O passeio à Casa de Jorge e Zélia, construída nos anos 60 do século 20, foi uma imersão pelo universo cultural baiano. Arquitetura, arte, artesanato, literatura, objetos e fotografias nos conduzem pelas quatro décadas em que o casal viveu e conviveu com seus filhos, Paloma e João, sempre povoada por amigos, próximos e distantes.
Na leitura de sua materialidade, o museu casa, ou a casa museu, cumpre com louvor seu papel. Desde a entrada, na rua Alagoinhas, nos poucos minutos de espera, sorvemos a atmosfera de silêncio e tranquilidade que ainda hoje reina nesta colina. Na calçada, contemplamos a escadaria revestida de cacos de azulejos estampados, com uma mureta que separa duas portas. Eis que ingressa uma mediadora apressada e nos explica: era a entrada original da casa, hoje acesso de funcionários. A bilheteria do museu ocupa o local da antiga garagem (penso então — Era lá que se abrigava o Cara de sapo, o Citröen que o casal usou na mudança do Rio para Salvador).
Adianto que este relato não se prende unicamente ao que vimos e ouvimos presencialmente, mas muitas informações nos foram contadas pela própria dona da casa, ao longo da leitura de A Casa do Rio Vermelho, livro de crônicas que Zélia Gattai publicou em 1999. Tal qual a história de que fora Lina Bo Bardi quem sugeriu o revestimento em cacos de azulejos das escadas e dos passeios, utilizando rejeitos da cerâmica de Udo Knoff, colecionador de azulejos alemão, que se radicou na cidade.
Voltando à visita, um pequeno grupo aguarda o horário da entrada, dentre eles uma espanhola, um casal paulista e, depois, outro casal, de franceses. A fama da casa atravessou o Oceano!
Somos convidados a entrar, e o acesso pode ser feito por escadas ou pelo elevador, uma vez que há um desnível substancial entre a rua e o platô onde a casa foi implantada. Lá em cima, a primeira visão é do amplo pomar arborizado, sendo a edificação situada à esquerda, com ampla varanda e telhado de barro, de modo a integrá-la à vegetação.
Uma casa térrea, com a sala de lajotas de barro, cujo telhado exibe os caibros e as curvas das telhas, sem forração. Neste ambiente, arrumado como sala de estar, há uma vitrine com a máquina de escrever, óculos e objetos de Jorge. A simplicidade acolhedora pensada no projeto do arquiteto Gilberbet Chaves recebe o mobiliário e os objetos, logo ao fundo reconheço um São Francisco de Assis, pintado por Volpi.
O quarto de hóspedes exibe as camisas estampadas de Jorge Amado, ao fundo o documentário mostra os hóspedes ilustres que ocuparam o cômodo, guarnecido por cama e cômodas executadas em alvenaria. Seguindo o corredor, temos acesso à cozinha, onde quase se pode sentir o odor de vatapá e outras iguarias baianas. A seguir, um dos cômodos foi adaptado para leitura de obras de Jorge Amado por atores e músicos como Othon Bastos, Jackson Antunes, Maria Betânia, dentre outros.
No entorno da piscina, vê-se os azulejos desenhados pelo amigo Caribé, os sapos, no local ocupado antes pelo roseiral de Zélia. Para ela se volta a biblioteca/escritório do autor, todos os ambientes providos de portas vermelhas desenhadas por Caribé.
Atravessando o pátio revestido por cacos, chegamos aos ambientes femininos: o quarto do casal, o gabinete com as gavetas expositores de cartas recebidas por eles, o estúdio de revelação de fotos, a montra com os bonecos que representam Jorge e Zélia e seus descendentes, povoado do imaginário das obras do escritor. O quarto se abre para o interior e para a ampla varanda repleta de objetos de várias origens, que nos conduz ao início, a entrada da casa.
Como toda casa projetada e construída em região brasileira de clima tropical, a casa de Jorge Amado compõe-se de materiais construtivos já tradicionais como paredes de tijolos, estrutura do telhado em madeira, telhas de barro, elementos vazados cerâmicos e em madeira, bem como pisos cerâmicos.
O partido geral, bem como seu desenvolvimento em planta, guarda feições da clássica casa colonial rural, onde varandas e beirais são frequentes, propiciando aos ambientes da casa a fluidez dos ventos e a entrada de iluminação confortável, sem que haja incidência direta dos raios solares nos cômodos.
Começando pela estrutura das paredes, o tijolo de barro ocupa a maior parte destas que são reforçadas por pilares, vergas e vigas de concreto e em madeira. Quanto aos telhados, há predominância da madeira, inclusive este compõe-se de grandes peças transversais, sobre as quais são fixados caibros aparelhados e deitadas telhas coloniais em forma de capa-canal.
Nas paredes é marcante a presença de cobogós cerâmicos e tijolos assentados com a criação de vazados, propiciando a circulação do ar entre os ambientes e facilitando, assim, a ventilação cruzada. Nos banheiros, a aeração é realizada por pequenos painéis vazados em treliçado de madeira.
O uso do vidro é bem reduzido, havendo predominância de gradis com desenhos originais, fatores que contribuem para a marcante redução de temperatura no interior da casa. Detalhes como vazados em madeira nos forros, telhado aparente, uso de esquadrias com a presença de venezianas nas janelas e vedações de ambientes com peças verticais pivotantes facilitam a iluminação e a circulação do ar. Na maior parte do entorno da casa, a abundância de vegetação cria um microclima aconchegante aos seus moradores, sendo os pisos externos revestidos de lajotas e azulejos, que ajudam a manter a umidade do solo.
A simplicidade dos materiais e a constante de aberturas para o exterior certamente ocasiona uma circulação livre de mosquitos e outros insetos, numa vivência harmônica e ecológica com o entorno.
Ao final da visita, tomamos posse de um exemplar de A casa do rio vermelho, e, nele, pudemos nos aprofundar nos momentos vividos nestes ambientes, identificando peças e mudanças efetuadas ao longo da vida de ambos. Deste ponto de partida, seguimos as trilhas que nos conduziram ao Museu Udo Knoff de azulejaria e cerâmica, situado no Centro Histórico, bem como aos fortes de São Diogo onde se situa o Espaço Carybé de artes, e o Espaço Pierre Verger, no Forte de Santa Maria. Além do Museu de Arte Moderna, que condensa a experiência de Lina Bo Bardi na Bahia.
sobre os autores
Cybelle Salvador Miranda é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPA. Doutora em Antropologia, coordena o Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural — Lamemo e é pesquisadora nível 2 do CNPq.
Ronaldo Marques de Carvalho é professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA. Doutor em Engenharia de Recursos Naturais da Amazônia e pesquisador voluntário do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural — Lamemo.