Em que locais você gosta de perambular em São Paulo?
Gosto muito de caminhar pela cidade em geral. Andar pelas ruas me ajuda a compreender melhor o lugar. Ao contrário do carro ou ônibus, quando ando, percebo coisas em câmara lenta e isto acaba transformando-os em conhecidos. Gosto muito de passear em lugares repletos de histórias. Por exemplo, sair da minha casa que fica nas Perdizes e pegar o Minhocão de ponta a ponta, por baixo ou por cima. Ali existe deste a presença dos grafites em diálogo com os moradores ou habitantes da passarela central até refugos de mercadorias de segunda mão a espera de novos compradores, ou seja, um mundo dos reciclados e/ou dejá vu. Na última vez que estive lá, me diverti com um grafitti de boca aberta que comia um monte de caixas, malas e sacos reais, acumulados bem no pé de um dos pilares de sustentação da grande minhoca. Depois num outro pilar, de longe, vi Iemanjá de braços abertos. Puxa, isto não é mágico, um lugar em que você pode dialogar com imagens, objetos e pessoas? De lambuja, no percurso por cima, há o Castelinho da Rua Apa, e todas as fachadas dos edifícios da São João com direito a um acervo gráfico para quem gosta de brincar de colecionar letrinhas, de hoje e de ontem.
Como começou a pesquisa nas galerias no centro de São Paulo, que foi publicada nos 10 roteiros a pé em São Paulo?
Sempre gostei muito do filósofo Walter Benjamin. Ele foi o autor que mais me falou dos segredos das galerias ou passagens. Através dele achei que seria possível olhar para as galerias do centro novo de São Paulo e construir um percurso em que fosse revelado um pouco dos seus mistérios e magias. Estas galerias concentram muito da história da cidade de São Paulo. Desde o momento em que começaram a surgir, mais ou menos final dos anos 30 do século passado, até o processo de verticalização que a área central passou a assumir naquele momento, sem esquecer é claro que o centro nos anos 30, 40, 50 e até 60 foi de fato o centro de tudo o que acontecia nesta cidade: serviços, comércio, cultura e etc... Para estas galerias foram os cinemas, lojas, galerias de arte, ateliês e restaurantes. Era um lugar de comércio, de vida cultural intensa, mas também de passagem, de conexão ou ligação de uma rua com a outra, de ideais e projetos inovadores também. E, sem dúvida, um lugar exclusivo para os pedestres caminharem na cidade num momento em que o centro estava ficando bastante congestionado.
Existem, no Brasil galerias, como estas, em outras cidades? Como são?
Bom, não sou uma caçadora de galerias. Mas imagino que sim, pois elas pertencem a uma época (a partir dos anos 30) em que foi adotado este tipo de edificação nas grandes cidades, principalmente em sua área central que na maioria das vezes corresponde a área comercial e de serviços da maior parte das cidades. Talvez a grande concentração de artigos para a juventude que elas reunem em São Paulo, assim como uma linguagem arquitetônica moderna. Isto talvez seja um fenômeno muito particular do centro novo da cidade.
Quais os locais mais inusitados por onde você já passou, aqui e pelo mundo?
Aqui, vou voltar pra minha infância, um lugar muito especial que ficava na Fazenda Ipanema, um cemitério abandonado. Minha mãe nos levava para a Fazenda Ipanema para passarmos o dia e numa destas idas, eu acabei encontrando um cemitério no meio do mato. Aquilo me dava arrepios e muito adrenalina. Com o tempo passou a ser um dos lugares que carregava novos visitantes para conhecerem. Todo mundo dava gritos de horror e prazer. Hoje nem sei se ele existe mais. Deve ter ficado apenas na minha imaginação...
Outro lugar que estive a pouco tempo e que me marcou muito foi Cabo Verde. Escrevi um artigo sobre esta viagem para o Arquiteturismo.O lugar não é bonito e nem fácil de se gostar. Mas aprendi a ver beleza numa paisagem árida e pobre. Saí de Cabo Verde compreendendo um pouco da África e do percurso dos negros africanos para o Brasil. Mas para além dos novos horizontes, percebi que conhecer lugares está longe de critérios apenas estéticos. Conhecer um lugar e ver beleza nele também está em relação direta com nossa disposição em entrar em contato com sua vida cultural, seus habitantes e principalmente com sua história. Para mim, tudo tem que ter "Era uma vez."
