Suor. Cartagena sua como nos livros de Garcia Márquez. O suor cola na roupa no trajeto do quarto ao restaurante para o café da manhã, do hotel barato no centro da cidade. O calor abafadiço, logo de manhã, nos introduz aos romances de Garcia Márquez. Mais ainda, à noite, o hotel do centro se cerca de putas (não se sabe se são tristes, alegres, motivadas, empreendedoras ou entediadas por terem de trabalhar). O trottoir se faz de escritório do desejo alheio, enquanto o suor escorre pelo corpo.
Putas que se concentram na principal entrada da ciudad amurallada e se expõem debaixo da estátua gloriosa de Pedro de Heredía, fundador de Cartagena. Esperam turistas nórdicos que buscam o carinho de putas latinas que devem sussurrar, languidamente, aos ouvidos “mí amor”, quando entrelaçados de suor.
Cartagena de Índias, uma impressionante empresa colonial. O orgulho espanhol que feriu a terra e a cobiça que fez muralhas impressionantes para a guerra, para as batalhas, para a proteção da plata del rey que corria pelas veias da América Latina. Muralhas que foram erguidas no charco, nas areias e na terra das Índias e se tornou o principal porto de toda a América do Sul por mais de três séculos. Símbolo da soberba.
Foi uma obra da tenacidade, da obstinação, da obsessão pela plata, e também pelas almas dos indígenas que as perderam construindo muralhas para los reyes Felipes, Fernandos, Carlos, Josés, Felipes, Fernandos, Carlos, Josés... Igrejas, muralhas, casas que se apinham pelas ruas estreitas para protegerem do sol, mas não do suor. Balcões que se projetam sobre as ruas lembrando Goya (“Majas en el Balcón”, 1808-1814, Metropolitan Museu of Art, New York). As pequenas aristocratas criollas, sob o olhar severo dos pais criollos, flertam com os pequenos aristocratas criollos que flanam, ao entardecer, pelas ruas estreitas de Cartagena de Índias, no momento menos suarento do dia.
Simulacro das cidades ibéricas. Uma reprodução, mas, como não poderia deixar de ser, criolla. A obsessão fez erguer uma cidade ibérica que nunca deixou de ser, desde a primeira pedra, América latina. Ruas que lembram o centro histórico de Cádiz, mas que são só uma lembrança, pois o suor transporta para a realidade americana. Retrato da determinação espanhola em conquistar, em tomar, em se apossar para el rey. Conquista da América é muito mais honroso aos conquistados do que o anódino “descobrimento” português, uma espécie de sem querer, de sem vontade, de topar com um continente distraidamente. El Rey fez da conquista uma ventura, uma qualidade, uma afirmação do orgulho de dominar. A arte da guerra se fez cidade, se fez domínio, se fez reino.
A ciudad amurallada é deleite para arquitetos que gostam de se inspirar na arquitetura colonial. É deleite para urbanistas que sentem a obstinação ibérica na busca de racionalidade nos traçados retilíneos da cidade colonial. Quase não há curvas, viradas, becos. A muralha protege a cobiça e a cidade emula uma espécie de fé que busca a Razão, mas constrói igrejas, seminários, conventos, escolas católicas por toda parte. Flanar pelas ruas retas, para os colonos, para os indígenas, para a elite criolla, é um ato de fé. A todo instante, há uma parada obrigatória para fazer o sinal da cruz, para rezar por proteção, por reparação, por solução, por recuperação, por salvação, aos santos, anjos, arcanjos, beatos, à Divindade, entre lágrimas e suor de fiéis fervorosos.
A muralha feita para proteção de la plata del rey foi atacada por corsários, por exércitos, por aventureiros. O sangue corria pelas pedras talhadas no suor indígena. Agora, turistas tiram fotos e passeiam sobre as mesmas pedras, como se não houvesse história, como se não houvesse luta, como se não houvesse cobiça e obsessão, como se não tivesse custado as almas de seus protetores, de seus assaltantes, dos índios. O turista se deleita, no café instalado no alto da muralha, com lanches “exquisitos y ricos”, enquanto admira o pôr-do-sol no mar do Caribe. Fazem poses com o crepúsculo como pano de fundo. Fotos que serão postadas imediatamente nas redes sociais para a invídia, para a inveja, para provocar desejos em amigos, enquanto as pedras lavadas e secadas não expõem mais o sangue dos combates pela plata del rey.
Flana-se pela cidade histórica cercado de vendedores de bugigangas falsificadas. “No, gracias” nada significa, pois continuam acompanhando o turista, desejoso de novidades para postar nas redes sociais, com paciência canina, talvez esperando que, depois de algum tempo, o turista se convença de que precisa da bugiganga, na esperança que o turista se canse do assédio e compre a preciosidade falsificada chinesa, paraguaia, angolana..., na expectativa que o tesouro falso que vende convença o turista ou que se dê conta de que realmente precisa de um charuto “cubano”, de um chapéu “Panamá”, de um “regalo” chinês, de um turbante “cartageno” como portam as negras caribenhas.
Cartagena de Índias é suor, é inundação, é úmida, é maresia. Água é o signo da cidade ainda povoada de personagens dos romances de Garcia Márquez. Não há movimento brusco, não há pressa, não há muito esforço, porque nada-se no suor, na inundação, na maresia, na umidade nada relativa do ar.
Cartagena sua, mas exala pelos poros o perfume da América Latina (às vezes, só o odor, às vezes, flores exóticas). Vendedores e putas povoam a ciudad amurallada entre turistas ansiosos para publicar as novidades nas redes. Fora dali, a cidade é só uma cidade sul-americana, com seus traçados imperfeitos, calçadas rotas, trânsito quase caótico e turismo de gosto duvidoso. Principal porto colonial, continua sendo a principalentrada, ou saída, das veias e das almas da nossa América.
sobre o autor
André Luiz Joanilho, doutor em História, é professor aposentado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina – UEL.