Alguma coisa acontece aqui em Melbourne. Pelo menos na rua. Levando o neto para a creche, sentado dentro de um carrinho – melhor dizendo, um carrão – de plástico, com quatro rodas, imitando um de verdade, sem capota e com uma haste longa para empurrá-lo, o inesperado me espera.
Começa que logo ao sair de casa, o rapazinho de dois anos fala: “Lua, Lua”. Fora do meu costume, morando em São Paulo, onde é difícil apreciá-lo, olho para o céu e vejo a Lua Nova. Mais uma vez me chama a atenção o horizonte descortinado em 360º. Para entender como se consegue a proeza, explico que o bairro é basicamente formado por casas, com no máximo dois andares, afastadas do alinhamento e com muros baixos em sua grande maioria. Nada de garagens no recuo frontal obstruindo a visão do pedestre. Ponto positivo.
Em seguida, virando a esquina, cruzamos com uma senhora de avançada idade, sorridente, rosto maquiado, batom vermelho e vestido bem colorido, passeando pela calçada, auxiliada por andador. Imagino deva ter algo na comida ou na água aqui para a longevidade ser tamanha, dada a quantidade enorme de pessoas mais velhas que encontro. Que ela abra um enorme sorriso para mim e para meu neto junto com um bom dia me surpreende.
Como não me espantar com a alegria de viver estampada no vestido e no rosto, apesar da dificuldade de locomoção? Sem falar que estava desfrutando o momento e aberta para o mundo. Juro que seus olhos brilhavam.
Prosseguindo na caminhada e algumas quadras adiante, antes de cruzar a rua, vejo um caminhão se aproximando e, apesar da pequena distância, e já sabendo que aqui os pedestres são bastante respeitados, tive certeza de que ele ia dar passagem e já me preparava para continuar a andar. Ao terminar a travessia, piso na calçada e observo que o netinho está acenando para alguém. Olho em volta, tentando entender o que está acontecendo. O que teria motivado esse gesto dele? Ora, ora, ora!... Não é que ao olhar para o caminhão, lá no assento elevado, está o motorista – bem atento ao seu redor – fazendo tchau para o garotinho!... Quem iria imaginar esse gesto tão simpático para com o mini pedestre? Não eu.
Na verdade, eu, sim. Devo confessar que já tinha experimentado um caso parecido. Mas, com pandemia e tudo o mais, fazia um tempinho que não tinha oportunidade de flanar e tinha me esquecido desse detalhe.
Foi na primeira vez em que aterrissei em terras australianas que me espantei com um gesto de atenção. De tanto cansaço, sentada no avião prestes a finalmente decolar para Melbourne, morta de cansaço abaixei a cabeça e encostei-a no encosto da frente, sobre os braços cruzados. A senhora ao lado na hora me pergunta se eu estava me sentindo bem e se precisava de ajuda. Jamais imaginei estar dando a impressão de alguém se sentido mal e rapidamente respondi que, vindo do Brasil, estava apenas exausta depois de dois voos. Tudo isso somado à ansiedade de estar vindo pela primeira vez para continente tão distante e sozinha. (Entre parênteses esclareço que sempre tive dificuldade de viajar sozinha.)
Ainda nessa oportunidade, tive outra demonstração de que há pessoas atentas observando ao seu redor e disponíveis para oferecer algum tipo de assistência. Estava no centro da cidade e abri um mapa – desses que desdobram e ficam relativamente grandes – para me localizar. Mais cara de turista, impossível. Logo um rapaz para e me pergunta se precisava de ajuda. Melhor do que isso, pede o endereço de onde eu estava indo, olha no Google Maps e orienta meu trajeto. Nem imagino a cena no centro de São Paulo, tamanho é o medo de ficar parada no meio da rua.
Voltando para o meu passeio matinal, ainda antes de chegar na creche, um homem em trajes esportivos vindo no sentido contrário me pergunta se o bebê já tem habilitação para dirigir. Sorrio e faço que sim com a cabeça em resposta.
Uma fala similar se repete quando, neto devidamente entregue na creche e carrinho vazio, um jovem na calçada – também ligado no seu entorno – me olha e pergunta sorrindo se eu perdi alguma coisa no caminho. Por trás da minha máscara, para mostrar que entendi o gracejo, devolvo o sorriso, tentando torná-lo mais claro com um som e com os olhos, única parte visível do rosto.
Continuo gostando de ver esse olhar pronto para ver o outro; fico com a impressão de que alguma coisa acontece por aqui: as pessoas estão mais presentes. Caminhando pela rua, parecem estar de fato onde estão. Isso me lembra a frase de um primo: “O melhor lugar para estar é onde se está. Até porque não há outro lugar para estar a não ser o aqui e o agora”. Talvez isso me chame tanto a atenção porque divagação é o meu nome.
Para minha sorte, o inevitável contágio acontece. Alguma coisa acontece de fato por aqui. Pelo menos hoje. Pelo menos agora. E não quero nem saber se essa abertura cordial para interagir com o outro é um traço da cultura ou apenas um acaso por mim experimentado. Me influencio do mesmo jeito e volto para casa aproveitando o momento, olhando para o céu, sentindo a brisa e o sol na pele, admirando as árvores e algumas folhas já mudando de cor para o outono. E obviamente cumprimento sorrindo – mesmo que por baixo da máscara – todas as pessoas que passam por mim.
sobre a autora
Sonia Manski, paulistana, formada em arquitetura (FAU USP) e psicologia (Unip), trabalha na Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa – Condephaat desde 1982. É autora de artigo na coletânea Infâncias (org. Heloísa Prieto, Escrita Fina, 2011) e autora do livro Meus queridos cavalheiros (Girafa, 2006) e Sem cerimônia: diário de uma psicoterapia (Ágora, 2002). Teve textos selecionados para participar da criação do espetáculo Eu de você, monólogo de Denise Fraga, com direção de Luiz Villaça (2019).