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VILELA, Jorge. Liberdade não deveria virar museu. Minha Cidade, São Paulo, ano 05, n. 049.04, Vitruvius, ago. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/05.049/2000>.
“Para todo problema complexo, há sempre uma solução simples, plausível e errada"
H.L. Mencken
Dentre os eventos culturais mais significativos da história de Minas, quatro deles estão entre os que mais contribuíram para construir sua identidade, projetando-a no cenário nacional e internacional: o Barroco Mineiro, a construção da Nova Capital, o Conjunto da Pampulha e o movimento musical Clube da Esquina.
Deixando de lado a posição ímpar do Barroco Mineiro, a importância do Conjunto da Pampulha cuja requalificação em boa hora está sendo iniciada e o movimento Clube da Esquina, há que se procurar o significado profundo do ideal que representou a construção de Belo Horizonte para um Estado que, com identidade política, econômica e cultural formada desde os primórdios do século XVIII, tinha, nos primeiros anos da república, sua integridade e unidade ameaçadas pelos movimentos separatistas, em campanhas abertas no Sul de Minas e Zona da Mata e em ensaios menos ousados no Norte de Minas e no Triângulo Mineiro.
A nova Capital veio a um só tempo, negar a ordem monárquica e colonial representada por Ouro Preto, exaltar o espírito republicano, desestimular os movimentos separatistas e criar condições para a integração de suas diversas regiões a partir de uma nova centralidade, que sustentasse um processo de industrialização semelhante aos de São Paulo e Rio de Janeiro.
Inspirada na ideologia do movimento republicano a planta da Cidade de Minas se destacava pela simetria de seu traçado em rede, resultado da superposição de malhas ortogonais de amplas ruas e avenidas, sobrepostas em ângulo de 45 graus e, principalmente, pela localização e distribuição dos equipamentos públicos e órgãos do governo. Esses, obedecendo a critérios que evidenciavam a monumentalidade do poder, valorizando suas perspectivas e visadas, inseriam-se de forma natural na malha urbana da nova capital.
A par das mutilações sofridas ao longo do processo de formação da Nova Capital, o chamado plano de Aarão Reis chega até nossos dias guardando ainda significativas referências que garantem, pelo menos em parte, sua integridade. Dentre elas se destaca o conjunto da Praça da Liberdade que, previsto inicialmente para receber apenas o Palácio do Governo, passou a concentrar os prédios das secretarias de Estado, transformando-se ao mesmo tempo em centro do Poder Estadual e referência da identidade libertária do povo mineiro, um dos principais ícones da mineiridade.
A Praça da Liberdade se tornou o espaço de um Poder que não tinha temores, que não precisava se resguardar e que se integrava de forma natural na malha urbana como se brotasse dela. Ao longo da história, espaço e poder se legitimaram através dos gestos firmes, determinados, simples e singelos, dos homens públicos que representaram o que Afonso Arinos de Melo Franco chamou de maior poder da jovem república brasileira: o Estado de Minas Gerais.
Dentre eles poderíamos destacar o do Governador Israel Pinheiro que, tendo encomendado a Niemeyer um projeto para a ampliação das instalações do Palácio da Liberdade, recusou indignado a solução proposta, porque previa a demolição do atual palácio.
Ou o de Wenceslau Bráz que, encerrado seu mandato como Presidente do Estado, tomou um coche de aluguel na praça da Liberdade e foi para a estação esperar o trem para Itajubá, levando apenas sua bagagem de mão.
Ou ainda a repulsa do então Presidente do Estado Bias Fortes ao discurso proferido por um ardente republicano durante a inauguração da Capital, sugerindo-lhe que mudasse o nome da avenida Liberdade para avenida Marechal Floriano. Prontamente o austero Bias respondeu, “que se podia dar esse nome glorioso a qualquer outra rua, conservando-se o da avenida Liberdade.” Não substituiria o nome da avenida Liberdade, o nome do marechal que, na Presidência da República, tentara derrubar o primeiro Governo Constitucional de Minas. Poucos anos depois a avenida Liberdade tomava o nome de avenida João Pinheiro, justa homenagem a uma das mais promissoras e afirmativas lideranças políticas de Minas, que morrera precocemente no exercício da presidência do Estado.
Não há como negar a importância cívica do espaço da Praça da Liberdade nos momentos decisivos da vida nacional, assim como não há como esquecer a história que ao longo de uma centena de anos consolidou a unidade de uma Minas que, como dizia Guimarães Rosa, “são várias”, e, sendo várias, quase se fragmentaram, não fosse a importância simbólica da Nova Capital. Especialmente a importância de uma praça nascida com o nome de Liberdade, que para Tancredo Neves era “o outro nome de Minas.”
O conjunto da Praça da Liberdade está na ordem do dia, na forma de um “palpite infeliz”. Segundo consta, o governo do Estado encomendou um projeto para um novo centro administrativo a ser construído no aeroporto Carlos Prates e pretende transformar o conjunto dos prédios públicos localizados na Praça da Liberdade em centro cultural.
Será que esse espaço já não tem o papel para o qual foi concebido, quando da mudança da Capital? Sua importância simbólica enquanto espaço do Poder Estadual, construída ao longo dos últimos cem anos, deixou de ser importante para a identidade mineira?
Estudos vários e rigorosos demonstram que Belo Horizonte ainda não exerce na plenitude seu papel de Capital de todo o território de Minas, já que sua influência só consegue polarizar, além de sua vizinhança imediata, as regiões mais pobres do Estado. Mais do que nunca Minas continua a reclamar ações estratégicas no sentido de reforçar sua identidade, buscando-se inserir de uma forma mais adequada na rede de fluxos da economia global, revalorizando seus ativos, sejam eles políticos, econômicos ou culturais. Nesse processo a dimensão simbólica de seus ícones ganha importância fundamental. Há que serem reforçados, requalificados, nunca abandonados ou descaracterizados.
Evocando o poeta Thiago de Mello, que não é mineiro mas entende de liberdade e que, com muita propriedade, decretou em um de seus poemas que “a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou como um rio,” fica claro e patente que o conjunto da praça da Liberdade não deveria virar museu.
sobre o autor
Jorge F. Vilela, arquiteto, foi Diretor do PLAMBEL e Secretário Municipal de Atividades Urbanas em Belo Horizonte.