Agora você está pesquisando sons urbanos, quais são?
Talvez seja melhor dizer que o que estou pesquisando são os sentidos humanos em relação ao habitat que vivemos. Complicado, não é? Na verdade, não. A valorização da imagem nos dias de hoje, principalmente para nós ocidentais e urbanos, é algo que nos prende corporalmente a visão. A mídia acabou sendo o principal veículo desta nova forma de representar a paisagem. No campo da pesquisa em história, a imagem foi incorporada há pouco tempo. Os historiadores em geral adoram um texto, um manuscrito ou um registro antigo. Mas na última década, a imagem que já estava na publicidade, nas telinhas etc. Passou a ser um instrumento de pesquisa para o historiador também. De maneira geral o ser humano urbano está muito visual. Já os outros sentidos – olfato, tato e audição – são muito menos valorizados. Os sons das grandes cidades nos chegam de forma extremamente invasiva aos nossos ouvidos; a frase do grupo Titãs – "não estou ouvindo nada de tanto escutar" – ilustra muito bem este tormento de sons urbanos. Estes se misturam num grande congestionamento. Eles atravessam nossa cabeça quando se transformam em britadeiras. Eles nos expulsam da calçada nas obras dos prédios que sobem sem parar pela cidade. O oposto destes sons são os fones de ouvidos, os vidros fechados dos carros e nada de cidade. Então ou estamos surdos à cidade ou com os ouvidos invadidos pela indistinção de sons. Escutar nos grandes centros é bem menos valorizado que ver. Porém, não podemos negar que o som faz parte da maneira como guardamos nossas memórias. Se para os sons mais íntimos temos um registro, o mesmo se deve aos sons do ambiente em que vivemos ou que nossos antepassados viveram. A medida que vou me sensibilizando para perceber a cidade com outros sentidos – o som, o olfato e o tato – percebo sim que vou ouvindo, cheirando e tateando coisas. Por exemplo, às cinco da manhã, se estiver acordada, escuto o barulho do trem que vem lá da Estação Barra Funda. Depois surgem os piados dos pássaros e os primeiros sons dos trabalhos do dia. A manhã é um bom horário para ouvir e identificar os barulhos da cidade. Memórias, literatura, ficção também tem ótimos áudios para captarmos os sons históricos da cidade. Precisamos afinar os sentidos para passar a escutar, cheirar e tatear também?
Quando você viaja pelo mundo, você fica "ouvindo coisas"
Quanto a ouvir coisas em outros lugares. Para mim ainda é difícil. Mas adquiri um supergravador portátil que chamo de Mickey, por conta das duas orelhinhas de espuma que me ajudam a capturar sonoridades interessantes dos lugares.
Quem foi Juo Bananére?
Juo Bananére foi o pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, engenheiro que além de ter construído alguns prédios em São Paulo, escreveu colunas de humor e depois editou um jornal inteirinho num estilo totalmente macarrônico (mistura de caipira com italiano). As colunas do Bananére foram escritas para serem lidas em voz alta. Tive a oportunidade de entrevistar membros de uma família cujo pai trabalhou em jornais italianos e que lia alto o Bananére para os filhos. O Juó Bananére escreveu no Pirralho (1911), primeiro jornal humorístico publicado por Oswald de Andrade, depois no Queixoso de Monteiro Lobato e no final da sua vida, e ele morreu muito jovem, escreveu, fotografou e editou seu próprio jornal, o Diário do Abaix’o Pigues (1933). Tenho alguns registros de áudio e imagem no blog Versão Paulo e no site da Carbono 14, www.carbonoquatorze.com.br.
O que é o Carbono 14 Projetos e Pesquisas?
Carbono 14 Projetos e Pesquisas é uma empresa que desenvolve projetos na área de cultura urbana, principalmente voltados para a cidade de São Paulo. O nome Carbono 14 faz alusão "a prova do carbono 14" utilizado pelos arqueólogos para fazer datações de materiais encontrados.
sobre o autor
Paula Janovitch é antropóloga e historiadora. Editora da Carbono 14 projetos e pesquisas em história e do blog Versão Paulo. Colaborou com um dos percursos do livro “Dez roteiros históricos a pé na cidade de São Paulo”