Demiurgos acordaram e impuseram destinos. Escreveram torto sobre linhas tortas. Jogaram dados e o acaso se fez História. Quando se acreditava uma sequência de acontecimentos concatenados, explicados e racionalizados, os dados dos Demiurgos turvaram as águas límpidas dos historiadores.
Conquistadores rumam em direção às metrópoles de outrora: conquistadores derrotados. Se aninham onde podem, nos desvãos da racionalidade tecnocrática e avançam, inexoravelmente, pelo continente europeu, instigados pelos dados que foram lançados ao acaso.
O sonho de um futuro racionalizado, ordenado e hierarquizado se desfaz, quando se acorda para as “hordas” de bárbaros vencidos que adentram pela, agora, planejada; pela, agora, limpa; pela, agora, desenvolvida; pela, agora, consciência do planeta; pela, agora, civilizada Europa.
Atenas é o primeiro porto, a primeira porta, a primeira passagem para o norte. Os dados foram novamente lançados e aqueles que eram os colonizados estão vindo em ondas, numa invasão sem batalhas. Derrotados nos seus países, experimentam a sorte dos dados.
A Europa se defende, mas inutilmente. Ela será colonizada por centenas de povos descolonizados. Pode-se ver bárbaros nesta porta da “civilização”. Na aparente caótica cidade de Atenas há uma certa ordem. Lojas árabes, chinesas, paquistanesas, indianas se misturam. O chinês que atravessa a rua correndo, desafiando o sinal de pedestres, passa em frente da “exportadora paquistanesa”.
Romenas vendem flores nas ruas ao lado de africanos tentando “impor” pulseiras étnicas a turistas desatentos, na praça da estação Monasthiraki. Duas quadras abaixo, na rua Ermou, um mercado de quinquilharias se estende pela calçada, alcançando o meio fio (policiais passam impávidos diante das montanhas de troços eletrônicos). Uma pequena loja, na mesma rua, expõe broches soviéticos, búlgaros, húngaros, romenos como se a decadência fosse a única certeza que se cultiva nestas quatro quadras da Ermou.
É neste caos que surgem novas ordens, novas formas de ser, de estar, de viver. Sobre as pedras da cidade antiga, uma outra surge. Aliás, Atenas é um deixar de ser constante. Prédios e casas semiarruinados nos chamam para a brevidade das certezas de uma cidade que sonhou em ser uma metrópole olímpica e agora amarga o preço da empáfia. O estádio olímpico jaz semiabandonado diante de um fervilhante shopping center.
O sonho olímpico se transformou num pesadelo de uma crise econômica que alimenta o jogo de dados. O urbanismo desejado se retraiu na desordem comum. O tráfego parece obedecer à ordem alguma no seu movimento caótico. Mas há: há pressa, muita pressa, é o que se desprende do aparente caos. A ordem existe: há pressa, porque todos têm de se virar com o pouco que têm. Então, cortar uma fila de automóveis à espera da conversão, ou, simplesmente, fazer um retorno proibido numa avenida de movimento intenso, ou ainda, trafegar na faixa exclusiva de ônibus, é quase sempre perdoado. Não se buzina histericamente tentando chamar à racionalidade urbana, pois a ordem é ir depressa para cumprir o que se tem de cumprir, os dados foram lançados.
Atenas é o alerta sonoro e visual de que as civilizações passam; de que as racionalidades terminam; de que a História é um constante jogo. Mas, ela não foi sempre um alerta? As ruínas da Acrópole já não anunciaram que o acaso é a única constante na História? Verdades inscritas nas pedras arruinadas da Ágora servem de curiosidade para turistas que tiram “selfies” abraçados ao busto de Platão.
O riso dos Demiurgos que jogam dados é alto. Mas, de qualquer modo, acreditar na civilização europeia é mais fácil do que a perceber como mero acontecimento. Atenas emana uma lição que a Europa não quer receber, já que ainda é narcisista: acredita em si, acredita que pode ser a única possibilidade de futuro. Porém, ele se gesta nas ruas de Atenas e no momento, para olhos “civilizados”, é uma ameaça. Algo que avança contra crenças e certezas, mas é a História acontecendo, é a História em marcha que obedece aos lances dos dados. Impossível contê-la, impossível contestá-la. É a História imediata e sobre a qual ainda não há uma narrativa para encaixá-la numa presumível racionalidade, conjurando o acaso dos dados jogados. Os desvalidos herdarão essa Terra e poetas evocarão epopeias fantásticas das origens e das gloriosas conquistas dos novos senhores, no meio das ruínas das civilizações findas. Este é o futuro. A cidade está prenha dele. Atenas é maravilhosa.
sobre o autor
André Luiz Joanilho, doutor em História, é professor aposentado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina – UEL.