Para um leitor, como a autora desta resenha, que não é nenhum especialista em história, o livro de Myriam Bahia Lopes, O Rio em Movimento. Quadros Médicos e(m) História. 1890-1920, reserva surpresas instigantes. Embora trate de um período relativamente curto e de um episódio singular, A Revolta da Vacina, restrito ao Rio de Janeiro, ele levanta questões que dizem respeito tanto à representação do passado quanto à representação da especificidade brasileira deste passado. Este questionamento historiográfico salutar leva o leitor, atento à voz crítica que ali se articula, com discrição certamente, mas com firmeza, a se perguntar se alguns lugares comuns da interpretação do Brasil de hoje não poderiam, igualmente, ser chacoalhados com proveito. Desde o início, Myriam define seu livro como um ensaio, isto é uma tentativa, ou como ela também diz, uma luta. O livro apresenta um momento histórico preciso e um acontecimento singular, mas, ao mesmo tempo e de forma inseparável, também procede a uma constante auto-reflexão sobre as categorias empregadas nesta apresentação, categorias como "modernidade" (versus "atraso"), civilização, "regeneração" (versus "decadência"). Esta "luta implícita contra a rigidez das palavras", assim Myriam, faz deste texto um pequeno laboratório de indagações preciosas sobre algumas idéias prontas, mesmo que bem intencionadas e progressistas, que circulam a respeito de nossa "triste realidade nacional", como se diz, e que impedem que se tenha uma percepção mais atenta de sua complexidade, de seus paradoxos, talvez até de suas contradições, de suas possibilidades insuspeitas também. !Para estimular esta percepção mais fina, para "intervir nas imagens cristalizadas na memória histórica", Myriam lança mão de uma quantidade e de uma diversidade notáveis de documentos – dos quais a lista de Fontes consultadas, no fim do volume, dá uma boa idéia. Arquivos, bibliotecas, fundações, casas, museus, correspondências, jornais fornecem não só textos, mas também canções e imagens que apontam para uma multiplicidade de visões, de interpretações e, portanto, de narrações dos acontecimentos. Só queria ressaltar aqui o olhar perspicaz de Myriam quando analisa as fotografias da época, estas imagens que não reproduzem a realidade, mas são, elas também, construções ideológicas e artísticas. Um exemplo: a construção de "tipos" urbanos, isto é de figuras isoladas do seu contexto concreto de rua ou de moradia graças ao fundo, fornecido por um pano branco que recobre o resto, pano que o fotógrafo, Marc Ferrez, carrega consigo.
Myriam estabelece um contraste entre várias fotografias assépticas do Rio em obras, protótipos de uma modernização urbana ordenada, e as numerosas caricaturas que apontam para a sujeira, o desconforto, a exclusão dos moradores em decorrência deste mesmo processo de "modernização". Assim, as ilustrações fazem mais que "ilustrar" o texto escrito; tornam-se documentos à part entière que trazem outras informações possíveis e de uma outra forma que o documento escrito. No último capítulo, especificamente consagrado à eclosão e ao desenrolar da Revolta, temos croquis cuidadosamente elaborados segundo os bairros cariocas e o dia, munidos de um sistema de convenções desenhadas pela autora (como "bonde virado", "crianças representando batalhas", "pancadarias" ou "quartel de polícia"); texto e croquis se apóiam e se comentam mutuamente, num esforço visível de deixar em aberto a interpretação dos acontecimentos: no cenário da cidade, que os mapas apresentam, os revoltosos encenam uma história cujo desfecho não está prefixado e cuja conclusão não é definitiva. A respeito do fim da Revolta, só se pode afirmar, com segurança, o seguinte: "Os presos, em torno de setecentos, aguardaram na Ilha das Cobras, antes de serem enviados para o Acre". A imagem corrente da Revolta da Vacina é a de um levante popular provocado pela pobreza e cujo pretexto é a resistência da população mais simples à obrigatoriedade da vacina contra a varíola. Ademais, em vez de esclarecer o povo sobre os benefícios da medida, vários jornais de oposição se aproveitaram de sua ingenuidade para propagar a suspeita que a vacina transmite doenças em vez de combatê-las. Assim se monta um quadro composto pelo atraso brasileiro (em relação ao resto do mundo moderno e higiênico), pelo obscurantismo popular encorajado pela miséria, e pela manipulação proveniente de alguns membros sem escrúpulos da elite. Myriam não nega a presença parcial de tais elementos. Sua estratégia consiste, porém, em afirmar a existência, geralmente ignorada ou silenciada, de outras dinâmicas em jogo que permitem relativizar as conclusões, cínicas ou resignadas, decorrentes da versão anterior, do tipo: "Enquanto houver tamanha pobreza no Brasil, não se pode esperar nenhuma independência crítica por parte do povo que sempre se deixará seduzir por indivíduos malvados e interesseiros”.
