Sobre a arte de flanar muito já foi dito, desde os românticos do século 19 até os dândis contemporâneos, porém, para além do dandismo, pode ser uma arte instrutiva, se o olhar antropológico for o mote. Os espaços urbanos desvendam a forma como a cidade foi e é ocupada. Gostos e estilos se revezam como texto na arquitetura, nos traçados urbanos e no modo como as pessoas usam o espaço. Evidentemente que qualquer cidade não é fruto de uma ocupação natural; podemos aliás dizer que elas são fruto de relações de poder. Chamo mais atenção para o termo “relações” do que “poder”. Se os poderes administrativos invadem os espaços dos indivíduos com intervenções massivas e impositivas, por outro lado, as pessoas releem e refazem os espaços constituídos.
Não há cidade que não seja resultado em constante maturação desse jogo de forças. Flanar por Paris, Roma, São Paulo, Atenas, ou Ibiporã pode remeter o flâneur de olhar antropológico para o jogo que não cessa. Se há vitória de um lado, ela é sempre parcial e efêmera. As forças, provisoriamente vencidas se recompõem e o jogo continua.
Atenas aparece como um campo de batalha entre essas forças. A intervenção massiva dos Jogos Olímpicos revela que o uso do espaço não tem determinação em última instância. Regiões projetadas para receber turistas, atletas e população se tornaram zonas mortas (1), enquanto espaços esquecidos e abandonados, desinteressantes do ponto de vista estilístico, urbano e arquitetural para a especulação que cerca os Jogos, são intensamente utilizados pela população local.
Turistas são levados aos pontos tradicionais pela imposição de poderes econômicos e políticos, porém, as pessoas comuns traçam seus próprios caminhos e ocupam a cidade de modo diverso daquele desejado por esses mesmos poderes. A calçada renovada que leva ao ponto mais próximo da Acrópoles determina categoricamente o trajeto, como também os locais legalizados, como bares, cinemas, restaurantes e poucas casas remanescentes, participam do jogo impositivo; porém artesãos invadem e ocupam a calçada dando nova significação ao árido piso. Com velhos hippies, novos hippies, artesãos, donas de casa com crochês, o trajeto se torna incerto, pois há outra temporalidade no percurso. Pode-se flanar entre artesanatos, muretas para descanso, brincar com gatos e cachorros errantes, conversar com artesãos, observar as várias barraquinhas com seus badulaques. Resultado da crise, resultado da reocupação: contra o espaço impositivo, a temporalidade alternativa.
Assim se passa com os bairros no centro da cidade. Como em São Paulo, várias ruas demonstram a degradação urbana, e os prédios realmente vetustos e em ruínas expõem o comércio popular. Se foram renegados pelos poderes (políticos e econômicos), as pessoas dão nova significação. Muitos edifícios construídos em finais do século 19 e início do século 20 abrigam várias formas de comércio, longe dos turistas que, para espanto do flâneur, estão separados por uma quadra. Alguns metros são suficientes para transpor limites imaginários, pois não há barreiras físicas, mas há uma sensação de serem tão concretas que quase não permitem a comunicação.
De um lado, o comércio para turistas (souvenirs “tipicamente” gregos – como se isso fosse possível – restaurantes “tipicamente” gregos – como se isso fosse possível – com comerciantes tipicamente gregos – como se isso fosse possível: gregos, chineses, romenos, árabes dos mais diferentes países se revezam na condução dos negócios). De outro, sebos com livros amontoados até o teto, móveis realmente usados, roupas muito usadas, tatoos, roupas a quilo, restos de coisas velhas (como se fossem antiguidades) espalhadas nas calçadas, salões de beleza, tabacarias, ferramentarias, pequenos bares, todos esses sim, tipicamente gregos (como poderiam ser tipicamente paulistanos no Brás, Bom Retiro, Luz ou cariocas da gema no Saara, ou curitibano, ou belo-horizontinos...).
Para se ter certeza de que a viagem poderia ser muito bem aproveitada, o flanêur recorre ao guia francês Le Routard, porém, além das dicas tradicionais turísticas com algum toque cultural, o guia não é útil. Seguindo a lógica impositiva dos poderes econômicos e administrativos, o guia aconselha o que pode ser achado em sites de busca, mas silencia, ou melhor, alerta para não se visitar determinadas regiões, como o entorno da Praça Omonia: “este local não merece a visita em particular” (2). O local serve de passagem para o Museu Nacional Arqueológico, este sim vivamente recomendado. Se o flâneur seguir os conselhos do guia, atravessará novamente a Praça Omonia em direção ao centro se retendo com algum interesse no Mercado, porém, o guia alerta para uma possível má conservação da carne e peixes, e ignora solenemente o comércio popular com produtos realmente baratos pendurados nas paredes velhas e pichadas de prédios velhos e pichados da avenida Athinas.
Se, em algum momento, o redator tivesse parado para observar, poderia ver o que as pessoas comuns consomem, como vivem. Objetos do cotidiano expostos aos flâneurs como fossem restos arqueológicos de populações exóticas expostos ao antropólogo. Bacias de plástico, colheres para cozinha, aquecedores, ferros de passar, tábuas de passar, roupas de todos os tipos, ferramentarias, ervas, víveres, azeite de oliva nos mais diferentes recipientes... Perde-se também os brechós com roupas incríveis nas ruas adjacentes. Perde-se a imensa pichação que se tornou a cidade, a textura das paredes é o palimpsesto das gangues urbanas. Nas paredes, o contrapoder, ou o despoder, ou o sexo, ou o amor, ou o ódio, ou o irrisório tecem as suas considerações sobre a existência. Isso não pode estar no guia, isto não pode estar nos mapas turísticos, isto não pode estar no Ministério do Turismo, da Cultura, da Fazenda, da Educação, somente no silêncio da vigilância policial.
São Paulo/Atenas: a ocupação destorcida (torce-se aquela desejada pelos poderes) nos mostra mais sobre a vida do que os monumentos que querem falar da morte, ou daquilo que se quer rememorar. As pichações da avenida Athinas (da rua 25 de março) falam da vida, enquanto a Acrópoles (o Obelisco de 9 de julho) fala de turismo e de selfies. Nas ruas do centro velho, de dia, as senhoras com suas sacolas de crochê procuram as melhores ofertas, de noite, criaturas procuram texturas para pichar o inconsciente coletivo. Nos monumentos, de dia e de noite, a grandiloquência do poder se manifesta nos cliques eletrônicos dos celulares.
notas
1
JOANILHO, André Luiz. Atenas, a cidade das zonas mortas. As instalações olímpicas que não aparecem nos mapas turísticos. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 112.05, Vitruvius, jul. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.112/6113>.
2
Le Routard – Guide Athènes. Paris, Hachette, 2016, p. 131.
sobre o autor
André Luiz Joanilho é Professor Associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.