“Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem
Ói, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho éon
Ói, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem
Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem”
O trem das 7, Raul Seixas
Chego à Estação da Luz. São 7h da manhã de uma terça-feira e a plataforma já está cheia de usuários que esperam os trens.
O percurso tem início pela rua Mauá e logo me deparo com um edifício ocupado por uma organização de moradores sem-teto. A Ocupação Mauá, desde 2007, abriga 237 famílias e hoje está ameaçada de expulsão pelo poder público.
Continuando pela alameda Cleveland, percebo três momentos distintos de espaços públicos. O primeiro, uma grande área com expressivo potencial para se transformar numa praça, está hoje cercada e sem qualquer tipo de uso. O segundo, a praça Tom Jobim, rodeada por edifícios históricos – como o Hotel Piratininga – e que abriga, aos finais de semana, a famosa roda de chorinho. E o terceiro momento, a praça Júlio Prestes, uma grande praça seca com topografias trabalhadas, mostrando um grande potencial de uso público, mas que serve apenas como passagem. As pessoas por ali transitam, apressadas para chegar ao trabalho ou para vencer o trajeto entre as estações, sem se darem conta das possibilidades que se apresentam diante delas. A impressão que tenho é que faltam infraestruturas para lazer ou mesmo comércio que contribuam à percepção do espaço.
Assim como o edifício da rua Mauá, em poucos metros de caminhada pela alameda Cleveland, me deparo com outros dois na mesma situação. Ocupações desencadeadas por grupos de moradores sem-teto. Pergunto a mim mesma se estamos desempenhando nosso papel como arquitetos e pensadores urbanos...
Algumas das estruturas que encontro pelo caminho mostram resquícios de uma vida que outrora pertenceu a este lugar: o Hotel Piratininga (que posteriormente passou a abrigar a Escola de Música Tom Jobim), a Estação Pinacoteca, Sala São Paulo, Jardim da Luz, Pinacoteca do Estado e as próprias Estações Luz e Júlio Prestes. O fato de seus usos ainda persistirem demonstra uma crença nas atividades culturais como agregadoras e capazes de trabalhar o espaço público. Crença esta da qual compartilho. No entanto, acredito que usos com dinâmicas mais intensas possam garantir maior frequência e, portanto, trariam vida mais pulsante para a região.
Por curiosidade, entro no pátio de estacionamento da Estação Pinacoteca. Caminhando por aquele extenso platô cimentado, lentamente me dou conta daquela vista privilegiada para a linha férrea: o pátio de manobras da CPTM. A sensação era a mesma de atravessar um palco em direção à caixa cênica e coxias, para então me deparar com toda aquela infraestrutura que faz o teatro acontecer – aqui, no caso, o teatro é representado pela cidade.
De volta ao percurso original, o primeiro susto: alguns metros à frente de onde eu estava – estática e profundamente chocada com aquela visão – uma quantidade enorme de lixo espalhado pela rua e um amontoado de pessoas enroladas em seus cobertores perambulando num ritmo frenético. Naquele momento me lembrei de quando era criança e, no quintal da casa dos meus pais, assistia intrigada a agitação das formigas no formigueiro que acabara de “cutucar” com um graveto.
Estava tão absorta no percurso e nas diversidades que por ele encontrava, que não havia me dado conta de onde estava. O cenário e uma placa me alertaram: estava no encontro entre a alameda Cleveland e a rua Helvétia. A conhecida “Cracolândia”. Aquela experiência era tão intensa e chocante que nem me dei conta que um rapaz enrolado em seu cobertor saiu daquele aglomerado de pessoas e caminhava na minha direção. Antes mesmo que pudesse entender aquilo que ele me dizia, segui em frente em passo firme.
E foi na esquina seguinte que tive o segundo susto: uma vista inacreditável para os trilhos do trem. Novamente estava eu estática, mas, desta vez, maravilhada com o que via. O desnível natural do terreno fazia da alameda Nothmann, naquele trecho, uma ladeira, permitindo a passagem aérea dos trilhos. A descida, no entanto, é extremamente apertada naquela calçada desagradavelmente estreita. Em muitos momentos fui obrigada a caminhar pelo meio da rua para dar espaço aos outros que vinham na direção contrária. Mas nada disso diminuía a expectativa de ver e ouvir o trem passar.
Ao cruzar esse viaduto, a sensação era a de passar por um portal que dividia duas regiões completamente distintas e distantes. De um lado, uma cidade quase inóspita e não convidativa – o bairro Campos Elísios (a vontade era mesmo de acelerar o passo e sair logo dali). E, de outro, uma cidade com comércio ativo, repleto de pessoas caminhando, entrando e saindo das lojas, carregadores trazendo mercadorias – estava no bairro do Bom Retiro.
De volta à rota original, mais alguns metros e chego ao final da alameda Cleveland e, como cenário de fundo, está o antigo edifício da indústria Matarazzo – que já fora palco do Arte/Cidade (“A cidade e suas memórias”), em 1997, e, recentemente, de um triste incêndio.
Estava, portanto, me aproximando da favela do Moinho. O edifício abandonado e em péssimas condições mostrava sinais de ocupação. Segundo Milton Santos, mais uma prova da “revanche” da população: o governo não proporciona aquilo que lhes é de direito, então a alternativa é improvisar dentro daquilo que é possível.
Continuei andando na tentativa de chegar o mais próximo que pudesse dos trilhos do trem, para que pudesse entender melhor como essa comunidade se estruturava na ilha criada pelo distanciamento dos trilhos. No entanto, os altos muros que separam o trem da cidade atrapalharam essa vontade. De agora em diante só é possível ouvir o trem passar – o acesso à comunidade se dá por uma pequena passagem debaixo do viaduto da avenida Rio Branco.
O percurso continua pela rua Capistrano de Abreu (entre as avenidas Rio Branco e Pacaembu) e mais uma surpresa: uma passarela de pedestres passando por sobre o trem. A visão daquele ponto é realmente instigante, no entanto, a possibilidade de permanecer ali contemplando a vista é muito pequena. A passarela é estreita e sem nenhuma estrutura de apoio.
Volto à Estação da Luz pelo mesmo trajeto. Redobro a atenção na expectativa de não deixar escapar nenhum detalhe.
E, no caminho, procuro listar as qualidades e problemáticas daquele local tão intrigante. Que propostas urbanas e que tipo de arquiteturas seriam mais adequadas? Que posicionamento adotar frente a tanta diversidade e opiniões distintas? Que referências tomar como base?
sobre a autora
Fernanda Critelli de Campos é arquiteta formada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (2012) e desenvolveu projeto de Iniciação Científica orientada pelo professor Abílio Guerra.