O que nos faz pegar a estrada e cruzar cidades e estados? Arquitetura, sítios históricos e desenhos formam o mote para um dos percursos pelas cidades históricas de Marechal Deodoro e Penedo (AL), e São Cristóvão (SE). Em comum, elas são representativas de núcleos urbanos coloniais através de suas marcas e acumulados de um período histórico importante para a compreensão da formação da sociedade brasileira. Como professores arquitetos, costumamos dizer que em nossas viagens – mesmo nas férias – estamos sempre a preparar aulas. Não deixamos escapar nada ao nosso olhar. Nessa viagem fomos motivados a ver o que as cidades ainda apresentam, em suas materialidades, de referências do núcleo urbano colonial e do caráter barroco em suas diversas escalas: da visão panorâmica (a cidade de fora) à visão aproximada (a relação do edifício com o entorno, a arquitetura e detalhes).
Dentre outras determinações, combinamos de entrar nas igrejas. Observar sua implantação no sítio, detalhes da cantaria, o frontão; a existência ou não das torres, elementos decorativos, estatuária, esquadrias, cores e materiais; os vestígios de ampliações não executadas, as janelas do tempo deixadas por intervenções de restauro; registrar o desenho do piso; sentar em um banco e olhar para o alto imaginando a execução do teto; reconstituir a história do edifício conversando com alguém; sentir o lugar. Se muitos aspectos podem ser previstos antes de iniciarmos a viagem, é importante que o imprevisto possa ser incorporado. De forma que o roteiro inicial nunca é restritivo, pode sempre ser ajustado conforme o que a cidade possa oferecer. Se a motivação principal foi o reconhecimento das cidades com relação à representatividade no quadro das cidades coloniais brasileiras, a maneira de vivenciá-las seguiu uma prática de deixar o carro e explorar o sítio a pé, o que nos possibilita uma relação espaço-temporal que se pretende distinta do que estamos acostumados a vivenciar no cotidiano. Procuramos escapar da lógica do tempo acelerado, que tende a tornar invisível o espaço que nos rodeia. Nessas viagens, procuramos dar visibilidade ao que as cidades têm a dizer, regidos pela lógica do tempo lento. Enquanto viajantes/observadores, nos afastamos da ideia do tudo devorar. O que nos norteia é o desejo do observar, a partir de um olhar mais atento. É estar no lugar no sentido de torná-lo visível não somente ao olho. É ir além: sentir o lugar, através de todos os sentidos. Como viajantes/desenhadores, utilizamos o desenho como forma de expressão do diálogo estabelecido com as cidades. Através do desenho construímos imagens mentais que armazenamos em nossos cadernos de viagens, tornando-os nossos suportes de memória. A prática da observação e do registro através dos desenhos possibilita também uma imersão nessa atmosfera espaço-temporal, por nós considerada necessária para uma observação mais apurada dos locais visitados. Isto posto, passaremos a apresentar a experiência da viagem.
Marechal Deodoro é uma cidade cujo centro histórico beira às margens da Lagoa Manguaba. Estacionamos o carro em uma rua próxima à casa de Câmara e Cadeia, e não no largo diante da Igreja Matriz de N. Sra. da Conceição, isso pode atrapalhar a cena a ser desenhada, nossas fotos e as fotos dos outros. Não bastasse a poluição visual causada pela fiação elétrica, típica da maioria das cidades, temos que lidar com a invasão dos espaços urbanos pelos carros em detrimento da circulação de pessoas. A casa de Câmara e Cadeia abriga uma biblioteca, o Iphan e espaços de exposição. Na outra extremidade do largo está a igreja matriz, ladeada pelo casario predominantemente térreo. É preciso caminhar, explorar o entorno, encontrar pontos de vista, possibilidades de enquadramento e, se possível, uma sombra! Pois é verão e desenhar demanda um tempo, para escolher o caderno, as canetas, a técnica e, principalmente, para observar. E pronto, eis o primeiro desenho.
Vamos adiante observando como as edificações se adaptam à topografia irregular. Descendo a ladeira na direção da lagoa o som das filarmônicas compõe o fundo musical do passeio, são uma tradição da cidade. A rua é cheia de escadas de acesso às casas, algumas ocupam até a calçada. Aproveitamos para registrar a variedade das esquadrias, bandeiras, venezianas, caixilhos e ornamentos.
E eis que na curva da rua uma torre anuncia a presença de uma igreja, um largo se abre, é uma intervenção moderna que define áreas pedonais e ambientes com bancos; a vegetação é escassa. No entorno edificações comerciais e ao fundo avistamos o Convento Franciscano e a Igreja de Sta. Maria Madalena, ambos fechados, não importa, vamos procurar uma sombra e fazer um desenho. Com um almoço na beira da lagoa nos despedimos da cidade.
A próxima parada faz parte da rota que o Imperador D. Pedro II fez em 1859. O primeiro contato com a cidade de Penedo nos deu uma boa noção da escala, da vastidão do Rio São Francisco e o seu caráter integrador, pois o rio apresenta-se como elemento que articula os estados de Alagoas e Sergipe através da balsa. Tivemos a sorte de nos hospedar em uma pousada localizada defronte ao rio, um sobrado de 1734. Ao lado, a Igreja de N. Sra. da Corrente, sua fachada, como elemento de articulação com o largo, aponta para uma ideia de monumentalidade, porém, a nave tem pouca profundidade, pois trata-se de um templo originalmente particular. No entanto, chama a atenção a riqueza da ornamentação, dos entalhes em madeira, do piso em ladrilho inglês, dos azulejos portugueses e belíssima pintura de teto. A funcionária nos mostra a passagem secreta e fala que os proprietários eram abolicionistas e que escondiam escravos fugitivos ali até que fossem providenciadas cartas de alforria. Na fresta estreita camuflada em um nicho lateral cabem 4 adultos em pé.
