As gueixas sempre habitaram o imaginário de ocidentais, mas geralmente de uma maneira distorcida. Como ainda se acredita, elas não são prostitutas de luxo e sim mulheres preparadas para o culto às artes e às tradições japonesas. A origem de tal distorção, segundo os japoneses, se dá na ocupação aliada no Japão, após a Segunda Guerra Mundial. Algumas prostitutas se vestiam como gueixas para atrair soldados americanos e se criou a ideia ocidental que relacionava serviços sexuais com gueixas. O filme Memórias de uma gueixa, de Rob Marshall, de 2005, contribuiu para reforçar essa ideia e ainda provocou reações negativas no Japão e mesmo na China, pois as atrizes principais no papel de gueixas eram chinesas.
Em Kyoto, a curiosidade pelo ofício das gueixas, faz com que Gion, o mais famoso bairro onde elas habitam, seja uma das principais atrações turísticas. Na verdade, a origem de Gion está ligada à presença no bairro e nas suas proximidades de lugares sagrados de peregrinação como o Templo xintoista Yasaka-jinja, datado do ano 656, e de outros monumentos como o Templo Kiyomizu-dera e o Pagode Yasaka No-To. A grande movimentação de pessoas nesses locais fez com que Gion surgisse como um monzenmachi ou rakugai (cidade externa), local profano, para além dos portões dos templos, que atendia a peregrinos e turistas com pousadas, casas de chá, alimentação e diversão.
A associação de Gion com um local de entretenimento remonta a muitos séculos e à prática de danças rituais de oração e entretenimentos acrobáticos que se realizavam nas planícies de inundação dos rios Kamo e Shirokawa. Posteriormente, surgiram ali pequenas tendas para performance de teatro kabuchi e a casas de chá, que se diferenciavam por servir o chá puro (mizuchaya) ou adicionado de saquê (ochaya). O bairro expandiu-se bastante após 1670 com a construção de diques para controle das enchentes e a formatação de um distrito de teatros e várias casas de chá ao longo da Rua Yamato-oji. Desde 1712, os ochaya de Gion foram licenciados para as performances de gueixas.
O atual distrito de Gion se configurou após o grande incêndio que ocorreu em 1865. O bairro manteve suas características originais preservadas graças a um acordo silencioso que existia entre moradores de não permitir a construção de estruturas que destoassem do caráter arquitetônico local. Em 1973, um proprietário, que tinha a intenção de demolir sua ochaya tradicional para construir um prédio de quatro pavimentos, ocasionou um movimento de oposição entre moradores, que apoiados por estudiosos e historiadores, conseguiu que o bairro fosse decretado como distrito de preservação em 1975.
Desde então, as construções não podem ter mais que dois pavimentos e as fachadas são padronizadas em sete tipos de fachadas ochaya. Elas são compostas geralmente por janelas e portas de treliça de madeira (degoshi) e cortinas curtas decoradas com brasões de família ou outros desenhos japoneses colocados nas entradas (noren), no primeiro piso. No segundo piso, as grades de varanda devem ser delgadas e parcialmente escondidas por trás de cortinas telas leves de bambu (oisudare). A composição resultante é delicada e elegante, criando uma harmônica unidade arquitetônica e urbanística que não soa monótona e nem uniforme.
As gueixas de Gion costumam sair de suas casas no final da tarde e por isso o número de visitantes aumenta bastante nesse horário. Mas são poucos os que conseguem vê-las nas ruas. Elas se dirigem para teatros onde fazem apresentações às noites e, ali, pagando ingresso, se consegue assisti-las em apresentações de dança (dasmaiko), música (koto e gagaku ), teatro (kyogen e bunraku ), cerimônia do chá (chado) e eikebana (arranjo floral).
Em julho de 2019, incomodada com algumas atitudes consideradas inadequadas de turistas, a Prefeitura de Kyoto começou a distribuir um guia de etiqueta aos visitantes do bairro. À moda japonesa, ao invés de aplicação de taxas e multas, procura-se apostar na educação e na cortesia, pois o guia é entregue junto com uma pequena sacola de guloseimas. Uma das mensagens chama a atenção para a necessidade de pedir autorização antes de querer fazer selfies com gueixas e nunca as tocar sem consentimento.
Com gueixas ou sem elas, Gion, é um bairro tradicional que evoca o Japão antigo, com suas vielas, casas típicas do período Edo e ruas com calçamento em pedra. Após o frenesi dos turistas, pode se apreciá-lo ao cair da tarde na sua atmosfera oriental de calma e serena beleza. O suave tom amarelado da iluminação das tortuosas ruelas casa-se com a azul exuberante do céu e é possível se sentir habitando o mundo flutuante de uma Ukiyo-ê.
fontes consultadas
NITSCHKE, Günter. A Sense of Place: Urban Renewal in Kyoto. Kyoto Journal, 24 nov. 2011 <https://bit.ly/2FPReU5>.
REDAÇÃO. Kyoto, no Japão, cria guia de etiqueta para turistas. Catraca Livre, São Paulo, 14 jun. 2019 <https://bit.ly/3hk2TYN>.
Gion, o bairro das gueixas – Kyoto (Japão). Esporte na Mochila, 05 mar. 2012 <https://bit.ly/3gjRl6L>.
REDAÇÃO. Saiba mais sobre as gueixas e entenda por que elas foram confundidas com prostitutas. Guia do Estudante, 16 mai. 2017 <https://bit.ly/2ElLdh0>.
sobre o autor
Sérgio Jatobá é arquiteto e urbanista (UnB, 1981). Doutor em Desenvolvimento Sustentável (UnB/Universidad de Valladolid, 2006). Pesquisador do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais – NEUR e do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. Foi pesquisador bolsista do IPEA e Gerente de Estudos Urbanos da Codeplan/GDF, dentre outras funções públicas.