Viajamos, Diana e eu, mais de quatro mil quilômetros para chegar aqui. Foi um investimento grande de tempo, quatro dias pelas estradas, cansaços, impaciências! Um preço muito barato pelo que a paisagem do Bosque Petrificado de Sarmiento, com suas camadas, rochas, erosões e cores nos contaram! E pela beleza que ela encerra, através de cores que são lições e sugestões para qualquer pintor. E volumes, texturas e erosão, qual esculturas lindamente distribuídas pelos vales e encostas espetaculares, tudo como que obedecendo a um plano paisagístico elaborado ao longo de 65 milhões de anos! E que, no tempo geológico, sofre e ainda vai sofrer muitas transformações.
Há várias formas de ler uma paisagem. A sua história pode ser revelada através dos tempos geológicos e também das marcas antrópicas, aquelas que o homem deixou impressas, em sua curta presença no planeta (1). Pode-se ler uma paisagem pelos sons que ela produz (2) ou pela agricultura ali praticada (3), pela ocupação do solo ou pela rede de circulações, pelo tipo de transportes que o homem utiliza ou pela configuração, tamanho, forma e quantidade de fragmentos de florestas que ali restaram (4). São informações subjacentes, ocultas aos olhares mais distraídos, mas que enriquecem a apreciação com uma carga de informação relevante e significativa. Solos, rochas, texturas, cores, processos químicos, corpos d’água (e suas tonalidades, turbidez etc.), processos de alterações em marcha, naturais ou não, como deslizamentos, incêndios, avalanches, inundações são preciosos dados para uma compreensão melhor da paisagem e da sua gênese.
Um dos aspectos mais ricos a explorar, a entender, está no subsolo. Muitas vezes revelado por processos erosivos que expõem suas distintas camadas, uma leitura vertical do solo é sempre enriquecedora, os dados dali retirados explicam, de forma muito clara, o quando, o como e o porquê daquela paisagem. Novamente são as cores que caracterizam cada camada, sua idade, em quanto tempo se formaram, que seres vivos existiam ali então. Bem, está bom de prólogo. Vamos em frente!
Aproximadamente no centro da Patagônia argentina, a 30km da cidade de Sarmiento, encontra-se o Bosque Petrificado, protegido como área natural (categoria como unidade de conservação: “Monumento Natural”) no nível provincial, município de Sarmiento, no estado Chubut, Argentina. A formação remonta ao paleoceno (início da era cenozoica, ca. 65 milhões de anos atrás). Também já é suficiente, para nossos propósitos, como caracterização!
A paisagem geral é a estepe patagônica, que impressiona pela desolação, pela aridez, pelo aspecto lunar. Muito difícil imaginar que houve, em outro momento, florestas com araucárias e outras coníferas por aqui, como testemunham os troncos e pedaços petrificados, espalhados por todo o sítio.
O processo de petrificação é muito interessante. As árvores que aqui habitavam morreram por falta de umidade, decorrente da elevação dos Andes. As novas montanhas se constituíram numa barreira à passagem da umidade do Pacífico, antes trazida pelos ventos dominantes que, quase todo o tempo, sopram forte de oeste. Os troncos caídos foram cobertos por sedimentos (5), enterrados em ambiente anaeróbico, sem vida. A falta de micro-organismos impediu o processo de apodrecimento. Com as chuvas, a água que penetrou no solo foi carreando sais de sílica para os espaços intercelulares da madeira morta. Quando a água secou esses silicatos endureceram, petrificaram. Na verdade, a rocha resultante é o negativo da madeira, pois que a sílica ocupou todos os espaços livres no nível celular. Episódios posteriores de chuva e de vento foram removendo o solo e desenterrando, gradativamente os troncos. Vê-se madeira petrificada em diversas alturas e a retirada continuada da areia vai dando à paisagem um aspecto de escombros.
Outra feição significativa da paisagem no Parque é a exposição de camadas coloridas, percebidas a uma certa distância (6). Aqui está descrita a formação daquela paisagem: cada camada conta a história de uma época, informa o tempo de sedimentação para se formar, as predominâncias químicas nos solos de então e que seres vivos habitavam a área. Pegadas de dinossauros, suas ossadas, grãos de pólen conservados por milhões de anos nos contam como era a vida neste local. Nos milhões de anos que se passaram o mar entrou, o mar saiu, formaram-se pântanos, processos lentíssimos de sedimentação alteraram os níveis e a topografia, levas de seres vivos vieram e se foram. Madeira virou pedra, a cinza dos vulcões e a areia foram trazidas e levadas pelos ventos, distintos grupos de animais aqui viveram e morreram!
À luz do tempo geológico este processo paisagístico, vagaroso e constante, continua ocorrendo. As avalanches indicam que os Andes ainda estão subindo. Os mesmos ventos de milhões de anos atrás continuam soprando. Emociona muito mais olhar a paisagem por este lado de rico dinamismo e não como se ela fosse apenas o que nossos olhos podem ver num ridículo recorte do tempo!
notas
1
O famoso “calendário cósmico” proposto por Carl Sagan indica que, se reduzirmos a escala do tempo do universo – desde o Big Bang até hoje – para um ano, o homem surge somente quando faltam alguns segundos para a meia-noite do dia 31 de dezembro!
2
O norte-americano Bernie Krause, músico e ecologista da paisagem sonora, mostra ser possível classificar ou identificar uma paisagem a partir dos sons que dela emanam. Ver: KRAUSE, Bernie. A grande orquestra da natureza. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.
3
No Espírito Santo, aprendemos que quem conhece a diferença entre os pés de café dos tipos arábica e conilon sabe a faixa de altitude em que se encontra. Basta olhar os cafezais, pois o arábica, de melhor qualidade, só deve ser plantado acima dos 400m.
4
Remanescentes florestais com forma mais geometrizada respondem a um processo em que os terrenos são mais planos e a malha fundiária foi determinante na eliminação das florestas. Em contrapartida, fragmentos com formas mais indefinidas, mais numerosos e próximos uns dos outros correspondem a regiões montanhosas, nas quais costumam sobrar florestas nas áreas de maior declividade e ao longo dos rios (áreas de inundações).
5
Aqui encontramos uma contradição. As informações no Parque Provincial identificam tais sedimentos como areia. Em muitas publicações, entretanto, vimos que são provenientes de erupções vulcânicas, portanto, cinzas! Não tentamos esclarecer essa controvérsia. Se alguém se animar, sinta-se à vontade!
6
Em nossa visita, o acesso que permite chegar bem próximo dessas camadas estava fechado aos visitantes.
sobre o autor
José Tabacow é arquiteto (UFRJ, 1968), especialista em ecologia e recursos naturais (UFES, 1991) e doutor em geografia (UFRJ, 2002). Professor de paisagismo em diversas instituições, foi sócio do escritório Burle Marx Cia Ltda (1967-1982). É autor dos livros Arte e paisagem (Nobel, 1987), Árvores (AC&M, 1989) e Rio natureza (Rio Arte/ PMRJ, 1981). Em 2017 recebeu a medalha Mário de Andrade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.