Cada volta à cidade em que se nasceu é uma viagem entre diversos sentimentos. Nos periódicos retornos pode-se descobrir, redescobrir, criar ou descartar memórias sobre a sua cidade natal. No meu caso, Pelotas, cidade do Rio Grande do Sul, cujo nome é derivado de uma embarcação em couro que, conduzida a nado por escravizados, cruzava águas como as do Arroio Pelotas, que tem nas suas margens antigas charqueadas.
No século 19 a riqueza advinda do Ciclo do Charque foi transformando a cidade. A prosperidade econômica e cultural daquela época pode ser percebida como uma Belle Époque da região Sul do Sul do Brasil. Há várias antigas residências que mudaram os seus usos e, apesar das avarias causadas pelo tempo, ainda impressionam quem as visita.
Algumas edificações bravamente resistem ao tempo, aparentemente entregues à própria sorte. Outras, contam com conservação mais atenta, resultado de esforços em prol do tombamento de vários locais da cidade. O Conjunto Histórico de Pelotas foi inscrito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan nos Livros do Tombo Histórico, de Belas Artes e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.
Assim como, a cada retorno à cidade, procuro saber notícias e visitar amigos e familiares, também visito os lugares que frequentava desde a minha infância. Com o tempo a paisagem cotidiana se transformou em cenário cada vez mais atraente à câmera fotográfica. Não basta visitar, é preciso, também, fotografar. No meu caso, não importa se for a mesma foto, pois, se tratando de patrimônio, essa permanência é o que alimenta o vínculo com a cidade. Revisitar Pelotas é revisitar o início da minha trajetória de vida.
Fotografar o Mercado Público é obrigatório, ainda mais se conciliada com a degustação dos tradicionais doces pelotenses. As Tradições Doceiras da Região de Pelotas e Antiga Pelotas estão registradas no Livro dos Saberes do Iphan. Mas há paisagens interessantes em várias ruas, nem que a herança do passado seja somente uma fachada ou a casca de uma antiga mansão.
Com o tempo novas construções e tecnologias foram se imiscuindo na paisagem que sofre um processo cíclico de definhamento e reabilitação. Algumas reformas, como a do Theatro Sete de Abril, parecem durar uma geração.
Na realidade capturada por meio das fotografias, a conexão com o sagrado pretendida pela Catedral de São Francisco de Paula se funde com a parafernália de fios, torres e antenas que conectam o mundo das atividades humanas cotidianas. O mundo celeste se revela dentro da igreja nas sublimes pinturas de Aldo Locatelli.
Outra catedral também é uma referência na cidade. O edifício da Catedral Anglicana do Redentor, mais conhecida como Igreja Cabeluda marca o tempo do mundo. Nesse caso não há como repetir a mesma foto, pois a vegetação e o céu estão sempre prontos para uma composição inédita.
Em Pelotas o sagrado também está presente na Gruta de Iemanjá localizada no Balneário dos Prazeres, também conhecido como Barro Duro. Iemanjá é celebrada na tradicional festa de dois de fevereiro e de sua gruta observa a praia em que a água avança cada vez mais sobre a terra nada dura. As águas da Lagoa dos Patos também se estendem à Praia do Laranjal com seu calçadão e Trapiche em periódica deterioração e reconstrução. As visitas, mais ou menos anuais, permitem uma singular percepção da dinâmica da cidade.
No processo de flanar pelas ruas tentando ir por caminhos ainda não percorridos, pode-se acabar em locais emblemáticos, como a Estação Ferroviária. Embora novos percursos possam ser descobertos, acaba-se nos mesmos destinos. E há dois locais imprescindíveis para (re)visitar: a Bibliotheca Pública Pelotense e a Praça Coronel Pedro Osório, com a Fonte das Nereidas ao centro.
Não há como andar sozinho em cidades em que criamos histórias e memórias. Em cada rua ou esquina somos acompanhados de perto por lembranças de pessoas e de acontecimentos. A pandemia de coronavírus restringiu a circulação pela cidade, ainda mais no caso da população mais idosa. Some-se a isso os infortúnios que o tempo causa à saúde e tem-se o resultado da minha visita mais recente à Pelotas. O passeio que foi viável realizar na companhia dos meus pais foi ao pátio da casa em que moram.
Cada degrau foi um grande obstáculo. Cada passo, um desafio. Mas foi possível passear entre a vegetação, apreciar o Sol e relembrar, em conjunto, os recantos da cidade em que nascemos. E, como sempre, fotografar. Para não esquecer.
nota
NA — Artigo redigido entre 2021 e 2022, em meio a várias ondas da pandemia de Covid-19.
sobre o autor
Eduardo Oliveira Soares é doutor em Arquitetura e Urbanismo (2021) e servidor da Universidade de Brasília. Possui mestrado em Arquitetura e Urbanismo (2013) e especialização em Reabilitação Ambiental Sustentável Arquitetônica e Urbanística (2009), também pela UnB. É graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pelotas (1995).