Uma das cenas icônicas do filme Asas do Desejo, do diretor alemão Wim Wenders, desenrola-se com o movimento de dois anjos caminhando por uma biblioteca, ouvindo os pensamentos dos seres humanos concentrados em meio aos livros. Outros anjos estão pelo caminho, acompanhando os humanos, quase consolando-os, apesar da incomunicabilidade entre eles. O enquadramento parte da imagem de uma composição geométrica do teto e abre-se a revelar um espaço interior fluído, com escadas e plataformas em diferentes níveis, estantes de livros e estações de estudo dispostos de maneira não hierárquica, tudo sob um teto com iluminação zenital indireta por uma espécie de lanternim circular que se repete em perspectiva, transmitindo uma iluminação diluída, quase leitosa. Trata-se do edifício Staatsbibliothek em Berlim, projeto do arquiteto alemão Hans Scharoun. A despeito do edifício da sala de concertos da Filarmônica de Berlim ser reconhecido como o projeto mais importante de Scharoun, a riqueza espacial do interior da biblioteca desperta um interesse arquitetônico inevitável.
Com essa imagem em mente, parti para Berlim com o propósito de descobrir a obra construída de Hans Scharoun na cidade, também formada por seus projetos de habitação coletiva do período entre guerras. A busca inicia-se pelo edifício da biblioteca. Aqui, cabe mencionar o sentido de conjunto urbano imaginado para este sítio ao sul do parque Tiergarten, um Fórum Cultural (Kulturforum), pensado como contraponto moderno à Ilha dos Museus (Museumsinsel) localizada a leste da avenida Unter den Linden. O Fórum Cultural ocupa uma região que foi destruída durante a Segunda Guerra, nas imediações da Potsdamer Platz, e é composto pelos edifícios da Filarmônica, a Sala de Música de Câmara, o Museu de Instrumentos Musicais, a Biblioteca (todos projetados por Hans Scharoun), e ainda completado pela Neue Nationalgalerie (projeto do arquiteto Mies van der Rohe), e os museus Gemäldegalerie e Kunstgewerbemuseum.
Curiosamente, o complexo edificado da Potsdamer Platz, um dos ícones do período pós-muro de Berlim, tem pouquíssima relação com o longo edifício da biblioteca, apesar de ser vizinho direto, concedendo-lhe uma injusta barreira visual formada pela parede dos fundos do complexo do teatro e cassino. Apenas uma abertura em forma de fenda, centro radial de uma pequena praça, revela timidamente a presença da biblioteca, uma reverência quase poética à obra de Scharoun, porém, inócua pela falta de conexão física e que passa desapercebida aos passantes menos iniciados à temática da arquitetura.
Já no interior da biblioteca, com acesso principal pela avenida Potsdamer Str., percorre-se uma sequência de escadas assimétricas e espaços intermediários que conectam mezaninos em níveis diversos. A iluminação inicialmente é filtrada por vitrais coloridos na circulação principal, e uma sequência de planos não ortogonais fluem pelos diverso platôs conectados, alternando espaços de leitura, estantes de livros, áreas de estar, balcão de consultas e jardim interno. Um espaço interior rico, estimulante e silencioso.
Como contraponto a este primeiro contato à obra de Scharoun, o próximo passo seria visitar alguns de seus projetos de habitação coletiva. Sua obra habitacional possui a peculiaridade de conciliar as propostas modernas com um projeto caracterizado pela expressão pessoal, que se traduz em edifícios residenciais com blocos fragmentados e dobras nos volumes, multiplicidade de implantações, diversidade de alturas. O autor busca alternativas às lâminas prismáticas prototípicas da arquitetura moderna, com criterioso tratamento das esquinas, além de variações de arranjos de plantas, varandas, e proeminência no estudo da luz natural.
Após algumas conexões de metrô chega-se facilmente à estação Kaiserdamm da linha U2. O bloco de edifícios Kaiserdamm (1928) tem frente para três ruas com trânsito intenso, possui uma base comercial e cinco pavimentos com unidades habitacionais. O desenho de Scharoun revela-se nas soluções de esquina, aberturas e sacadas, e na transição da cobertura com edificações vizinhas, mantendo a unidade de gabarito, porém, introduzindo volumes verticais e terraços desalinhados.
Com mais uma conexão simples de metrô chega-se à estação Siemensdamm da linha U7, local de implantação do conjunto Siemensstadt (1929), que é classificado como patrimônio pela Unesco. Além dos edifícios projetados por Scharoun, destaca-se no conjunto os blocos de autoria de Walter Gropius e Hugo Häring. Aqui, a plástica dos edifícios projetados por Scharoun é ainda mais livre, com destaque para as sacadas curvas e elementos na cobertura. Ressalta-se a importância com que esses dois temas, habitação coletiva e equipamento cultural, foram tratados pelo arquiteto, e de modo geral pelos arquitetos pioneiros da arquitetura moderna. Especialmente no após Guerra, esses temas foram parte do programa do welfare state na Europa ocidental, no qual os arquitetos tiveram papel preponderante na sua formulação.
