Em 17 de novembro de 1929, Le Corbusier desembarcava em Santos, do navio Giulio Cesare, proveniente de Buenos Aires.
Sua primeira visita, assim como a segunda, em 1936, já foram objeto de estudos, publicações (1) e exposição. Vale citar a mostra América do Sul – 1929, sob curadoria de Rodrigo Queiroz e Hugo Segawa, realizada no Centro Cultural Maria Antonia, em 2012, que apresentou ricos dados sobre a visita de Le Corbusier, em São Paulo (2).
Como é notório, o já grande arquiteto veio ao Brasil a convite de Paulo Prado intermediado pelo poeta Blaise Cendrars proferir palestras, que aconteceram em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Viagem marcante para nós brasileiros e para o próprio arquiteto, que no ano seguinte, 1930, publicaria o livro Precisões – sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo.
Sua visita, como não poderia deixar de ser, tornou-se fato significativo na historiografia da arquitetura brasileira. Apesar das controvérsias em torno do sucesso de público de suas conferências, é notório que a repercussão na mídia foi extensa.
Se por um lado, Lúcio Costa enfatizava o sucesso do evento na Escola de Belas Artes – ENBA, por outro lado, Alcides da Rocha Miranda (3), aluno da instituição desde 1927, relata que a audiência estava restrita a dez ou doze pessoas. E de precisões passamos a imprecisões...
Costa, em diferentes testemunhos para dois interlocutores, relatou o sucesso de público da conferência de 1929, na ENBA. Em uma entrevista concedida à revista Arquitetura, em 1987, respondeu à seguinte questão: “Desta conferência o senhor não participou?” Costa respondeu: “Eu era inteiramente alienado nessa época, mas fiz questão de ir até lá. Cheguei um pouco atrasado e a sala estava toda tomada. As portas do salão da Escola estavam cheias de gente e eu o vi falando. Fiquei um pouco, depois desisti e fui embora, inteiramente despreocupado, alheio à premente realidade”. Continuou Costa, na mesma entrevista: “No Rio, na primeira conferência que fez, em 29, a sala estava cheia, abarrotada. Pessoas interessadas, assim como em qualquer parte onde ele fosse, porque tinha a palavra fácil e precisa” (4).
No mesmo ano de 1987, em entrevista a Hugo Segawa, para revista Projeto, Costa foi questionado novamente sobre contato com Le Corbusier, em 1929, e reafirmou: “Naturalmente, como essa conferência foi muito badalada, fui para o salão nobre da Escola de Belas Artes. Cheguei lá e já tinha começado. O salão estava cheio e as portas – as três portas que dão para o hall da escada – estavam abarrotadas de pessoas olhando e querendo participar. Cheguei, olhei e vi aquele vulto no grande quadro – pregaram folhas grandes que ele ia arrancando na medida em que ilustrava a palestra com desenho” (5).
O sucesso de público provavelmente restrito ao meio intelectual não foi confirmado no relato do também arquiteto e ex-aluno da ENBA, Alcides da Rocha Miranda, que na ocasião era aluno da instituição. Segundo ele: “O fato da conferência ser em francês já restringia o público. Lembro-me que havia só uns dez, doze na primeira conferência de Le Corbusier” (6).
Para Costa (7), sucesso de público e para Rocha Miranda (8), poucas pessoas. Noves fora os lapsos de memória dos depoentes, Manuel Bandeira comentou a conferência de Le Corbusier, no Rio de Janeiro em dois artigos (9) que foram publicados no jornal A Província, do Recife, respectivamente em 22 de dezembro de 1929 e 04 de janeiro de 1930. Nos artigos, confirma-se o depoimento de Costa:
“Le Corbusier na Escola de Bellas Artes. Le Corbusier é um modernista sensato, diz em artigo para a Província o sr. Manoel Bandeira.
A sala de conferência da Escola de Belas Artes estava cheia. No centro a máquina de projeções. No quadro negro algumas folhas de papel de desenho. O arquiteto Le Corbusier tomou de um pedaço de fusain e riscou o esquema de uma casa construída com pedra (...). O francês de Le Corbusier não é bonito, a dicção penosa, o vocabulário impreciso a exposição difícil e cortada de incidente. Mas o fusain e os lápis de cor suprem as deficiências orais. Le Corbusier desenha com agilidade”.
Bandeira finaliza:
“Foi uma lição magnífica e a verdadeira Escola de Belas Artes para os arquitetos modernos. Como vêem, não basta repetir como papagaio ensinado a fórmula de Le Corbusier: A casa é uma máquina de morar. Como ele disse em sua conferência – quem mora na casa é o homem, e o homem dentro da casa pensa” (10).
