“Os espaços públicos excepcionais não existem sós; tem surgido com e desde a arquitetura”
Rogelio Salmona
Arquitetura e cidade constituem (ou deveriam constituir) uma unidade indissolúvel. A primeira é matéria e essência da segunda. O valor da arquitetura e a integração da mesma no contexto urbano determinam a qualidade da cidade, a identidade social e o senso de pertencimento dos habitantes aos lugares configurados por aquela. Estes conceitos, verificáveis na tradição arquitetônica e urbanística, tiveram ruptura durante a cultura da modernidade no Século 20. O modelo urbano do Movimento Moderno transformou a relação entre cheios e vazios públicos e valorizou o edifício-objeto autônomo e isolado em detrimento da configuração dos lugares estimulantes da convivência cidadã. Essa cultura, difundida até hoje nas cidades brasileiras, provocou uma perda de referências mediante a unificação das imagens urbanas com arquitetura para o mercado imobiliário, repetitiva e burocrática, correspondente com o acelerado processo de crescimento e densificação.
Encontrar, no contexto latino americano, exemplos de valorização da cidade através da arquitetura, motiva a reflexão necessária acerca dos caminhos alternativos capazes de superar uma consciência fragmentada que hoje subordina o crescimento urbano a imagens medíocres e banais. Essa reflexão assume um valor especial se consideramos que a maioria dos exemplos de referência é de arquitetura residencial, que por repetição configura a imagem da cidade e os espaços urbanos.
Rogelio Salmona, maestro da arquitetura latino-americana, teve o talento e a possibilidade de configurar espaços urbanos em Bogotá. As Torres do Parque, projetadas em 1965 e localizadas entre o Parque da Independência e a Praça de toros da cidade, são um exemplo exímio de arquitetura residencial que marca a imagem urbana, valoriza o patrimônio cultural e promove a integração dos espaços públicos com o conjunto projetado.
A geometria circular da Praça de toros determina a organização das três torres do conjunto com expressão plástica em leque escalonado, que explora a tipologia de duplex com circulações horizontais em pavimentos alternados e arremates com terraços. A relação geométrica e de materiais com a Praça de toros valoriza o monumento emblemático e o integra e projeta para toda a cidade. O conjunto de grande altura, encravado no pé da Serra Oriental, em um local estratégico de Bogotá, constitui hoje uma referência de alto significado urbano. A expressão da técnica construtiva do tijolo, assim como a preocupação com os acabamentos, integra, nesta obra, a escala urbana e os detalhes resolvidos com notável sabedoria.
Após quase meio século, o conjunto preserva a qualidade urbana e arquitetônica. A integração entre a rua e o parque se produz através da área social, onde se encontram locais de uso misto, que estimulam o convívio entre moradores e transeuntes.
A poucos metros, Salmona projetou os edifícios El Museo, em 1970, (em referência ao Museu Nacional de Colômbia, localizado nas imediações) e o edifício do Colégio de Arquitetos de Colômbia, resultado de um concurso vencido em 1967, cuja cobertura abrigou o escritório do arquiteto. Esses edifícios, articulados por uma escadaria pública que vincula a Carrera 10 (uma das avenidas estruturantes da cidade) com o acesso à Praça de toros, integram-se através de eixos visuais e relação de materiais com as Torres do Parque.
Perto dos edifícios citados, Salmona projetou em 1975 o Museu de Arte Moderna, acessado por uma escadaria em tijolos dirigida para uma das Torres do Parque, incorporada ao espaço do museu. A estratégia de integrar edifícios mediante eixos visuais, relações de materiais e continuidade do espaço público resulta válida para realizar intervenções sucessivas orientadas por uma visão de contexto que utiliza a arquitetura como instrumento para valorizar a cidade.
Em outra área, na periferia do bairro La Candelária, no Centro Histórico de Bogotá, Salmona projetou a Renovação urbana Nueva Santa Fe em 1985, o edifício para o Arquivo Geral da Nação em 1988 e o Centro Cultural Nueva Santa Fe em 1994, três intervenções que dialogam entre si e valorizam a estrutura da cidade.
A Renovação Urbana Nueva Santa Fe é um conjunto residencial de habitação popular que assume a estrutura maciça das quadras urbanas, com residências organizadas em torno de pátios internos, usos mistos externos e calçadas articuladas para passeio público e para extensão das atividades previstas no pavimento térreo. A estrutura das quadras possui uma complexidade interna que as dividem em pátios menores articulados por espaços que integram as circulações horizontais e resolvem os desníveis do terreno.
O módulo definidor da estrutura da urbanização residencial se repete no edifício do Arquivo Geral da Nação, organizado em dois blocos relacionados mediante um pátio aberto que os articulam com o conjunto residencial. A variação de cores dos tijolos diferencia as intervenções, assim como a composição maciça ritmada com aberturas em diferentes escalas.
O Centro Cultural Nueva Santa Fe explora temas recorrentes na arquitetura de Salmona, como o pátio, os muros vazados e a vivencia total do edifício, integrando com um senso de continuidade uma seqüência de sensações, desde o acesso até os percursos na cobertura. A tecnologia do tijolo, com extremo cuidado nos detalhes construtivos, o integra com os outros edifícios do contexto.
Se a arquitetura de Salmona configura a cidade, as intervenções diretas no espaço público a qualificam. Entre 1998 e 2000 foi construído o projeto da recuperação do Eixo Ambiental Avenida Jiménez, que transformou a antiga avenida em área para pedestres integrada com o sistema de transporte público. A memória de um antigo rio coberto foi recuperada através de um canal de água estruturante.
Projetar “fazendo cidade” é um desafio que merece ser assumido nas cidades brasileiras como processo de superação da visão fragmentada de edifícios autistas e isolados. Os bons exemplos merecem divulgação, especialmente aqueles de realidades urbanísticas e sociais semelhantes. A arquitetura latino americana tem muitos aportes que só precisam ser reconhecidos e difundidos como alternativa à divulgação globalizada tendenciosa.
Através dos exemplos apresentados, Salmona ensina que é possível valorizar as cidades com arquitetura residencial integrada com espaços públicos e com edifícios institucionais, assim como demonstra a importância de localizar usos mistos capazes de estimular a convivência social e a utilização dos exteriores. Ensina, também, que arquitetura qualificada mediante a coerência construtiva, a preocupação com os detalhes e com a plasticidade resultante da própria técnica, beneficia a toda a cidade. Ensina, em definitivo, que é possível fazer cidades melhores com os projetos do dia a dia. É só dar uma oportunidade à arquitetura.
sobre o autor
Roberto Ghione, arquiteto formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Planejamento Urbano, Crítica Arquitetônica e Preservação do Patrimônio pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados, Recife PE.