O que dizer de uma cidade francesa, moderna e que é patrimônio cultural da humanidade? Certamente no mínimo um lugar curioso e que vale a pena a visita, seja para conhecer, pesquisar ou passear. Essa é Le Havre, uma cidade localizada na região da Normandia e o segundo maior porto do país. Essas são características básicas da cidade, porém, ela é cheia de lugares interessantes que misturam o passado e o presente em sua história. Por isso esse é o objetivo desse escrito sobre uma viagem de estudo, mas com ares também de turismo: conhecer e estudar Le Havre além de uma pequena cidade portuária francesa.
Le Havre, localizada a cerca de 200 km de Paris, é pouco conhecida pelos brasileiros, contudo, guarda semelhanças com a capital brasileira, Brasília. De maneira bem simplista, algumas palavras-chave as unem: cidade moderna, patrimônio, Unesco e Oscar Niemeyer. E, talvez, o mais interessante disso seja que boa parte das pessoas que vivem nas duas cidades pouco saibam umas das outras, o que, sob uma visão bem generalista, parece até um desperdício de troca de informações, principalmente ao considerar que são poucas as cidades com essas mesmas características. Mas esse é um assunto que talvez caiba em um artigo próprio, o foco aqui é colocar em evidência a cidade de Le Havre como um lugar a ser descoberto, pela sua história e pelo seu turismo.
A minha ligação com Le Havre vem da pesquisa do doutorado em que estudo cidades modernas que são patrimônio cultural da humanidade, mais precisamente Brasília, Tel-Aviv (Israel) e Le Havre. Apesar dessa ter sido uma viagem para coletar material nos arquivos e buscar todo o aporte bibliográfico, foi também uma oportunidade de reconhecimento e descoberta de uma cidade muito além do título de patrimônio mundial. É notório que Le Havre é muito mais do que as palavras-chave citadas anteriormente e tem muito para ser desvendado. Não só como arquiteta e pesquisadora, mas como turista e curiosa.
Le Havre é uma cidade portuária e tem suas origens retomando o século 16, quando foi erguida. Sua história está ligada a atividades marítimas e à conquista da região da Normandia. Porém o período de maior destaque para cidade ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, quando foi praticamente destruída pelos bombardeios da guerra, em 1944. Foi a partir desse mesmo ano que a cidade francesa começou seu renascimento, passando por um processo de reconstrução ancorado em princípios de uma cidade moderna através do trabalho de Auguste Perret, seu projetista. Desde a sua construção, contam mais de 500 anos e cerca de 70 anos do início de sua reconstrução após a tábula rasa da Segunda Guerra Mundial.
Apenas ao conhecer parte da história da cidade, já nos aguça a curiosidade, principalmente ao pensar em uma reconstrução de tamanhas proporções. Portanto, é certo afirmar que conhecer Le Havre com certeza nos coloca entre alguns paralelos, o antigo e o novo, a arquitetura do século 16 e a arquitetura do século 20, a praia e a montanha, o porto e a cidade. Unindo essas partes temos a cidade de Le Havre.
Conhecer Le Havre é caminhar pelo presente, mas ao mesmo tempo imaginar como era no passado, pois, ao observar os detalhes na arquitetura e no urbanismo, o passado está ali, pronto para te ajudar a entender melhor o que é essa cidade moderna com origem no século 16. A melhor forma de conhecê-la certamente é através do caminhar. É evidente que o sistema de transporte público ali funciona muito bem e auxilia a conectar distâncias maiores, mas é através de um promenade, da escala humana, que se percebem os detalhes arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos da cidade.
O lugar mais importante e também mais imponente do seu centro urbano é o “centre ville”, como chamam os havraises. Ali é onde se encontra efetivamente o centro político, econômico e cultural da cidade. Praticamente tudo foi reconstruído, mas há um cantinho, bem no meio dessa área central, que não foi reconstruído segundo os padrões modernos, mas foi restaurado seguindo a estética do século 16. Esse é o Quartier Saint-François, protegido pelos bassins, ele foi pouco destruído durante a guerra. E, exatamente por isso, representa um mergulho mais profundo ainda na Le Havre do passado, através das ruas em pedras e mais estreitas e os detalhes da arquitetura Normanda. Além desse pequeno bairro na área central, a arquitetura típica da Normandia restou à parte mais montanhosa da cidade, algo interessante de notar, bem visível de alguns pontos da área central.
O skyline, predominantemente baixo, com apenas alguns elementos maiores se destacando, como a Torre do Hôtel de Ville (prefeitura) e a Igreja de Saint-Joseph, representa um convite ao olhar 360 graus, em que é possível reconhecer as partes da cidade e até se localizar. Tanto o Hôtel de Ville, quanto a Igreja de Saint-Joseph, são obras de Auguste Perret e colocam em evidência a estética do concreto armado aparente, demonstrando a força de sua estrutura. Além disso, a igreja equilibra a força do concreto com os detalhes coloridos dos vitrais, chamando atenção não só por sua altura, mas pelo seu colorido. Esses dois monumentos foram intencionalmente projetados como os mais altos da cidade, marcando funções.
