No verão de 1992, visitei Beirute pela primeira vez. Foi a única viagem ao Líbano com meu pai, que não revia seus familiares e seu país de origem havia mais de trinta anos.
Ele voltara sozinho na década de 1950 e encontrara Beirute no seu esplendor. Ele, que conhecera o Rio de Janeiro também naquela década, dizia que o mar e as montanhas davam a essas duas cidades uma beleza e um encanto únicos.
Mas na segunda viagem prevaleceram a tristeza, a melancolia e a perplexidade. A longa e tenebrosa guerra civil (1975-1990), com intervalos de “nem guerra nem paz” — períodos de aparente calmaria ou trégua — devastaram o corpo e a alma de Beirute.
As centenas de edifícios desfigurados e vazios tinham um aspecto fantasmagórico. Havia escombros em vários lugares, era possível sentir sinais de violência e morte, e muitos corpos ainda estavam soterrados.
Essa visão de horror era cercada por uma natureza exuberante: as montanhas do Líbano e o mar: o Mediterrâneo, de tantas batalhas desde a Antiguidade, dos gloriosos poemas épicos de Homero.
Na “Odisseia”, aparecem os comerciantes fenícios, que muito tempo antes de Homero já navegavam pelo mundo. E Hesíodo já atribuía aos fenícios a criação do primeiro alfabeto conhecido, composto de 22 letras fonéticas, embora pesquisas recentes registrem outros sistemas de escrita alfabética mais antigos no Oriente Médio.
O mar — palco móvel de inúmeras lutas — parecia piscar com ironia ao cenário urbano de violência e morte.
No tempo que passei em Beirute, falava-se muito da guerra fratricida: Caim e Abel em escala devastadora.
Os clichês sobre o Líbano — a pérola, a Suíça e o Jardim do Oriente Médio — e a época do esplendor de uma das capitais mais cosmopolitas do mundo, nada disso era evocado. Não havia nem sequer ânimo para nostalgia. Inúmeras famílias tinham perdido um parente ou um amigo.
Meus tios e primos — jovens e adultos de um clã prolífico — e as pessoas que conheci não admitiam a existência da Linha Verde, que dividia Beirute em Leste e Oeste; queriam o fim das barricadas, dos sacos de areia e carros carbonizados que cortavam a capital; queriam uma cidade livre de sectarismo religioso-confessional, livre de milícias e franco-atiradores, de combatentes e mercenários de vários países.
Às vezes, quando meu pai perguntava por tal amigo ou parente, a resposta era o silêncio ou um choro contido num rosto grave.
Sabíamos que esse ausente morrera na guerra, e nem era um combatente, apenas uma pessoa comum. A tristeza do luto impunha silêncio.
Restava a visão da tamareira solitária no pátio da casa, por onde ecoava a voz grave, possante, do muezim de uma mesquita de Borj al-Barajneh (A torre das torres), um bairro próximo do aeroporto.
Como se sabe, o Líbano é um palimpsesto de civilizações, mescla de várias e distintas camadas de culturas do Oriente e Ocidente, com vestígios arqueológicos e ícones arquitetônicos dos impérios que conquistaram aquela região do Levante desde tempos remotos.
Num livro magnífico e bem documentado (Histoire de Beyrouth), o historiador Samir Kassir fez um estudo erudito de Beirute, cuja história milenar está estreitamente vinculada ao colonialismo e ao surgimento e à formação de clãs políticos e religiosos.
Uma das cidades mais antigas do mundo, Beirute tornou-se, já no século 19, “uma metrópole árabe mediterrânea ocidentalizada”.
Ainda segundo Kassir, ela foi durante muito tempo uma escala obrigatória do Levante, ligada cultural e economicamente a outras cidades árabes e europeias do Mediterrâneo, daí a importância estratégica e vital do porto, por onde circula grande parte dos produtos importados e exportados.
O estilo urbano de Beirute reflete esse contato orgânico com metrópoles mediterrâneas, de Marselha a Alexandria, de Argel a Esmirna.
Não menos diversos são os estilos arquitetônicos, influenciados por arquitetos otomanos, franceses e italianos.
Sob vários aspectos, a cidade expressa a modernidade do mundo árabe, contrariando outros clichês, desta vez negativos e depreciativos, que consideram Beirute a capital dos bancos e o foyer oriental da devassidão do Ocidente.
Não foram poucos os grandes poetas árabes que cantaram Beirute. Mahmoud Darwich, o maior poeta palestino, viveu dez anos na capital do Líbano.
Seu belíssimo livro Da presença da ausência (editora Tabla) é uma sofisticada prosa poética que evoca, com o tom e o ritmo de uma oração fúnebre, passagens da guerra civil e da chacina de Sabra e Chatila, em que mais de mil palestinos e libaneses muçulmanos foram executados por milicianos extremistas cristãos, sob a complacência do Exército de Israel.
Doze anos depois, quando voltei ao Líbano, Beirute tinha sido em grande parte reconstruída. Não será diferente depois desta terrível explosão no porto, que vitimou 150 pessoas, feriu milhares e destruiu várias áreas da cidade.
As grandes manifestações recentes, principalmente de jovens, exigem mudanças estruturais no sistema político libanês, cujos vínculos com a religião e com os chefes de clãs são inadmissíveis a um Estado que se pretende moderno e laico.
Os protestos clamam também pelo fim da corrupção, das milícias paramilitares, dos privilégios das grandes famílias, da desigualdade social e do índice alarmante de desemprego. A guerra civil na Síria, os interesses geopolíticos dos Estados Unidos e de países do Oriente Médio, a questão palestina (sempre adiada) complicam ainda mais a situação do Líbano.
Apesar dos conflitos internos, que envolvem facções religiosas, interesses econômicos e luta pelo poder, o Líbano acolheu no século passado milhares de exilados e refugiados armênios e palestinos.
Ofereceu refúgio a poetas, escritores, jornalistas e artistas ameaçados e perseguidos por ditadores de países árabes ou banidos de territórios palestinos, ocupados pelo Exército israelense.
Hoje, há centenas de milhares de refugiados sírios no norte do Líbano. “Confessamos que fomos injustos contigo, Beirute”, escreveu o poeta sírio Nizar Qabbani, cuja obra publicada em Beirute foi e ainda é lida por milhões de leitores do mundo árabe.
Mesmo diante de tantas adversidades, artistas plásticos, cineastas, dramaturgos e escritores têm produzido obras consistentes, de notável valor ético e estético.
É possível conhecer e sentir as entranhas de Beirute em dois dos romances mais relevantes e premiados de Elias Khoury, Porta do sol e Yalo (editora Record), na tradução primorosa de Safa Jubran.
Ou no romance de Jabbour Douaihy O manuscrito de Beirute, traduzido em várias línguas, mas ainda inédito em português. Ou ainda nestes versos do poema Celebração de Beirute, 1982, de Adonis (editora Companhia das Letras), na tradução também caprichosa de Michel Sleiman:
"Não terá outro seio
este céu?
Esta rosa, de onde lhe vem tanta obstinação?
Está sempre lendo seu amor.
O dia tem medo do dia
e a noite se esconde da noite.
Apagou-se a luz
Vou acender a estrela dos meus sonhos.
Leva-me amor,
E me mantém trancado.
sobre o autor
Milton Hatoum é autor dos romances A noite da espera, Dois irmãos e Cinzas do norte, entre outros. Foi professor de literatura francesa da Universidade do Amazonas (1984-1999) e professor visitante da Universidade da Califórnia (Berkeley/1996). Sua obra foi traduzida em 12 línguas e publicada em 14 países.