Em Muur, todos vivem condicionados entre limites e obstáculos. As muralhas, cercas, grades e fronteiras formam faixas infinitas na cidade, não sabemos onde começam ou terminam. Chamam essas faixas de murados, aqueles que protegem uns aos outros, enquanto o lado de fora é esquecido, como um rastro e um resto de uma cidade. Cada murado tem uma característica, uma história e moradores que lá vivem.
Os habitantes de Muur são individualistas, não permanecem nenhum nem qualquer tipo de laços ou vínculos. Cada um vive em um dos murados fechados da cidade, eles não interagem uns com os outros, seguem costumes diários, funções e compromissos, e são cercados de regras e restrições. Vivem muito preocupados em segui-las e não se dão conta de que estão enclausurados.
Neste relato, são descritos cinco diferentes murados encontrados na cidade de Muur e como os habitantes vivem e convivem junto a eles.
Muur e as divergências
Muur é uma cidade grande, com seus bilhões de habitantes que não conseguem viver com diferenças. Assim, construiu-se um murado para os diferentões. É um dos murados mais extensos da cidade. Uma grade de muros e mais muros dividindo grupos, comunidades, clãs e famílias. São valores, ideias, gostos e aparências diferentes. Cada dia surge uma nova divisão: muros remendados, em construção e hostis que evitam uns aos outros. Os habitantes que ali vivem passam o dia discutindo suas opiniões. Se uma opinião diverge com a do outro, nasce ali mais uma extensão do murado, constroem tijolo por tijolo antes que o sol se ponha. Há também aqueles que percebem que mudaram de opinião e, portanto, voltam aos seus nichos antigos ou migram para um outro que acharem mais conveniente para si. Logo, muitos muros ficam abandonados, à venda ou em reforma. Dessa maneira, Muur procura evitar a violência, a divergência e a discórdia, divide seus habitantes em nichos mas assegura a identidade social e os estereótipos de cada grupo da cidade.
Muur e o rio
No meio de Muur passa um rio. Conta-se em uma lenda que o rio era água de se beber, de se pular e de se pescar. Não se sabe como nem quando, o rio passou a feder, virou lixo descartável, todos o evitavam para não sentir o seu cheiro. Assim, um grupo de moradores resolveu transformar o rio em muro. Subiram duas paredes invisíveis em cada uma de suas margens. Vidros altos para barrar o mal cheiro de esgoto, mas que ainda assim fosse possível admirar as águas, como um grande aquário, e lembrar dos tempos de banhos refrescantes no verão de Muur.
Muitos habitantes contestaram o rio murado. Agora os que estavam do lado de cá não mais podiam atravessar o rio para o lado de lá. Assim, para evitar qualquer rebeldia, o vidro que protege o rio é cercado por cabines de vigias. Os vigias não só tomam conta do murado mas também passam dias e horas cheirando o rio e criando fórmulas e descobertas para limpar de vez suas águas. Eles dormem em suas cabines aprisionadas de apenas alguns metros quadrados, acordam cedo, usam o rio como privada e, ai então, começam a desenvolver fórmulas, químicas e aparelhagens para limpar a sujeira que permeia a superfície d’água. São horas de esforço e não conseguem entender o porquê, apesar de tantas tentativas, o rio fica ainda mais sujo com o passar do tempo.
Muur e a muralha
Assim como em muitas outras cidades, Muur é cenário de famosas lendas urbanas. Os habitantes conhecem e compartilham muitas histórias que aconteceram no passado, terrores, superstições, lendas que, com o passar do tempo, de boca em boca, foram ficando ainda mais amedrontadoras. A cada ano que passa, mais habitantes comentam sobre essas lendas e o medo de perder a vida é implantado e germinado em cada um. Logo, grande parte da população de Muur foi tornando-se cada vez mais medrosa, imaginavam as piores situações a todo momento, temiam a cidade e os outros e tudo era considerado uma ameaça à sobrevivência.