Ainda que foco desse texto seja a visita de 1929, vale ressaltar que sobre a visita de 1936, Bandeira confidenciou, em carta endereçada a Mário de Andrade, lamentar a falta de assistência nas conferências de Le Corbusier, no Rio de Janeiro. Sobre elas fez o seguinte comentário: “O que você (Mário de Andrade) diz da música é verdade para as outras coisas – para a arquitetura, por exemplo. Todos esses rapazes (são centenas) que estudam na Escola de Belas não querem saber senão de cavar o diploma. O Le Corbusier fez seis conferências aqui, e era natural que os alunos de arquitetura da Escola enchessem a sala. Pois tinha lá uma meia dúzia...” (11).
Em 1929, Le Corbusier proferiu duas conferências, tanto em São Paulo como no Rio. Seu programa segue abaixo:
Conferências de São Paulo
1ª conferência: Arquitetura e a revolução arquitetural contemporânea, Local: Instituto de Engenharia. Data: 21de novembro (5ª feira). Horário: 21horas.
2ª conferência: Urbanismo – a revolução arquitetural contemporânea traz a solução da urbanização das grandes cidades modernas. Local: Instituto de Engenharia. Data: 26 de novembro (3ª feira). Horário: 21 horas.
Conferências de Rio de Janeiro
As conferências realizadas no Rio foram promovidas pelo Instituto Central de Arquitetos, presidido por Adolfo Morales de Los Rios Filho (gestão 1929-1930) (12).
1ª conferência: Arquitetura e a revolução arquitetural contemporânea, Local: Escola Nacional de Belas Artes. Data: 05 de dezembro (5ª feira). Horário: 17 horas.
2ª conferência: Urbanismo nasceu da necessidade de resolver o problema da cidade. Local: Escola Nacional de Belas Artes. Data: 07 de dezembro (sábado). Horário: 17 horas.
A visita de Le Corbusier ao Brasil coincidiu com a estada da grande estrela Josephine Baker (13). Le Corbusier, um pregador da modernidade nas artes. Baker, um ícone moderno. Essa grande dupla moderna engendrou em nossas paragens tropicais um romance. O casal da modernidade, ou do barulho? Sobre ela, Le Corbusier escreveu em Prólogo Americano: “Quando em 27 de novembro de 1929, em São Paulo, Joséphine Baker, num espetáculo idiota de variedades, cantou Baby, ela transmitiu-lhe uma sensibilidade tão intensa e dramática que as lágrimas invadiram minhas pálpebras (14).
Não é possível mensurar o impacto da influência moderna que ambos acarretaram em nosso meio cultural. A repercussão, na mídia local, dos eventos protagonizados por ambos foi imensa. Baker teve até que estender sua estadia e ampliar os dias de espetáculo. Podemos dizer que se, por um lado, ele era portador de um discurso moderno, ela, por outro, era a própria representação, isto é, encarnação, do ser moderno. Mulher de ações, palavras e costumes modernos, por sua forma de se vestir, de se portar, enfim por sua forma de viver.
Certamente, a vinda de ambos, impregnados que eram, pelos ventos modernizantes, deixou marcas, rasas ou nem tanto.
O casal Baker/Corbu participou de festa, em São Paulo, promovida por outro casal moderno – Tarsila e Oswald: “Com Le Corbusier em São Paulo, foi realizada uma festa em casa de Tarsila e Oswald, que contou com a presença esfuziante de Josephine Baker (artista por quem o arquiteto suíço se entusiasmava)” (15).
A modernidade já se instalara pelas bandas daqui, frutificou e ganhou força com a vinda de Baker e de Le Corbusier.
Muita coisa mudou em 85 anos. Mas, ainda assistimos o mesmo atropelo nos portos e aeroportos, tal qual o da chegada de Le Corbusier. O despreparo para receber estrangeiros continua o mesmo. A Copa já acabou, mas as Olimpíadas estão por vir. E é com a transcrição irônica de uma matéria jornalística de Mário de Andrade sobre a chegada de Le Corbusier que finalizo essa nota comemorativa.
“Chegou a S. Paulo Le Corbusier.