Aliás, mencionando o modo de leitura de Le Havre, é fácil compreendê-la, pois seu traçado une a ortogonalidade de uma cidade moderna, trazida por Auguste Perret, a uma referência clara ao traçado do pré-guerra. Há dois eixos principais ortogonais onde se localizam as principais funções da área central da cidade, desde a prefeitura bem marcada no centro, passando por edifícios de habitações coletivas, edificações públicas e comércios.
Nesses dois eixos, marcados pelas vias mais largas e as funções principais, entendemos como a vida acontece em todos aqueles edifícios em concreto aparente e detalhes marcados em sua própria estrutura da fachada. É aqui também que se vê com muita clareza princípios da arquitetura moderna, como a utilização de volumes simples, alturas uniformes, modulação e funcionalidade. Também é possível conhecer um apartamento modelo projetado por Auguste Perret, um passeio guiado em que se entende melhor como eram as edificações de habitação em seu interior, assim compreendendo o modo de vida proposto pelo arquiteto na época.
Ainda no “centre ville” de Le Havre há uma obra icônica da cidade, o Le Volcan, um centro cultural que abriga um teatro e uma biblioteca, e projeto do arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. Ao ver essa grande construção, localizada em uma praça em destaque bem no centro da cidade, logo somos remetidos à Brasília. O branco de seu volume se destaca em relação aos tons acinzentados do concreto. Sua forma, que lembra um vulcão, retomado as obras características do arquiteto brasileiro e também lembra Brasília. Um passeio pelo seu exterior e pelo seu interior é quase uma obrigação, não apenas pela sensação de reconhecimento, mas pelo ambiente muito acolhedor da biblioteca, um convite a explorar o que há em termos de literatura e de cultura, em geral.
Evidentemente que há outras obras emblemáticas pela cidade, a exemplo do MuMA – Musée d’Art Moderne André Malraux. Localizado à beira-mar, sua arquitetura se destaca pela fachada em panos de alumínio e vidro e seu volume separando a estrutura principal da cobertura. Citando a área portuária, esse é um lugar privilegiado, onde não só é possível a visão do mar e do porto, mas também das montanhas e da parte alta da cidade. Le Havre tem um calçadão, onde há espaços diversos para o lazer, prática de esportes, restaurantes e comércios. É uma parte bastante viva da cidade, onde seus habitantes desfrutam de um verão ameno, já que as temperaturas nem sempre são as mais agradáveis, principalmente pelos ventos do oceano.
Além do título de patrimônio mundial (2005), Le Havre carrega o reconhecimento como cidade da arte e da história (2001). Isso significa ver obras de artes em várias partes da cidade, sejam estátuas e bustos, ou mesmo instalações com containers coloridos no porto. Há ainda a possibilidade de passeios guiados que são organizados pela Maison du Patrimoine e pelo centro de turismo de Le Havre.
Há muito o que observar em Le Havre, no meu caso específico, que decidi percorrer a pé todo o perímetro reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco (1,33 km²), me vi em muitos lugares que provavelmente não veria se estivesse simplesmente fazendo um percurso turístico. Assim foi possível encontrar desde praças bucólicas bem no meio de prédios comerciais e residenciais, edificações que se aproximavam mais da Le Havre do século XVI e outras extremamente contemporâneas, ruas mais estreitas e livres de carros, e ruas mais largas e com mais carros, ciclistas, trens e pedestres. Ao me colocar bem no meio dos locais, me vi em um lugar organizado, em que se perder parece uma tarefa difícil, pela já citada ortogonalidade e os marcos visuais da cidade. Também é um lugar seguro, limpo e muito convidativo para a contemplação, o passeio, a pesquisa e a descoberta.
Apesar de Le Havre ser pouco conhecida até pelos arquitetos, é uma cidade que guarda muita história desde o século 16, passando pela destruição na Segunda Guerra Mundial e sua reconstrução a partir da década de 1940 até por volta de 1980. Há todo um contexto envolvendo o seu reerguimento, não apenas no que diz respeito à arquitetura e ao urbanismo da cidade, mas o papel da população, a necessidade de mudança de vida e a construção de um novo jeito de habitar, recrear, trabalhar e circular. Tudo isso torna Le Havre um lugar único para pesquisar e faire une promenade, como dizem os franceses.
sobre a autora
Jéssica Gomes da Silva possui graduação pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, é mestre também em arquitetura e urbanismo pela mesma universidade e atualmente é doutoranda pelo PPG-FAU/UnB. Autora da dissertação O GT-Brasília na trajetória de patrimonialização da capital (UnB, 2019).