“Na lua cheia Ponta D’areia minha sereia dança feliz
e brilham sobrados, brilham telhados da minha linda São Luís...”
Carlinhos Veloz, 1996 (1)
Este período de quarentena tem sido propício para refletir e relembrar diversos acontecimentos, analisando situações vividas sob uma ótica diferente. Uma das vantagens de ter vivido a vida inteira em uma cidade patrimônio mundial, reconhecida pela Unesco, é que quando penso sobre minha infância, imediatamente me vem à cabeça o tempo vivido no centro histórico de minha cidade: a bela São Luís do Maranhão.
Estas primeiras experiências, em meus primeiros anos de vida, onde houve contato intenso não apenas com a cidade nova e moderna desta importante capital, mas também com a esquecida cidade colonial localizada “do outro lado da ponte”, foram fatores decisivos para minha escolha profissional, o que não me deixou outra alternativa senão a de me tornar (ou objetivar tornar-me) arquiteta e urbanista, para que pudesse entender a dualidade presente nestas duas realidades e compreender, também, como cidades tão diferentes podiam originar uma Cidade tão singular quanto a minha São Luís.
Lembro-me, em minha infância, dos finais de tarde na Praça Deodoro, onde íamos todas as tardes comprar jornais para o meu avô em uma das inúmeras bancas de revista, cercadas por um número quase surpreendente de ambulantes que ali ficavam até pouco antes da reforma deste complexo em 2018; lembro-me da Biblioteca Pública Benedito Leite, fato quase extraordinário, que se encontrava em estado de degradação, além de ficar “escondida” atrás de várias barracas e árvores, que agora não se encontram mais ali; lembro-me, também, do Palácio do Comércio, na Avenida Pedro II, onde ficava o cabeleireiro de meu avô, com suas lojas sempre cheias de gente. Agora, a maior parte destas lojas fechou (o cabeleireiro incluso) e ali, sobrevivem apenas algumas lojas de artesanato, onde a maior parte de seu público é constituído por turistas, que vem até minha cidade e se encantam pela arquitetura e arte locais, levando consigo, na maior parte das vezes, pequenos painéis azulejados com os dizeres “Rua do Sol”, “Rua da Paz”, “Rua do Giz”, etc; que para mim evocam tantas histórias.
Lembro-me, também, da vinda de parentes do Rio de Janeiro, e do espanto destes pelo fato de uma garotinha de uns cinco ou sete anos guiá-los pelas ruas da Praia Grande, apresentando-lhes as diversas lojas de artesanato do Mercado das Tulhas e da Rua da Estrela; do espanto pela paixão e insistência desta mesma garotinha em leva-los aos museus; à uma arborizada Praça Nauro Machado, a qual foi reformada e perdeu quase totalmente a vegetação; ao Palácio dos Leões, que antes da reforma que o deixou com esta “cara nova”, em estilo Neoclássico, possuía uma fachada bastante Eclética, predominantemente Barroca. Lembro-me bem dos caminhos a seguir para chegar até a Praça João Lisboa, Largo e Igreja do Carmo, Teatro Arthur Azevedo e outros mais; caminhos que tenho feito a vida inteira e agora encontro-me impedida de fazê-los.
Ainda sobre minha infância, recordo-me de um acontecimento bastante singular: a vinda de meus primos franceses à São Luís e sua instantânea paixão por minha cidade – paixão tanta que pediram para ser batizados na Igreja próxima à casa de minha bisavó, a Igreja de São Pantaleão, pois queriam carregar consigo algo da cidade de seu pai.
Minha cidade mudou. A relação das pessoas com ela, também – e me incluo nisto, ainda que não me orgulhe totalmente. Não realizo mais as atividades que descrevi, ainda que continue olhando as fachadas dos sobrados e solares com grande paixão e orgulho. As atividades comerciais deslocaram-se para o “lado de cá”, para a cidade moderna, e agora me vejo no papel dos turistas, que vão ao centro apenas para visitar rapidamente, vez ou outra indo aos museus, ao samba na Fonte do Ribeirão ou algum outro tipo de atividade cultural ou lazer que esteja acontecendo ali, como tantas outras pessoas costumam fazer apenas em épocas de festivais ou carnaval.
Não passo mais tanto tempo na casa de minha bisavó, não visito mais o lar de crianças no casarão localizado à frente e tampouco cogito pedir para alguém ou vou até um pequeno comércio de bairro para comprar refrigerante para algum dos eventos de família – estes já não existem mais, afinal, há um grande supermercado perto o qual quase ninguém se arrisca a ir a pé, já que as pequenas ruas do Centro não possuem mais tantas pessoas quanto antes e, também, estão tomadas por um intenso fluxo de veículos, que compete vorazmente por espaço para atravessá-las.
Estas mudanças, para mim tão significativas, passaram e passam despercebidas para muitos, viabilizando o acontecimento de diversas descaracterizações do acervo ou mudanças na dinâmica do espaço, que foi perdendo progressivamente sua importância e foi sendo esvaziado ao longo dos anos. Para mim, São Luís continua sendo aquela cidade: densa, cheia de pessoas, a qual eu percorria majoritariamente a pé, passando minhas mãos pelas fachadas azulejadas dos casarões e saudando as pessoas em suas janelas ao longo do trajeto. Nessa São Luís, moram meus pensamentos, se encontra minha paixão pela vista do pôr-do-sol na Praça Pedro II, o barulho dos sinos das igrejas ao entardecer, os eventos que acompanhava minha avó no Palácio Cristo Rei, os incontáveis casamentos que a acompanhei na Igreja dos Remédios e Catedral da Sé. Essa São Luís marcou minha vida e influenciou totalmente quem eu sou: uma sonhadora, apaixonada por cada canto de minha cidade e que espera estar apta para lutar por sua conservação. Afinal, sem ela, nada seria.
nota
1
VELOZ, Carlinhos. Ilha Bela, música popular maranhense, 1996 <https://open.spotify.com/track/0cGkjndlHmpJGaF4AitFF3>.
sobre a autora
Maria Luiza Freitas Diniz Luna é discente de arquitetura e urbanismo no Centro Universitário Unidade de Ensino Superior Dom Bosco e pesquisadora.