Retornando à região do Kulturforum, é o momento de explorar o projeto mais emblemático do nosso autor: o edifício da Filarmônica de Berlim. Sua história começa com um concurso de projeto em 1956. Após um longo processo, começou a ser executado em 1960 e foi inaugurado em 1963, com o maestro Herbert von Karajan conduzindo a Nona Sinfonia de Beethoven.
Além de volumes assimétricos e formas que sugerem o desenho de uma tenda, o edifício se conecta fisicamente com a Sala de Música de Câmara e com o Museu de Instrumentos Musicais, formando uma bandeja externa com terraços e escadas soltas, com acessos por diversas faces do conjunto. A despeito da complexidade volumétrica, integração e ausência de hierarquia visual parecem permear todo o conjunto.
Com agendamento é possível fazer uma visita orientada pelo interior do edifício. A partir do foyer, percorre-se uma sequência de escadas e desníveis num espaço não ortogonal, com referências semelhantes ao interior da biblioteca, como vitrais coloridos e iluminação zenital indireta. A medida que se ganha altura no percurso, uma série de acessos com molduras em madeira anunciam as passagens para o interior da sala. Há austeridade na ambiência do foyer e circulações, com piso de pedra escura variada formando em algumas partes mosaicos geométricos (obra do escultor Erich F. Reuther) e paredes brancas, destacadas pelos vitrais coloridos pontuais. Durante a visita, passamos pelo ensaio de um coral no foyer, embaixo dos planos inclinados da plateia. Percebe-se que a música permeia todos os espaços da arquitetura.
A transição para o interior da sala principal é o ponto alto da experiência arquitetônica, momento em que a predominância do revestimento em madeira e a acústica do lugar muda a percepção ambiental. No interior da sala é proibido fotografar. Contenta-se com o fato de que arquitetura é uma experiência sensorial, ou seja, deve-se experimentar o espaço com seu próprio corpo, pois nenhuma representação é suficiente. Entramos em um dos lugares mais altos da plateia, em frente ao grande órgão de tubos localizado de modo assimétrico ao eixo principal. Presenciamos uma atividade no palco, um ensaio informal, com técnicos alterando equipamentos de lugar. Nossa guia explica os pormenores acústicos da sala, e o princípio do desenho formado pela intersecção de três pentagramas rotacionados.
O partido básico de Scharoun para o desenho do interior da sala de concerto apoia-se na ideia de que, em diferentes culturas e épocas, o ser humano se agrupa em círculo para ouvir música, como um ato espontâneo de reunião e celebração. Assim, diferentemente das tradicionais salas de concerto que tem uma distribuição rígida com a plateia sentada em frente à orquestra, aqui o arquiteto desenha um espaço com grupos de espectadores distribuídos ao redor da orquestra, em platôs, uma distribuição que sugere, como metáfora, encostas com vinhedos que se espalham pelo relevo. Formam-se 23 grupos de lugares, cada um com faixas paralelas de assentos com aproximadamente o mesmo número de integrantes da orquestra filarmônica completa.
Coerente com um princípio de igualdade típico dos valores de uma sociedade aberta, democrática, o projeto permite uma circulação livre por todos os grupos da plateia, assim, além da comunicação visual entre toda a audiência, ora a frente, ora ao lado, ora atrás da orquestra, também há ligação física entre todos os setores. Todos dividem o mesmo foyer, o mesmo bar, a mesma sala, a mesma arquitetura. Pela celebração da música, o projeto materializa um princípio humanista e igualitário. Com o desenho de distribuição da plateia ao redor da orquestra, Scharoun criou com seu projeto uma espécie de novo protótipo para salas de concertos, um partido arquitetônico que irá influenciar diversos outros arquitetos, como na Sydney Opera House de Jørn Utzon, no Auditório de Barcelona de Rafael Moneo, no Parco della Musica em Roma de Renzo Piano, ou mesmo no Disney Concert Hall de Frank Gehry em Los Angeles.
Finalmente, uma última volta externa para tentar compreender a volumetria complexa, quase um desenho urbano, com suas torres de circulação, planos inclinados, terraços horizontais, e revestimento em alumínio anodizado dourado com marcações piramidais. No topo do edifício encontra-se uma escultura intitulada Phoenix, de Hans Uhlmann. Phoenix surge da cobertura ondulada e está apontada em direção ao edifício Reichstag, sede do parlamento alemão e que permaneceu em ruínas até o final da década de 1990.
Em 1961, durante as obras do edifício da Filarmônica, a construção do muro de Berlim a poucos metros de distância criou um contraponto sombrio sobre os valores democráticos e de uma sociedade aberta evocados pelo desenho de Scharoun. A ideia de um Kulturforum moderno como complemento aos edifícios neoclássicos da Ilha dos Museus, e de uma cidade que se reconstruía sobre as cinzas da guerra, foi parcialmente interrompida pela barreira física do muro. Uma sociedade aberta, democrática e livre, necessita de uma cidade aberta. Os anjos de Wim Wenders na Biblioteca, bem como as asas de Phoenix no cume da Filarmônica, parecem sugerir uma leveza necessária ao peso da história, enaltecendo o legado arquitetônico de Hans Scharoun.
sobre o autor
Fabiano Borba Vianna é doutorando e mestre em arquitetura e urbanismo (FAU USP), é pesquisador PhD visitante na Delft University of Technology (TU Delft).