Em 2002 se comemoram os centenários de nascimento de Lucio Costa e Carlos Drummond de Andrade, cujas trajetórias se cruzaram nos anos 40, nos corredores da sede do Ministério de Educação. O prédio do centro do Rio também abrigava o IPHAN, onde Drummond foi chefe da Seção de História, na Divisão de Estudos e Tombamento dirigida por Lucio. O poeta, da janela de sua sala, via os arranha-céus se erguendo nos arredores e ocupando o horizonte. Para a compreensão de como isto aconteceu é extremamente oportuno o aparecimento de Paradoxos entrelaçados, da arquiteta Cêça Guimaraens, publicado pela Editora da UFRJ e fruto de uma tese de doutorado defendida na mesma universidade. O próprio subtítulo da obra – "as torres para o futuro e a tradição nacional" – antecipa o eixo da pesquisa que historia e analisa, destacando alguns exemplos emblemáticos, o processo de constituição da paisagem urbana contemporânea da área central do Rio de Janeiro. Um processo que poderia ser simplificado de maneira maniqueísta pela atuação antagônica de duas pressões: a preservadora, que valoriza o patrimônio e a paisagem, e a transformadora, que busca o aproveitamento do espaço com o máximo de lucratividade.
O grande mérito do livro está justamente em recusar esta dicotomia fácil e partir para o exame do papel do IPHAN, órgão criado em 1937 pelo governo Vargas e encarregado da proteção do patrimônio histórico e artístico da Nação, e que desde o início de sua atuação encarregou-se de zelar pela manutenção da ambiência original dos bens tombados, estendendo a sua jurisdição para os entornos de antigas fortalezas, igrejas e construções civis. Em algumas cidades, como Ouro Preto, Parati e Diamantina, a aparência de unidade das edificações facilitou o trabalho e favoreceu o tombamento em bloco dos centros urbanos; mas no Rio, metrópole-capital, a questão seria mais complexa. Como conciliar o crescimento da cidade e a proteção ao patrimônio?
Nestas circunstâncias, o processo de verticalização que se acelera no Rio de Janeiro a partir da década de 1930 dialoga, na área central, com as restrições impostas pelos tombamentos que salpicaram o mapa de pontos em torno dos quais o gabarito, a taxa de ocupação, o recuo e até o estilo seriam fruto de negociações entre os interesses privados e o poder público. É da comparação deste mapa com outro, que apresenta os edifícios altos, que surge a resultante, mostrando que a convivência, longe de ser sempre combatida, foi muitas vezes incentivada pelo IPHAN.
O fato não é tão paradoxal assim, na medida em que vários dos arquitetos que lá trabalhavam partilharam o encanto pelas idéias de Le Corbusier e a reverência erudita pela arte e arquitetura do período colonial. Este entrelaçamento singular entre o modernismo brasileiro e a preservação institucionalizada do patrimônio foi corporificado na trajetória de Lucio Costa, um dos maiores conhecedores da nossa arquitetura colonial, marcado pela ruptura com o ecletismo e o neocolonial e pela tentativa frustrada de modernizar o ensino na Escola Nacional de Belas Artes ainda em 1931. Lucio lideraria a equipe que projetou a nova sede do Ministério da Educação a partir de 1935, prédio-símbolo do início da hegemonia institucional dos arquitetos modernistas, e a ele caberia, até bem depois de sua aposentadoria, em 1972, a decisão final nos processos importantes que chegavam ao IPHAN. Em paralelo, foi arquiteto, escritor prolífico e autor dos planos-piloto de Brasília e da Barra da Tijuca.
Em vários de seus escritos e projetos Lucio ajudou a reforçar a idéia de que não havia contradição entre edifícios altos e a preservação da ambiência urbana, desde que fossem evitados os aglomerados como o que foi fincado na Cinelândia nos anos 20 e30, que impede a insolação, a ventilação e a visada das fachadas. Para ele (como afirmava em carta a Rodrigo Melo Franco, diretor do IPHAN) “a boa arquitetura de um determinado período vai sempre bem com a de qualquer período anterior... o que não combina com coisa nenhuma é a falta de arquitetura”. Desde que os arranha-céus respeitassem certos parâmetros, despiriam-se de sua carga simbólica negativa, deixando de ser os totens da especulação imobiliária e passando a ícones da convivência harmônica entre paisagem, passado e modernidade. Seria possível adensar para preservar.
A materialização deste e de outros textos de Lucio e de Rodrigo é acompanhada por Cêça de forma sistemática, iluminando assim as trajetórias jurídico-burocráticas dos projetos de licenciamento, onde se assiste aos argumentos e contra-argumentos que envolvem proprietários, empreendedores, arquitetos e técnicos do IPHAN; as resultantes são apresentadas em imagens que se constituem em complementos indispensáveis para a leitura, na medida em que revelam – em plantas, perspectivas e elevações – o diálogo entre os atores, novos e antigos, no tecido urbano do centro do Rio. E eles são introduzidos um a um: o Arco do Teles setecentista e o edifício que o envolve, projeto de Francisco Bolonha que contou com o risco do próprio Lucio Costa; também na Praça XV de Novembro, o antigo convento das Carmelitas e a torre Cândido Mendes; o pequeno sobrado na rua Mayrink Veiga e o prédio da White Martins; e finalmente a própria sede do MEC, tombada em 1948, poucos anos após a conclusão das obras.
Exemplo de arranha-céu belo e funcional, em quadra ampla e aberta aos pedestres, refrescada pelos ventos marinhos, o MEC vai se ver progressivamente cercado de edifícios altos, mais compactos e menos generosos. O sonho de uma verticalização bucólica, de torres surgindo em meio aos bosques e jardins, emoldurados pela silhueta singular das montanhas cariocas, vai se revelar utópico. O livro de Cêça disseca todo este processo e se constitui em referência obrigatória para quem gosta de ler – e quer entender – o Rio de Janeiro; a obra é ótima companheira para uma caminhada no centro da cidade. Infelizmente, na realidade em que vivemos – tão distante daquela com que sonhava Lucio Costa e que inspirava Drummond, do alto do prédio do MEC – o espaço não-cercado é anátema, sinônimo de insegurança, vandalismo e abandono; a superfície de todos se tornou a terra de ninguém.
[resenha parcialmente publicada no Jornal do Brasil, Caderno Idéias, 08 mar. 2003]
sobre o autor
Carlos Kessel é arquiteto (FAU/UFRJ), mestre e doutor em História Social (IFCS/UFRJ), pesquisador associado do Centro de Referência Luso-brasileira do Museu Histórico Nacional