Os planos de preservação das cidades uzbeques de Samarkand, Bukhara, Khiva e Kokand, desenvolvidos a partir da década de 1960 do século 20 estiveram, desde o início de sua concepção, voltados para a promoção da atividade turística na região – coração da antiga Rota da Seda e foco da disputa colonialista entre russos e britânicos na segunda metade do século 19.
Desse modo, e tendo em vista a prevalência de uma concepção de patrimônio associada antes aos monumentos que aos conjuntos, as intervenções executadas nos centros históricos tiveram como foco a criação de um percurso ligando as edificações mais significativas de cada núcleo urbano, a ser seguido pelos visitantes que, desse modo, não teriam contato com o restante das cidades (1).
Samarkand, detentora de monumentos mais grandiosos e de uma história supostamente mais nobre que aquela das demais – foi a capital do reino de Tamerlão, um dos grandes impérios da Idade Média – tornou-se o principal foco dos esforços soviéticos de restauração – iniciados, ainda que de forma pouco sistematizada, ainda na década de 1920, quase sessenta anos antes da conclusão do primeiro plano de preservação para a cidade, ocorrida em 1980.
Segundo a lógica posteriormente expressa no plano, a restauração do centro histórico partiu da praça Registan, centro da cidade desde o século 15 e um dos mais grandiosos complexos arquitetônicos do Islã. Os trabalhos tiveram início com a estabilização das três grandes madraças que compõem o conjunto, seguida da controversa recomposição da azulejaria de suas fachadas (2).
As intervenções nos edifícios foram acompanhadas por uma ampla redefinição do espaço urbano ao redor dos mesmos. As construções tradicionais e a densa malha viária existente no entorno da praça foram substituídas, a partir da década de 1950, por grandes áreas abertas, que inauguraram a possibilidade de se apreciar o complexo à distância (3). Nesse momento, teve início a implantação das soluções de desenho urbano nos citados espaços, divididos, basicamente, em dois ambientes: 1) o circuito das fachadas laterais e de fundos das madraças Sher-Dor, de 1636, e de Ulugbek, de 1420; 2) o percurso da rua Registan (esta também alvo de intervenção) até a madraça Tila-Kari, de 1660, abarcando a praça propriamente dita.
A primeira área foi alvo de um extenso projeto paisagístico, com a implantação de arborização e jardins geométricos em canteiros recortados por alamedas de larguras variadas. A praça tornou-se o centro de um parque de dimensões significativas.
Paralelamente, o espaço ganhou um eixo monumental caracterizado por uma sequência de terraços que, a partir da Rua Registan, descem até o centro da praça. Estes foram equipados com mirantes, fontes e lojas de souvenires, além da bilheteria do complexo.
Inseridas na política contexto da política de preservação da então república soviética, nas intervenções no Registan destaca-se busca pela espetacularização do patrimônio que, associada a um projeto de desenho urbano pouco coerente, teve como efeito o comprometimento do caráter do espaço.
A opção pelo isolamento em relação ao entorno imediato conferiu ao Registan um caráter prioritário de espaço de visitação e contemplação – o deslocamento do eixo de circulação de pedestres para o entorno do complexo aniquilou sua função de passagem (4). A postura de segregação entre praça e cidade é, no entanto, mais óbvia do que o contraste espacial faz perceber: o antigo coração de Samarkand, praça do mercado e do convívio, definitivamente não dialoga com a cidade, fato assumido pela opção pela criação de bizarros muros decorados que, posicionados ao fundo dos monumentos, escondem as áreas residenciais da cidade antiga dos olhos dos visitantes.
Os equívocos na intervenção seguem pelo excesso de materiais empregados no tratamento dos espaços – algo que, somado ao aspecto caleidoscópico da decoração das fachadas, gera uma confusão visual que prejudica a leitura dos edifícios. O espaço vazio concorre com os monumentos pela atenção do usuário. Tijolos, pedras roladas em três cores, mosaicos, mármore branco polido, piso intertravado de concreto, tudo isso é utilizado no tratamento dos vários ambientes da praça.
As intervenções no Registan foram concluídas ainda na década de 1990 – o padrão de tratamento dos espaços públicos de Samarkand, no entanto, não foi revisto, tendo se estendido à vizinhança de outros marcos da cidade, como o mausoléu Gur-e-Amir e a mesquita Bibi-Khanym.
A julgar pelo aspecto de Samarkand, a busca pela monumentalização e o excesso poderiam ser tomados como referência para o desenho urbano contemporâneo no Uzbequistão. A cidade de Bukhara, no entanto, apresenta um quadro profundamente contrastante, que ressalta a diferença de abordagem até certo ponto surpreendente, especialmente tendo-se em conta o governo marcado pela forte centralização, bem como a relevância das cidades para a atividade turística no país.
Em Bukhara, a despeito da conclusão do plano de preservação ainda em 1965, a maior parte das construções significativas do centro antigo permaneceu em estado de degradação crescente até a segunda metade da década de 1970 (5), momento em que os trabalhos mais sistemáticos de restauro tiveram um impulso, a partir da necessidade de renovação da cidade para uma celebração, organizada pela Unesco, em homenagem a vários dos grandes pensadores da história, que incluiu o nativo Ibn Sina – Avicena, conhecido especialmente por sua contribuições no campo da medicina.