A estratégia argumentativa do livro se dá em dois passos principais: 1 – Mostrar que a Revolta da Vacina também se inscreve dentro de um movimento de resistência popular muito mais amplo contra a "modernização" do Rio de Janeiro. 2 – Mostrar que os argumentos ideológicos e científicos contra a vacina obrigatória também remetem a uma outra concepção, igualmente coerente, da medicina, concepção esta defendida por vários movimentos internacionais. !O primeiro passo do livro se baseia numa evocação cuidadosa das transformações urbanísticas impostas pelo governo à Capital do Brasil. O Rio de Janeiro deve passar de uma cidade colonial atrasada, suja, mal cheirosa, símbolo de um Império decadente, para uma capital moderna e limpa, imagem da nova ordem republicana e das ambições políticas renovadas do Brasil no cenário internacional.
Contra o atraso tropical colonial, trata-se de "integrar o Brasil no mundo civilizado" (nas palavras de N. Stepan, citadas por Myriam), e isso através de duas operações higiênicas diferentes, mas paralelas: operação de saneamento da cidade e operação de vacinação da população. O livro estabelece uma analogia muito fecunda entre o espaço físico da cidade, o corpo urbano por assim dizer, e o corpo individual singular de cada cidadão. Ambos corpos devem ser limpos, sadios, higiênicos, isto é também delimitados, controláveis e controlados. Assim, como na Paris de Hausmann, a destruição dos bairros populares e dos cortiços não serve à erradicação da pobreza (que continua e migra para os morros ou a periferia); visa, talvez antes de tudo, a delimitação disciplinadora de uma população que sabia viver sem domicílio nem trabalho fixos e ocupar um espaço urbano sem seguir as regras estabelecidas pelas autoridades. "A rua colonial", "local reservado a homens vagabundos, capoeiras, ladrões, negros quadrilheiros, prostitutas, mendigos ou penitentes" – sic! só faltam os nossos camelôs! – (assim J.L. Benchimol citado por Myriam), deve ceder lugar a largas e modernas avenidas, como a Avenida Central, de recorte claro e racional, pelas quais transitam indivíduos ordeiros: isto é com família e lar determinados, locais de trabalho e de diversão definidos. Trata-se, diz Myriam, de "fixar os indivíduos pelo lar, promovendo a família, e, ao mesmo tempo, fazê-los circular por uma rede de trajetórias previstas e de instituições normativas, tais como as ruas, as praças, a casa de comércio, a escola, a fábrica e a moradia". A introdução da iluminação a gás nas ruas e nas casas aumenta, sem dúvida, a segurança dos cidadãos; mas também permite um controle mais eficaz de seus afazeres e movimentos. A escuridão ameaçadora, mas também aconchegante, no seio da qual todos negócios, lícitos e ilícitos, são possíveis, é substituída pela visibilidade invasiva: não é por acaso que os revoltados da vacina destruirão os postos de iluminação e mergulharão os bons burgueses proprietários no "Medo de Escuro" e na insônia, segundo uns versos satíricos de Xiquote de 1905. !Ora, esta intervenção agressiva no corpo da cidade que tinha crescido, certamente de maneira "desordenada", mas seguindo a ordem dos ritmos e das necessidades de seus habitantes, esta intervenção se repete agora sob a forma da obrigatoriedade da vacina, pela ação das brigadas sanitaristas que, acompanhadas por policiais, entram à força nas casas e espetam os corpos indefesos da população. Em termos simbólicos, é uma invasão semelhante que desaloja agora o indivíduo não só da sua rua ou da sua moradia, mas também do seu próprio corpo, seu espaço mais íntimo e incontestado. Não se trata somente de convencer a população a vencer um medo irracional diante da lanceta. Também não se pode esquecer os inúmeros "acidentes" (reações mórbidas à vacina) devidos, entre outros, às péssimas condições de transporte da vacina, que geram desconfiança na população e que serão silenciados pela historiografia futura, pronta a denunciar rapidamente sua falta de esclarecimento científico. Trata-se, antes de mais nada, de uma outra relação do sujeito com seu próprio corpo: este não é visto como um organismo cuja saúde depende do saber de outros (enfermeiros, médicos, cientistas) e que deve, portanto, se prestar a manipulações e a controles benéficos por parte destas autoridades.