Seguimos o passeio, adentrando a cidade, mas nos mantendo às margens do rio, em busca das ruínas do Forte Maurício, das primeiras edificações que formaram a vila e do almoço, não dá para caminhar e desenhar com a barriga vazia, a tarde se inicia. De volta ao passeio seguimos as torres. A primeira articulação percorrida foi entre a Igreja da Corrente e a Igreja Matriz. Ao seguir o percurso da via que liga os dois templos, pudemos observar como a Matriz vai aparecendo aos poucos, até despontar em sua plenitude quando adentramos o espaço da praça, definido também pelos prédios da prefeitura e da Casa da Aposentadoria.
Ao chegarmos ao largo, nos deslocamos à direita e já identificamos o conjunto franciscano, primeiramente pelo cruzeiro que anuncia o conjunto, localizado em uma praça contígua a este. Da praça pudemos observar e desenhar a forte relação estabelecida entre os dois templos, articulados pela praça. Seguindo em direção à via localizada na parte posterior da Matriz, pudemos vislumbrar outra articulação entre templos, desta feita entre a Matriz e a Igreja do Rosário.
Além da possibilidade de identificarmos na cidade a ideia de sistema articulado, característico do desenho barroco dos núcleos urbanos coloniais brasileiros, em Penedo pudemos observar outras referências arquitetônicas. A cidade apresenta edifícios em estilo Eclético, Art Déco e Modernista. O casario que mescla edificações térreas e sobrados, dão conta dos vários períodos históricos que vão do típico lote colonial, estreito e lindeiro, às casas do século XIX que incorporam os recuos, porém, não se configuram como jardins. A vegetação está presente na cidade, notadamente nas praças e canteiros de rua.
Sentamos na praça diante do Conjunto Franciscano observando suas características, a torre recuada, as volutas do frontão. E começa a surgir um desenho. Uma estrutura à direita da igreja chama atenção e ficamos especulando sobre a sua função, seria um tipo de chaminé? Que bom seria poder entrar e percorrer todo o conjunto. O desenho inacabado, mas igreja está aberta, podemos, pelo menos, visitar o templo. Na nave, estudantes ouvem as explicações do guia, enquanto nós procuramos absorver as informações contidas naquele edifício. Como a interação com pessoas do lugar faz parte da rotina de nossas andanças, nos aproximamos de um funcionário para puxar uma prosa e descobrir o que é a tal estrutura que vimos de fora. O fato de sermos arquitetos é um ponto favorável, pois trata-se do responsável pela obra de instalação de uma pousada em parte do claustro do convento, e nosso interesse pelo edifício é como um sinal de respeito ao trabalho dele. – Vocês se importam com a poeira de obra? Estamos lixando o piso. Se não, levo vocês até lá. – É claro que não, obra é assim mesmo! E lá vamos nós adentrar o claustro, percorrer o conjunto, e ver a intervenção, a relação dos ambientes com a cidade e com o rio através das janelas, a função original de cada cômodo, o quarto do castigo, o refeitório. Muitas fotos são feitas para ilustrar nossas aulas. E sim, a estrutura teve a função original de exaustor na cozinha. Nos demoramos nesse passeio não previsto, tão rico de informações. Percebemos a importância de ouvir e dar atenção ao que o outro tem a nos dizer, nos despedimos com a expectativa de um dia nos hospedarmos lá. De volta a praça, é preciso concluir o desenho, a tarde está quase no fim.
No dia seguinte partimos para São Cristóvão, cidade que guarda proximidade com a Bacia do rio Vaza-barris. O roteiro foi orientado pelos percursos que articulam as igrejas. Iniciamos a caminhada pela praça onde está o conjunto franciscano, de onde seguimos em direção à praça da Igreja Matriz, conjunto do Carmo e Igreja do Rosário.
Concluímos o relato com uma boa impressão destes espaços, não somente pela dimensão histórica que eles contêm, mas também por apresentarem aspectos de vitalidade. Afinal, coisa boa é um centro histórico ativo! E ainda mais quando observamos que o motivo dessa vivacidade, provém do uso dado pelos moradores e do comércio local. O turismo se faz presente, mas não se sobrepõe à dinâmica do lugar.
Damos vivas ao tempo lento!
sobre os autores
José Clewton do Nascimento é arquiteto e urbanista, Doutor, professor do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Desenhador e andarilho. Membro da Coordenação do Grupo Urban Sketchers Natal. Praticante da “experimentação” do espaço, na busca de captar um universo mais amplo de apreensões dos lugares visitados e desenhados.
Eunádia Silva Cavalcante é arquiteta e urbanista, doutora, professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo e do Mestrado Profissional em Arquitetura, Projeto e Meio Ambiente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pesquisadora, extensionista, membro do Urban Sketchers Natal, andarilha e curiosa sobre as cidades, seus edifícios, pormenores e suas gentes.