Está em S. Paulo uma das personalidades mais em vista do modernismo francês, o arquiteto Le Corbusier. Sua chegada foi acidentadíssima (grifo meu). Antes de embarcar para cá, ele escreveu a um amigo para que o fosse receber em Santos. Mandou três cartas e um telegrama, tudo com endereço certo e grande antecedência. Nada chegou ao destino. Nosso correio timbrou em mostrar ao ilustre hóspede a maneira como funciona – ou por outra – como não funciona. A recepção foi a mais desastrada que se podia fazer a um espírito bem moderno, cujos trabalhos, demonstram mentalidade das mais exatas, que hoje em dia tratam da arte. Por sinal, que este termo não fica bem aplicado à atividade de Le Corbusier. Arte ele faz quando pinta, porque é pintor, porém na arquitetura transforma-se em cientista. Suas concepções são rigorosamente baseadas em princípios práticos, vindo daí a íntegra impressão de atualidade que desprendeu. E como bom amador de cálculos certos, Le Corbusier, ledo no que lhe tinham dito, que no Brasil toda gente falava francês, desceu calmamente em Santos e logo verificou o contrário. De todo estivador, guarda da Alfândega ou marítimo a quem pedia informação recebeu a mesma resposta. Afinal conseguiu telefonar ao amigo de S. Paulo que por felicidade estava em casa. Este mandou alguém socorrer Le Corbusier no cais, onde já se encontravam desde as 2 horas da manhã. E assim pôde chegar à Luz. Porém, sem bagagens, por que a Alfândega as reteve, num grande anseio de entrar em competição com os correios, a fim de ver quem deixava impressão mais profunda e durável no espírito do viajante.
Felizmente, ele deve estar agora são e salvo em algum hotel preparando as conferências que lhe foram encomendadas pelo esclarecido prefeito Pires do Rio, e benemérito Instituto de Engenharia. Podem por isso se rejubilar os arquitetos e demais pessoas que se interessam pela arte moderna e modernismo na arquitetura, por que Le Corbusier vai generosamente revidar a má recepção com úteis ensinamentos” (16).
notas
1
Sobre o tema, ver: SANTOS, Cecília Rodrigues [et Al ]. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Tessela, Projeto Editora, 1987; HARRIS, Elizabeth Davis. Le Corbusier riscos brasileiros. São Paulo, Nobel, 1987.
2
Exposição América do Sul – 1929 Le Corbusier. Curadoria de Rodrigo Queiroz e Hugo Segawa. São Paulo, Centro Universitário Maria Antonia, out 2012.
3
Alcides da Rocha Miranda ingressou na ENBA em 1927, nº 72, e formou-se arquiteto em 1932. Livro de Matrículas nº2 (1926-1929), nº4 (1929-1930). Museu da Escola de Belas Artes – EBA-UFRJ (Museu d. João VI).
4
NOBRE, Ana Luiza (org). Lúcio Costa encontros. Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2010, p. 121, p. 123.
5
Idem, ibidem, p.154-155.
6
CAVALCANTI, Lauro. Moderno e brasileiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006, p. 42.
7
Entrevistas concedidas, em 1987, para as revistas Arquitetura e Projeto. Ver: NOBRE, Ana Op. cit.
8
Depoimento concedido a Lauro Cavalcanti. Ver: CAVALCANTI, Lauro. Op. cit.
9
BANDEIRA, Manuel. Le Corbusier na Escola de Belas Artes. A Província. Recife, 22 dez. 1929; BANDEIRA, Manuel. As novas concepções do urbanismo. A Província. Recife, 04 jan. 1930.
10
BANDEIRA, Manuel. Le Corbusier na Escola de Belas Artes. A Província. Recife, 22 dez. 1929.
11
Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, 03 out. 1936 in: Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. 2. edição. São Paulo, Edusp/IEB-USP, 2001.
12
Le Corbusier – a conferência de hoje na Escola de Belas Artes, sobre a Revolução arquitetônica moderna. Correio da Manhã. Rio de janeiro, 05 dez.1929.
13
Cronologia da estadia de Josephine Baker e Le Corbusier no Brasil, 1929
Fontes: Jornais: A Manhã, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Estado de S.Paulo, Diário Nacional. Exposição: América do Sul – 1929, Le Corbusier, São Paulo, Centro Universitário Maria Antonia, out. 2012.
14
LE CORBUSIER. Precisões sobre um estado presente de arquitetura e do urbanismo. São Paulo, Cosac Naif, 2004, p. 25.
15
AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo, Edusp/Editora 34, 2003, p. 332.
16
ANDRADE, Mário de. Le Corbusier. Diário Nacional. São Paulo, 19 nov. 1929.
sobre a autora
Silvia Palazzi Zakia faz pós-doutorado na FAU-USP e é bolsista Capes.