Mais fundamentalmente, o corpo pertence ao sujeito de maneira tão íntima e imediata que este nem pode dizer que é seu, como se fosse uma propriedade sua: ele não é nem mesmo "dono" do seu corpo, mas existe nele, ele o é. Sentimento primeiro e difuso que talvez não chegue a se explicitar verbalmente, mas que está na raiz da resistência contra a intervenção sanitarista pública, percebida como uma desapropriação íntima e um controle repressivo sob o gesto da prevenção. Neste segundo momento de sua exposição, Myriam se detém e puxa de sua manga de arguta historiadora dois trunfos inesperados: a concepção holística de muitos médicos positivistas da época no Brasil; e a presença de um forte movimento internacional, nos meios médicos e políticos, contra a vacinação obrigatória, fato negligenciado pela historiografia da Revolta. A análise de vários documentos e de inúmeras declarações, em particular na imprensa, de médicos ou de notáveis, membros da IAPB (Igreja e Apostolado Positivista do Brasil), revela uma concepção singular da saúde e do saber médico. Esta concepção remonta a Hipócrates e continua viva em práticas atuais como a homeopatia. Ela repousa sobre a afirmação da interligação entre o meio biológico e o meio social, inaugurando uma nova teoria, a mesologia; daí decorre uma concepção holística da saúde e de sua manutenção. O médico deve ajudar o paciente a manter o equilíbrio natural, definição da saúde, e a fortalecê-lo quando se torna precário, mas sem recorrer a intervenções diretas no funcionamento dos órgãos. No quadro da doutrina positivista da sociedade, o dever de manutenção da saúde não faz parte das atribuições do Estado, não pertence ao domínio público. A saúde só se fortalecerá se houver um projeto moralizador da população para retornar às sagradas leis da Natureza, em particular à preponderância dos laços familiares na educação, na formação e na manutenção da vida, passando pela reabilitação do papel central da Mulher, elo privilegiado entre o natural e o social.
Por essas razões, numerosos positivistas se opõem às "instituições de seqüestro" (sic!), tais como a escola e o hospital, que retiram o indivíduo do seu meio natural originário, isto é da família. Myriam não esconde o viés reacionário dessas teorias. Mas ela insiste no fato de que os médicos positivistas (que não são unânimes entre si, é importante ressaltar várias diferenças em particular entre cariocas e paulistas) apresentam uma teoria coerente que não é simplesmente uma cópia grotesca de seus mestres europeus. Sobretudo, a luta entre positivistas e sanitaristas não é uma discussão entre charlatães supersticiosos e cientistas íntegros, mas sim um "debate travado entre duas figuras de saber": de um lado, uma concepção holística da saúde decorrente de uma teoria do meio; do outro, a teoria do agente específico de cada doença, isto é a possibilidade de descoberta de estratégias e de técnicas específicas singulares (remédios, injeções, vacinas, operações etc.) que permitem lutar contra estes agentes isolados. Pesquisando no acervo particular de um ilustre médico positivista, membro do IAPB, J.C. Bagueira Leal, Myriam encontrou cartas da Anti-Vaccination League of America e da National Anti-Vaccination League da Inglaterra. Bagueira Leal, aliás, será eleito vice-presidente honorário da Liga norte-americana em outubro de 1908. Myriam analisa aqui rapidamente os argumentos do movimento inglês (ela os estudará com mais vagar na sua tese de doutorado concluída em Paris em 1997). À diferença da argumentação positivista brasileira, de cunho mais religioso – mesmo que se trate de uma teoria religiosa da Natureza – , os antivacinistas ingleses se filiam a uma longa tradição de luta dos radicais, segundo a qual "a ingerência estatal no domínio privado dos corpos cria o direito de resistência dos cidadãos". A rica correspondência entre os anti-vacinistas brasileiros e seus colegas ingleses ou americanos revela a existência, apesar das diversas filiações, de um debate internacional importante, de relevância científica e política, sobre as novas práticas sanitaristas: a luta contra a vacinação obrigatória significa, portanto, muito mais que uma grotesca resistência de pseudo-cientistas da periferia tropical do mundo civilizado!
Concluamos. Ao lado da engenhosa e precisa pesquisa histórica, o maior mérito deste ensaio me parece sua capacidade em recontar um episódio da história brasileira sem cair nem no relativismo historiográfico nem no posterior acerto de contas para decidir quem estava com (a) razão. Esta revisão cuidadosa dos esquemas narrativos e interpretativos em uso na história da Revolta da Vacina permite vislumbrar uma outra hipótese. E se esta luta popular não fosse o mero levante de pobres miseráveis, atrasados e ignorantes, mas muito mais a tentativa de esboçar uma outra organização do espaço: do espaço exterior, da cidade, enquanto palco da invenção de outras práticas de habitação; e do espaço interior, dos corpos, como territórios não controláveis da invenção da vida?
[resenha pulicada originalmente no Suplemento Literário. Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais. 2002. Reprodução proibida]
sobre o autor
Jeanne Marie Gagnebin é professora de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica PUC/SP e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autora de História e narração em Walter Benjamin e de Sete aulas sobre memória, linguagem e história, entre outros.