Tal como em Samarkand, a recuperação das edificações foi acompanhada pelo gradativo tratamento dos espaços públicos adjacentes. A abordagem em Bukhara foi marcada por duas linhas de ação: a desobstrução dos espaços por meio da retirada de elementos descaracterizantes e o suporte às atividades de convívio da população.
A trama urbana foi preservada em sua totalidade, tendo o eixo turístico principal – que vai da Ark, a antiga fortaleza do soberano local, à Lyabi-Hauz, praça que é coração da cidade antiga – sido objeto de uma sequência de intervenções de desenho urbano. O uso mais criterioso dos materiais, associado à busca pela recuperação da liberdade de apropriação dos espaços pela população, teve como efeito a criação de espaços públicos com um desenho extremamente discreto, que remete aos areais que, até o início dos processos de intervenção, caracterizavam a cidade, inserida em uma paisagem desértica.
Na praça do conjunto Poi-Kalon – conformada pela mesquita e pelo minarete Kalon, a oeste, e pelas madraças Mir-i-Arab e Amir Olimxon, a leste e ao sul, respectivamente – o assentamento regular da cantaria marca os eixos longitudinal e transversal do espaço. Ao restante da área corresponde um piso de pedras irregulares. A diferença, aos olhos do usuário, é sutil, pouco interferindo na percepção das edificações. A grande área aberta, intensamente apropriada no fim da tarde - quando a temperatura é mais amena - foi recuperada a partir da demolição de parte da base da madraça Mir-i-Arab, que dividia o espaço em dois níveis, criando uma espécie de corredor junto à mesquita.
Intervenções recentes, como as da Praça Lyabi-Hauz e da Rua Bakhavuddin Nakshbandi, mantiveram a lógica do cuidado e da discrição.
Ainda que um processo de gentrificação seja visível, com os antigos bazares agora tomados por um comércio eminentemente turístico, Bukhara mantém-se intensamente utilizada por sua população, seus grandes monumentos servindo de pano de fundo para suas atividades cotidianas. O contraste com Samarkand é marcante, e ilustra o papel essencial desempenhado pelo projeto de desenho urbano nas relações entre o espaço das cidades e seus usuários. A recuperação do centro antigo de Bukhara – que, não por acaso, recebeu, em 1995, o Prêmio Aga Khan de arquitetura – indica que é possível desenvolver intervenções de qualidade em um contexto de escassez de recursos financeiros – basta afastar os modismos e concentrar-se no essencial (6).
sobre os autores
José Júlio Rodrigues Vieira é arquiteto pela PUC Minas e advogado pela UFMG, membro do corpo técnico da Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte e professor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix.
José Marcos Rodrigues Vieira Filho é estudante de arquitetura e urbanismo na PUC Minas.
notas
1
A presença desse eixo é, atualmente, marcante nas cidades citadas. O contraste, de modo geral, dá-se não apenas pelo tratamento das edificações, mas especialmente dos espaços públicos.
2
A azulejaria utilizada na recomposição teve sua qualidade questionada. A amplitude da intervenção foi ainda considerada agressiva, uma vez que conferiu um aspecto “novo” às fachadas. Processo similar, porém com notável avanço nas técnicas de vitrificação, caracterizou a restauração de outros monumentos na cidade, como o mausoléu Gur-e-Amir, onde está enterrado Tamerlão, e o complexo funerário Shah-i-Zinda.
3
Posteriormente, o mesmo processo ocorreu no entorno do mausoléu Gur-e-Amir.
4
O problema é ainda acentuado pelo fechamento da parte central da praça, acessível apenas aos portadores do ingresso para visitar o complexo.
5
Mounira Azzout, em sua obra The Soviet Interpretation and Preservation of the Ancient Heritage of Uzbekistan: The Example of Bukhara, destaca o fato de que, ainda que não tenha apresentado efetividade imediata no que diz respeito à restauração de edificações, o plano baniu, a partir de sua instituição, novas construções na área objeto de preservação.
6
Outros títulos sobre o tema:
AL-RADI, Selma; NASSIM, Sharipov. The Heritage of Bukhara. In: Iran: Architecture for Changing Societies. Philip Jodidio (ed).Torino: Umberto Allemandi & C, 2004.
DAVIDSON, Cynthia C. Restoration of Bukhara Old City. In: Architecture Beyond Architecture. Cynthia C. Davidson, Ismail Serageldin (ed). Londres: Academy Editions, 1995.
GRABAR, Oleg. Report on Soviet Central Asia. In: Space for Freedom. Ismail Serageldin (ed). Londres: Butterworth Architecture, 1989.
HERDEG, Klaus. Images of Samarkand. In: MIMAR 37: Architecture in Development. Londres: Concept Media, 1990.
HOPKIRK, Peter. The Great Game: on Secret Service in High Asia. Londres: John Murray Publishers, 2006.
PANKRATVEV, G. A. Album of historical monuments of the city of Samarkand. Ca 1890.
PETERSEN, Andrew. Dictionary of Islamic Architecture. Londres: Routledge, 1999.
PETRUCCIOLI, Attilio (ed). Bukhara: The Myth and Architecture. Cambridge, Massachusetts: The Aga Khan Program for Islamic Architecture at Harvard University and the Massachusetts Institute of Technology, 1999.
SERAGELDIN, Ismail. The Samarkand Revitalization. In: MIMAR 41: Architecture in Development. Londres: Concept Media, 1991.
SIRAVO, Francesco; PULLVER, Ann. Planning for the Historic City of Samarkand. Genebra: The Aga Khan Trust for Culture, 1997.