Depois de Parceiros da Exclusão, seu livro de estréia na bibliografia urbanístico-sociológica, Mariana Fix oferece agora o resultado de suas investigações sobre o “elo” financeiro dos empreendimentos imobiliários na cidade “global”. O resultado não é menos surpreendente ou menos revelador. Se, no primeiro estudo, a simbiose quase funcional entre os empreendimentos no estilo da Berrini – provavelmente a avenida-símbolo da especulação imobiliária subsidiada pelos fundos públicos em São Paulo e viabilizada pelas obras públicas malufistas et pour cause sustentada na miséria obscena das favelas que a cercam e lhe servem de retaguarda de mão-de-obra superexplorada – saltava à vista, neste é o mito da cidade-global que se estilhaça.
Competitividade, flexibilidade, cidade-empreendimento são termos quase folclóricos para disfarçar o processo de transformação da cidade em mercadoria, que, desde o Barão Haussmann, segue uma linha ascensional tão inexorável quanto a periferização dos pobres. O velho bordão medieval de que “o ar das cidades faz os homens livres” diz agora que os faz escravos, ou quase, para não ser muito radical, que as agências de amparo à pesquisa não gostam...
Na novilíngua – obrigado Orwell –, imóvel é agora seu contrário, e este milagre é o velho, bom e conhecido dinheiro quem o faz. Não é coincidência que o antigo objeto de estudo de Mariana, a avenida Berrini, reapareça agora com centralidade: ela é o próprio espaço transformado em valor. Mas como uma economia periférica poderá sustentar o luxo dos imóveis – pois sim, eles continuam lá! – desocupados?
O fundo público sustenta: os fundos das estatais que, por esquecimento – será? – do legislador são de propriedade privada, embora constituídos e formados por dinheiro público. Pois no capitalismo periférico eles servem para isso mesmo: para viabilizar empreendimentos que o lucro particular não sustenta. Próprio do capitalismo contemporâneo, dirão alguns, no que o Brasil uma vez mais se adianta ou se iguala aos mais desenvolvidos. A resposta, no entanto, é: à custa da formidável concentração da renda que constrói simultaneamente Berrinis e Bolsa-família (termo da novilíngua para o que a Igreja Católica dava mais dignidade semântica ao chamar de “esmola”), e de uma nova casta de usurpadores-trabalhadores. Fecha-se a equação, só o que não fecha é a distância cada vez maior entre os mais ricos e os mais pobres, matéria aliás de que se alimenta esse insaciável ornitorrinco. Ô bichinho feio!
Mariana ajuda a desvendar a estrutura dessa evolução não-resolvida, desse verdadeiro “beco sem saída” – o rinoceronte provavelmente é mais feio que o bichinho, mas é uma evolução bem resolvida – que coube aos trabalhadores brasileiros alimentar em seu parasitismo. Por isso, os imóveis agora são mais que móveis, são títulos mobiliários, e sobretudo as cidades com “vocação global” são financeirizadas.
Uma pequena nota de pé de página a essa evolução truncada: a Câmara Municipal de São Paulo, por iniciativa do antigo vereador pedetista Eliseu Gabriel, votou uma lei dando à avenida Águas Espraiadas o nome de Getúlio Vargas, arquiteto da liderança industrial de São Paulo, cujo nome não consta nesta cidade esquizofrênica. A então prefeita Marta Suplicy vetou a lei e substituiu o nome de Vargas pelo excelso Roberto Marinho, cuja contribuição à história de São Paulo parece superar tudo...
Isso se deve à história reinventada pelo Estadão, que estigmatizou Vargas como antipaulista, sem contar que na verdade Armando de Salles Oliveira, ícone do clã Mesquita, foi o primeiro interventor pós-Revolução de Trinta. Quando houve o rompimento, Armando exilou-se em Portugal – veja-se onde! – e Vargas, em uma de suas arbitrárias intervenções, fechou o Estadão e, para marcar a ferro e fogo a nova ordem federal, nomeou o pernambucano João Alberto Lins de Barros interventor em São Paulo. A vingança veio no estigma, que os paulistas nunca foram capaz de rever, contaminando mesmo a mídia que não tinha importância à época, como a Folha de S.Paulo e a Rede Globo, e a própria avaliação hegemônica nos estudos acadêmicos. O rancor contra o verdadeiro herói burguês de São Paulo transformou-se em item obrigatório da identidade paulista, caso único no Brasil. A Folha recolheu, agora, o resultado dessa farsa: Vargas foi considerado o maior brasileiro de todos os tempos. Assim se fazem os ornitorrincos, as Berrinis e a história oficial.
leia também"A nuvem financeira e o skyline", de Guilherme Wisnik, sobre o livro de Mariana Fix
sobre o autor Francisco de Oliveira é doutor pela USP, professor titular de sociologia do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP e ex-presidente do Cebrap-SP (1993-95).