A ideia me ocorreu ao sair de casa. Ao invés de entrar no ônibus, peguei o metrô em destino à Barra Funda. A leitura matutina do jornal do dia anterior havia me impressionado: o auditório projetado por Oscar Niemeyer e que pegou fogo na semana anterior pode estar com a estrutura comprometida e talvez seja demolido. Resolvi ver a situação atual enquanto era tempo.
Curioso em saber como estava o conjunto que não visitava há muito tempo, ao chegar no Memorial da América Latina, resolvi entrar pelo lado oposto, percorrendo a Praça Cívica, a larga esplanada na entrada da instituição que abriga o antigo restaurante, hoje Galeria Marta Trabo, a Biblioteca Victor Civita e o Salão de Atos Tiradentes. Quase deserta, me deparei com pouquíssima gente. Não era de se estranhar: o sol a pino deixava inóspita a grande área sem arborização.
A seguir, atravessei a passarela que une os dois lados do conjunto, separados por via expressa. Do outro lado, havia mais gente. Ao avistar o Pavilhão da Criatividade Popular Darcy Ribeiro, percebi que havia mais gente e, quando me aproximei, observei uma excursão com muitos orientais estrangeiros, provavelmente japoneses... Ao lado, no Edifício do Parlamento, algumas pessoas subindo a rampa ou entrando pela porta no térreo. Não contive o sorriso ao me dar conta que as palmeiras plantadas nesta região projetavam uma sombra esquálida no chão. Confesso: não tenho certeza se perdôo esta idiossincrasia do arquiteto, mesmo diante de prédios tão bonitos.
Em relação ao arquiteto, seria bom fazer um parêntesis aqui. Nós paulistanos estamos muito mal acostumados com Oscar Niemeyer. Junto com Belo Horizonte e Brasília, São Paulo forma a tríade de cidades brasileiras que concentram as obras mais importantes do arquiteto em nosso país. Contudo, se BH teve o privilégio de revelar ao mundo o talento do arquiteto carioca com as jóias da Pampulha e se o DF abriga os Palácios do Alvorada, do Planalto e do Congresso Nacional, as obras mais conhecidas do homem comum, SP tem o privilégio da diversidade, contemplada pelas edificações públicas do Parque do Ibirapuera e pelos edifícios privados de excelente qualidade, como o Eiffel, Montreal e Copan, este último um dos símbolos da cidade.
São Paulo tratou muito bem Oscar Niemeyer e ele retribuiu em dobro para a cidade e para seus habitantes. Como qualificar, descrever ou explicar o que significa para o paulistano a marquise do Ibirapuera, sombra ondulante que abriga há décadas eventos de lazer e de cultura da comunidade, em especial das crianças e jovens? Nesse sentido, não gostar muito do Memorial da América Latina é um luxo que o paulistano pode se dar. Seu hieratismo oficialesco a “la Brasília” expressa uma pretensão um tanto fracassada de abrigar as vozes dos povos latino-americanos, que estavam nos anos 1980 se desvencilhando ou tentando se desvencilhar de suas ditaduras militares. Esta “Oninho” nunca funcionou a contento e o conjunto arquitetônico ficou cada vez mais voltado para atividades culturais e de lazer, dado da realidade que poderia levar a uma reconsideração sobre suas características urbanísticas. Se o Memorial fosse menos Brasília e mais Ibirapuera, creio que ganharia o projeto, a cidade e a própria memória do arquiteto já falecido. Bem, termino a digressão do pensamento e volto em corpo para o Memorial.
Mais uma dezena de passos e me aproximei do edifício sinistrado, o Auditório Simón Bolívar. Imponente, visto em sua lateral abobadada em concreto armado não aparentava dano algum. Esbaforido, logo chegou um rapaz gritando que a área estava interditada. Olhei para trás e verifiquei que não havia nenhuma sinalização. Ele me apontou raivoso para um cone distante, ao lado do Pavilhão da Criatividade, o edifício de exposições. O cone estava sobre um fio elétrico que serpenteava pelo chão de concreto. Parecia estar ali para evitar que alguém tropeçasse no fio solto...
Tentei ponderar, mas não conseguia falar uma frase por inteiro, atalhado a todo o momento pelo rapaz enfurecido. Fiquei furioso também e gritei: “não há nenhuma identificação de área interditada, como também você não está identificado!” Meu furor se foi, mas o pretenso segurança, sem qualquer crachá ou documento identificador, permanecia ali me impedindo avançar. Desisti de ver o edifício pelo interior do Memorial e rumei para fora, onde pude observar por detrás das grades uma das faces do auditório com as esquadrias destruídas. A impressão que se têm não é das melhores: parece que a destruição foi severa.
Após algumas poucas fotos – o sol contra não ajudava –, me dirigi ao edifício da administração para registrar reclamação. A atendente me olhou perplexa e tive que repetir o que pretendia; aproveitei e narrei de forma sintética o ocorrido. “Era um rapaz baixinho e parrudo?”, me perguntou, demonstrando conhecer o personagem e seu gênio... Não havia nenhum formulário para reclamações, não havia nenhum responsável para conversar. No walkie-talkie, a atendente conversou em código com alguém e me esclareceu que aqueles números e letras ininteligíveis significavam que alguém viria falar comigo. Um, dois, cinco, quinze minutos, ninguém veio... Desisti.
Enquanto caminhava em direção ao metrô me lembrei do dia do incêndio, quando os canais de televisão, transmitindo ao vivo, divulgaram diversos boatos e imprecisões, como a destruição dos painéis “Guerra” e “Paz”, de Candido Portinari, que estiveram expostos em outro edifício do Memorial há mais de um ano. Só foi possível a desinformação graças à ausência inexplicável, durante horas, de um assessor de imprensa da instituição no local do incêndio, para esclarecer os jornalistas, para dar uma satisfação à opinião pública.
Ao subir a rampa de acesso à estação intermodal da Barra Funda, olhei mais uma vez para o conjunto do Memorial da América Latina. Pensei melancólico que estava diante de um sintoma: de uma instituição que atende com desleixo ao público – seja no momento da tragédia, seja no cotidiano da visita comum – não poderia se esperar outro desfecho que não fosse a ausência de proteção de uma obra tombada e assinada pelo nosso arquiteto maior.
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto, professor da graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.