em Cataguases uma arquitetura moderna ‘vernacular’. Os padrões acatados pelas elites servem como fonte de inspiração para reelaborações anônimas, reproduções adaptadas.” (14)
Na seqüência do procedimento de tombamento, Cataguases deveria ter os limites da sua poligonal de proteção estabelecidos. Ainda, como Centro Histórico, Cataguases deveria dispor de critérios e normas que disciplinassem a sua gestão, como bem concluiu o parecerista. E aqui começaram os problemas. Conceitual e metodologicamente, o parecer avançou no enfoque da questão da arquitetura moderna no contexto da cidade de Cataguases e da sua proteção, definindo um “novo conceito de Centro Histórico”, nas palavras de Antonio Luiz Dias de Andrade, ou uma “área de interesse cultural” ou “lugar da modernidade”, nas palavras de Ítalo Campofiorito. A originalidade da proposta fez com que, na ocasião, só fosse possível adiantar hipóteses e sugestões para esse trabalho subseqüente, que é a gestão: o inventário sistemático dos bens contidos na poligonal traçada e a constituição de um Conselho Municipal, de caráter deliberativo, composto de representações de entidades locais, estaduais e federais, para decidir sobre as intervenções no perímetro protegido.
De fato, o trabalho foi se definindo na prática cotidiana. Confirmou-se de imediato, de forma mais veemente do que já se tem confirmado nos outros Centros Históricos, devido talvez às características da cidade e de seu tombamento, que a única forma de gerir esse espaço protegido seria através de uma parceria com o município. Em outras palavras, o município deveria discutir e incorporar os critérios de proteção federal em um plano diretor municipal, implementado pela prefeitura apenas com orientação e fiscalização do IPHAN.
Porém, na realidade da ação de nossas instituições públicas e das políticas municipais, nada é tão simples. Em meio aos trabalhos da Regional do IPHAN na cidade, durante os trabalhos de instrução do processo de tombamento que contava com o apoio da prefeitura, mais precisamente em fevereiro de 1995, exatos 10 meses antes da decisão de tombamento, foi votado pela Câmara Municipal um novo “Código de Zoneamento, Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo Urbano” (leis nº 2427 e 2428), código este que não traduz nenhuma das preocupações com a preservação que estavam em discussão no âmbito do estudo de tombamento, chegando a se contrapor a ele quando recomenda, por exemplo, o adensamento da área central, praticamente coincidente com a poligonal de proteção.
Com a mudança de gestão municipal, o Conselho Municipal demorou três anos para ser criado e quando finalmente passou a funcionar tinha caráter consultivo e não deliberativo, e funções amplas, abrangendo todas as questões culturais do município, porém não contando com representações de órgãos e instituições que pudessem colaborar na aplicação dos critérios de tombamento. Paradoxalmente, na mesma ocasião, estimulada por uma legislação estadual que beneficia financeiramente os municípios com patrimônio protegido, a prefeitura tombou através de decreto municipal a mesma poligonal definida pelo IPHAN, da qual continuava discordando na prática de sua gestão.
A Regional do IPHAN em Minas Gerais associou-se à Regional do IPHAN em São Paulo para análise dos processos visando à aprovação de novos projetos e transformações na poligonal tombada (15), e com a Universidade Federal de Viçosa que, através de projeto de pesquisa da arquiteta Marta Camisassa, iniciou a elaboração do necessário inventário de conhecimento da cidade. Conjuntamente, as duas regionais do IPHAN e a Universidade, conduziram pesquisas, estudos e conversações com a Prefeitura, na busca de uma fórmula de consenso que permitisse a gestão eficiente, leia-se a preservação da cidade de Cataguases, considerados os critérios e justificativas do seu tombamento bem como as necessidades e a dinâmica intrínseca da cidade. Ou seja, o IPHAN buscou a parceria da Universidade e do município, aceitando o desafio de criar instrumentos e procedimentos para a implantação de políticas de gestão do Centro Histórico e de sua preservação efetiva compatíveis com o conteúdo conceitual da instrução de tombamento a qual, por sua vez, propôs importantes mudanças no enfoque de proteção de um Centro Histórico.
Pretendemos expor o problema de Cataguases do ponto de vista da sua proteção enquanto patrimônio da modernidade brasileira, recuperando os passos do processo de tombamento, do estudo histórico às discussões conceituais, até as primeiras diligências no sentido de viabilizar a gestão do Centro Histórico tombado. Mas é preciso assinalar que esse texto é, de certa forma, datado. Foi escrito como memória de trabalho, ou testemunho de um conhecimento produzido, no ano de 1999 – no momento em que o IPHAN passava por mudanças políticas e de orientação técnica e as autoras se afastaram da instituição –, para ser apresentado no III Seminário Nacional DOCOMOMO / Brasil / dez 1999 / SP. Não temos conhecimento das diretrizes adotadas desde então para a preservação de Cataguases. Mas esperamos que as ações com o objetivo de aproximar as diferentes instâncias responsáveis pela gestão de seu precioso patrimônio tenham tido continuidade, assim como as discussões sobre critérios de proteção a serem implementados, já que delas depende a integridade do Centro Histórico tombado.