Não aguentando mais essa situação, parte dos habitantes de Muur decidiu construir um muro tão alto quanto seus medos. Uma muralha defensora, um escudo para os seus temores. Foram anos de construção, pedra em cima de pedra, até chegar na altura ideal. Para reforçar suas seguranças, os moradores da muralha instalaram câmaras, que vigiavam a todos, e cercas elétricas, que eletrocutavam qualquer um que alcançasse o topo. Quem morava ali dentro passava o dia vigiando, rastreando qualquer movimento duvidoso e caçando seus medos. A Muralha era tão alta, pálida e intimidadora que ninguém de Muur conseguia desviar o olhar. Tomava conta da paisagem monótona da cidade. Virou uma Muralha famosa, conhecida! Nunca ninguém conseguiu entrar dentro dela. Sua sombra protege grande parte da cidade durante o verão quente, e torna ainda mais frio o inverno gelado. Muitos dos que vão visitar Muur não deixam de passar por essa grande parede dura, construída para proteger o medo dos que moram lá dentro, mas que permeia ainda mais o terror para aqueles do lado de fora.
Com o passar do tempo, a Muralha passou a ser o principal atrativo da cidade. A parede dura passou a ser mais permeável e menos temerosa. Assim, o topo da muralha de Muur ainda é pálido, medroso, vigia elétrico, duro e defensor, mas quando você se aproxima, lá no chão, encontra os verdadeiros habitantes de Muur, a parede com a voz do povo, o vendedor que grita, o habitante, que sem medo, se identifica e se apropria daquilo que é seu: a cidade e o muro.
Muur e o design
O muro virou moda. Construir os limites urbanos era divertido, era chique. Em uma certa ocasião, perto das reeleições, o governador de Muur convocou vários arquitetos para projetarem o melhor muro da cidade. O muro foi estudado, projetado e construído. Não se sabe ao certo se a culpa é do governador ou dos arquitetos, mas aquele que era para ser o muro do design elegante, hoje é conhecido como o deformado. É um muro com vários ângulos, traços e alturas.
Ainda assim, não podemos desvalidar todo o trabalho feito. O muro e a sua geometria complexa acolhem aqueles de passagem ou refugiados pela cidade. É uma arquitetura que cria possibilidades e experiências para os moradores de Muur: eles podem escalar, andar e se equilibrar pelos moldes de concreto, é uma parede para brincar... O design deformado, apesar de muito estranho, ainda assim é muito divertido.
Muur e o esconderijo
Muitos dos habitantes de Muur estavam cansados da correria e dos medos do dia-a-dia, queriam viver em lugares mais escondidos, isolados de toda a bagunça e perigos urbanos. Queriam poder se esconder sem ao menos ninguém saber. Eles, portanto, se infiltraram dentro dos parques e praças da cidade e lá, estancaram muros ocos, estacas finas e camufladas junto a paisagem, um murado quase imperceptível. Os moradores dentro do murado oco passam os dias se camuflando e se escondendo daqueles do lado de fora. Estudam as tonalidades das cores na paisagem e as pintam em seus muros camuflados, pesquisam os materiais mais imperceptíveis e, enfim, faz do muro parte da paisagem, ele é a paisagem.
Há aqueles que andam e se perdem por entre o labirinto de estacas finas. Passam horas desvendando seus caminhos à procura de uma saída. São caminhos ora estreitos, ora largos, onde o corpo se perde, sente e vive cada espaço a ser descoberto. Um muro que esconderijo, mas também labirinto de surpresas e experiências na cidade de Muur.
sobre a autora
Aline de Camargo Barros é graduada em Arquitetura e Urbanismo, em 2016, pelo Centro Universitário Senac. Em sua tese de trabalho de conclusão de curso, investigou os muros e limites urbanos na cidade de São Paulo, abrangendo o tema não apenas em escalas espaciais mas também sociais, políticas e econômicas. Durante 2017, a tese foi publicada no Congresso Latino-americano CICAU – Paraguai, Assunção, na Revista Acadêmica da Escola da Cidade Edição #4 e apresentado na Universidade Andina de Cusco, Peru. Em sua carreira acadêmica, Aline participou da bolsa do Governo brasileiro (Capes) – Ciências sem Fronteiras, em 2014, quando cursou um ano letivo na University of Illinois at Chicago – Illinois e trabalhou um período no laboratório MIT Senseable City Lab, em Cambridge – Massachusetts. Atualmente, trabalha como designer gráfica. Em paralelo, Aline também desenvolve uma produção gráfica, com enfoque em colagens. Uma de suas colagens, desenvolvida especialmente para uma tese de doutorado, foi publicada nas Resenhas Online da Revista Vitruvius.