Porque será que é tão difícil viajar sozinho e encontrar um passageiro sentado ao lado que seja agradável para conversar?
Lembro-me da minha última viagem. Sentei junto ao corredor em um ônibus quase lotado. Ao lado da janela já estava sentado um senhor um tanto obeso, um tanto avançado na idade, um tanto abaixo da linha média socioeconômica, um tanto espaçoso, com as pernas abertas invadindo a linha divisória da poltrona que me cabia.
Como se vê, minha simpatia imediata pelo companheiro de viagem não foi das melhores e me sentei sem pedir licença – afinal ele já se encontrava ao lado e eu estava invadindo os seus arredores – e sem cumprimentá-lo. Ajeitei meus pertences, tirei o meu celular da mala e passei quase toda a viagem lendo e mandando mensagens, e telefonando, pois a rodovia de grande tráfego oferecia bom sinal para a telefonia móvel. Depois, em autoavaliação, me questionei: como posso reclamar da falta de diálogo com as pessoas, se eu mesmo faço leituras antecipadamente antipáticas e depois me porto como pessoa mal-educada e me tranco com a maquininha de isolamento social, que é o celular?
Em uma outra viagem sentei-me ao lado de um senhor franzino, de idade avançada, pele bem curtida pelo sol – pela aparência, vários sóis –, pele de quem tomou banho de sol vestido e trabalhando, provavelmente na área rural. Sentei-me, pedi licença, cumprimentei, ajeitei minhas coisas no bagageiro, quase que automaticamente peguei meu celular para conectá-lo ao WiFi do ônibus e ler as mensagens, afinal pensei que elas deviam ter se acumulado na caixa postal após um dia bem corrido, percorrendo vários endereços em São Paulo, e finalmente estava de volta ao interior. O passageiro ao lado continuou olhando pela janela – novamente eu estava sentado do lado do corredor – e ficou mudo e quieto durante a maior parte da viagem.
Aconteceu algo na viagem que lhe deu motivo a falar comigo – comentou um incidente, que não me lembro mais qual seja... – sobre algo relacionado com o que acontecera na “terra dele”, como costumam se referir algumas pessoas que emigraram de outras cidades e regiões bem distantes. E era o caso dele. Viera do Rio Grande do Norte ainda moleque para o “Sul”, no dizer dele, e ficou morando de favor na casa de um amigo do pai dele. Conseguiu um trabalho de ajudante em uma empresa de conhecidos do tio e foi progredindo. Conheceu uma mocinha, casou-se, teve três filhos, todos eles hoje formados em escola de nível técnico, dois já casados lhe deram dois netos, uma menina e um menino, ambos muito agitados mas que adoravam o vovô. Ele voltava da viagem ao Rio Grande do Norte, onde fora ver os parentes depois de muitas décadas. Levou um montão de presentes e ficou por lá uns 40 dias, pois já está aposentado. A viagem de volta, segundo ele, demorou mais e estava viajando há quatro dias.
E assim, conversamos por pelo menos metade do tempo de viagem. Pediu ao motorista para descer um pouco antes do terminal. Despedimo-nos, cordialmente. Percebi, enquanto ele descia do ônibus, que carregava vários pacotes, provavelmente presentes para os seus netos.
E finalmente, uma terceira ocasião, que prometia ser uma viagem agradável. Sentei-me ao lado de uma jovem toda perfumada, recém saída da adolescência, cabelos escuros amarrados em rabo de cavalo, óculos de sol com aros cor de rosa combinando com uma bolsa de pano também cor de rosa, com fones de ouvido ligado ao celular, também encapado com motivos florais cor de rosa. Parecia ser de classe média e estudante. Apenas cumprimentei-a ao me sentar, mas mal percebi o cumprimento dela quando me olhou e rapidamente me identificou, acredito, como alguém de classe média, que não era da faixa etária dela, e que me enquadrou, provavelmente, na faixa de seus tios mais velhos: um “tio”.
Como ela já estava digitando no seu celular – algo me inibiu a fazer o mesmo –, peguei uma revista que estava na minha maleta para folhear. Observei com o canto do olho que ela continuava digitando, e com uma habilidade que parecia não errar tanto quanto eu erro e me atrapalho com aquelas teclas miúdas. A concentração dela era tamanha que dificilmente olhava para os lados, seja pela janela para ver a paisagem, seja para outro lado, isto é, para mim, e assim continuamos mudos e quietos durante a viagem toda. Ela também precisou descer antes do terminal e, sem falar nada, levantou-se e ficou parada, até que eu me levantasse para lhe dar passagem, passou sem falar nada, e só abriu a boca para falar ao motorista que queria descer no ponto ao lado da passarela. Saiu sem agradecer a gentileza, sem olhar para os lados, apenas para os degraus, continuou caminhando e digitando. Então, tirei o meu celular para ler as minhas mensagens.
sobre o autor
Mario Yoshinaga é arquiteto, mestre em Urban Design pela Universidade de Colorado, doutor em Planejamento Urbano pela FAU USP, Conselheiro do CAU/SP e professor de arquitetura na UMC. É autor do livro Infraestrutura urbana, em coautoria com Juan Luis Mascaro (Maisquatro, Porto Alegre, 2005).