De qualquer forma, é difícil prever o destino de Cataguases, cidade tão brasileira na superposição de sucessivas modernidades, na interiorização de ciclos de inovação estrangeiros devidamente reciclados, somando diferenças e mesmo contradições que a tornam a mais comum das cidades brasileiras e, ao mesmo tempo, a mais especialmente moderna (16).
notas
[As fotos do Pedro Lobo foram realizadas para o dossiê de tombamento de Cataguases pelo IPHAN. Fonte: IPHAN-BH]
1
Artigo escrito no ano de 1999 para ser apresentado no III Seminário Nacional DOCOMOMO Brasil. São Paulo, dez. 1999.
2
“Processo de Tombamento – Cataguases/MG” [Ministério da Cultura / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 13a Coordenadoria Regional/Belo Horizonte, 1994, supervisão arq. Claudia Lage, coordenação geral Lidia Avelar Estanislau, parecer de tombamento arq. Antonio Luiz Dias de Andrade, 60 ps. e 3 anexos], p. 9-20.
3
Rezende, Astolfo Vieira de, “O Município de Cataguases”, 1908, in: processo de tombamento, p. 22.
4
"Processo de Tombamento", p. 22-23.
5
"Processo de Tombamento", p. 22-23. Sobre a história do desenvolvimento urbano e da arquitetura de Cataguases, ver especialmente o artigo de Selma Melo Miranda, “Arquitetura Moderna em Cataguases”, in: revista Oculum 7/8, abril 1996, São Paulo.
6
Werneck, Humberto, “Os ases de Cataguases”, 1994, in: processo de tombamento, p.26.
7
Almeida, José Américo de , “Mensagem ao Grupo Verde”, rev. Verde out. 27, in: “A revista Verde e o Movimento Modernista em Cataguases 1927-29), pesquisa de Valéria Abritta Teixeira, Juiz de Fora, out. 88, in-folio.
8
Moran, Patricia, “A descoberta de Cataguases”. In Processo de tombamento, p. 33.
9
REBELO, Marques. “Cataguases 1937”, 1967. In Processo de tombamento, p. 28-29.
10
ÁVILA, Cristina. “Cataguases: a importação plástica como vontade modernista”. In Processo de tombamento, p. 38.
11
MIRANDA, Selma Melo. “Arquitetura Moderna em Cataguases”, revista Óculum 7/8. Campinas, abr. 1996, p. 25.
12
MIRANDA, Selma Melo. Op. cit., p. 25.
13
MARTINS, Sebastião, “Somos o que queremos ser”, 1992, in: processo de tombamento, p. 21.
14
"Processo de Tombamento", p. 47-55.
15
Participaram dessa ação, de 1995 a 1999: a Regional do IPHAN de Minas Gerais, responsável pela condução dos trabalhos, nas pessoas da então Coordenadora Regional, arquiteta Claudia Lage, e da arquiteta Marilia Machado Rangel, com a colaboração da Regional do IPHAN em São Paulo, nas pessoas da então Coordenadora Regional, arquiteta Cecília Rodrigues dos Santos e do arquiteto Antonio Luiz Dias de Andrade, responsável pelo parecer justificativo do tombamento. Na ocasião, o Iphan tinha como presidente o arquiteto Glauco Campello e como diretor de proteção o arquiteto Sabino Barroso.
16
NE – Sobre a arquitetura moderna em Cataguases, ver COUTO, Thiago Segall. Patrimônio modernista em Cataguases: razões de reconhecimento e o véu da crítica. Portal Vitruvius, Textos Especiais Arquitextos, n. 264, nov. 2004, <www.arquitextos.com.br/arquitextos/arq000/esp264.asp>.
sobre os autores
Cecília Rodrigues dos Santos é arquiteta, doutoranda, professora da Faculdade de Arquitetura na Universidade Presbiteriana Mackenzie e consultora para a área de patrimônio cultural, crítica de arquitetura e co-autora de "Le Corbusier e o Brasil"
Claudia Marcia Freire Lage é arquiteta, especialista em preservação do patrimônio cultural. Foi superintendente regional do IPHAN em MG (1992/99), onde coordenou o Inventário Nacional de Bens Imóveis de MG, os planos de preservação para as cidades mineiras tombadas, o dossiê de candidatura da cidade de Diamantina Patrimônio Mundial, entre outros projetos. Trabalha como assessora técnica em patrimônio cultural do Ministério Público Federal em Belo Horizonte MG