Caí na moda, turistei na capital uruguaia em férias de verão. Como não há meios de considerar a cidade como um todo, pois ela surpreende pela dimensão e modo como está espalhada, farei breve relato desta viagem por meio de um recorte que contempla naturalmente o que foi percorrido. Isso porque mantenho firme a convicção de ser impossível visitar e compreender em seis dias até mesmo um pequeno conjunto de quadras das cidades contemporâneas, ainda mais uma Montevidéu que possui um cipoal de desafios à percepção entre o que é a sua imagem e a cidade em si. Foram contemplados nos passeios Centro, Cidade Velha, Cordon, Palermo, Punta Carretas e Pocitos.
Três características me marcaram mais fortemente.
Primeiro o relevo com a hegemonia do plano, típico da imensa planície que acomoda o Uruguai. Não tem jeito, o urbano por mais complexo e tramado que seja, assim como todo seu aparato, se rendem a isso. Nos pontos em que a cidade se debruça na margem e beija o encontro do oceano com o rio da Prata a vista escapa para longe com facilidade. A imensidão do horizonte também revela um céu poderoso, que deixa evidente alcance e tamanho de alguns fatos.
A segunda característica é o vazio social. Trata-se de um reflexo direto da baixa densidade demográfica, que torna raro o contato com grandes fluxos, e quase impossível mergulhar numa multidão, numa via pública superlotada e congestionada. No geral depara-se com poucas pessoas circulando, levei um tempo para me acostumar que em termos de movimento e gente a rua, as calçadas e praças têm uma pincelada aqui e outra ali. Predominam amplos espaços pontuados por grupos ocasionais, episódicos conforme o fato cotidiano.
Escolhi como de costume a tecnologia dos passeios a pé. O objetivo habitual, flanar, se lançar à espera do urbano, afastar-se dos monolitos turísticos, regulados e mastigados.
O primeiro e mais agradável passeio contemplou uma longa e sinuosa andança entre a Cidade Velha, Centro e o Parque Rodó por ruas residenciais. Registro como sensações primeiras, naquilo que diz respeito ao que é típico e parece intenso na cidade e seus bairros: cultura de vizinhança e de recolhimento em casa.
As ruas têm boa largura, casas, sobrados e um ou outro edifício de pequeno e médio porte, com fachadas fincadas na calçada. Ao caminhante chega à vista simultaneamente o vazio das vias públicas e a textura das edificações, uma sucessão de portas e janelas, que aproxima a casa da rua, a vida da cidade.
Há glamour e charme na porta entreaberta, na janela com a cortina aparada, nos vasos simples dos parapeitos. Há também beleza e mistério de sons da vida recolhida ao lar que migram do íntimo residencial para a rua. E muita diversão para a curiosidade e a capacidade de se questionar sobre arquitetura, conservação, mutilação de fachadas e a vazão de interiores no cotidiano da cidade.
Em alguns trechos do Centro, Zona portuária e, sobretudo, da Cidade Velha, que recebeu maior atenção, paciência e melhor interação dos sentidos, sobe o tom melancólico rua após rua, e se renova nas esquinas, em que a impressão é que se vai passar por onde se passou. A contundência do abandono é inquietante e estimula uso mais frequente da máquina fotográfica.
Para memórias atreladas à década brasileira de 1980 algumas ruas e lugares podem incitar um encontro direto com lembranças. Cada beco e edifício abandonado revelam uma foz de mistérios, dúvidas e histórias. Balcões, colunas, janelas, ruínas, ambientes repletos de marcas que provocam também a imaginação.
Naquilo que foi possível revelar, gosto maior se deu em captar a Montevidéu como um álbum que permite ver e sentir os efeitos da alternância entre prosperidade e declínio, fragmentos senis da cidade, divorciados de símbolos efervescentes e do interesse econômico e principalmente como a vida e os sujeitos se acomodam e tingem esta paisagem.
sobre o autor
Marcelo Chemin, Bacharel em Turismo (UEPG), Doutor em Geografia (UFPR). Professor da Universidade Federal do Paraná. Atua nos cursos de graduação em Gestão Ambiental e Gestão de Turismo e mestrados em Turismo e Desenvolvimento Territorial Sustentável.