Nos últimos anos, muito tem se discutido sobre o caráter e papel da extensão universitária, que, conforme definição da própria legislação brasileira, seria um dos três componentes básicos da Universidade. Durante muito tempo relegada a segundo plano, a extensão nunca foi objeto de uma reflexão tão ampla quanto aquela reservada ao ensino e à pesquisa, os outros pólos do tripé educacional, que têm sido alvos de discussões que resultaram em elaborados sistemas de avaliação da produção cientifica e da qualidade dos cursos (1). No entanto, é inegável o aumento da visibilidade da extensão nos últimos anos: ao lado de vários artigos e livros problematizando a extensão, as agências de fomento começam a lançar editais para financiamento de projetos na linha, e o Congresso Brasileiro de Extensão Universitária vem se firmando como um importante fórum de debate (2).
Ao lado dessa maior visibilidade, percebe-se também um deslocamento no próprio caráter da extensão, que vem procurando superar a dimensão de prestação de serviços assistencialistas, que marcou sua ação por muitas décadas, aproximando-se de uma concepção que a vê como uma atividade propriamente acadêmica. Como aponta Edileide Jezine, na busca dessa superação, a extensão universitária vai ser “redimensionada com ênfase na relação teoria-prática, na perspectiva de uma relação dialógica entre universidade e sociedade, como oportunidade de troca de saberes” (3). Assim é que o Plano Nacional de Extensão Universitária do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e SESu / MEC de 2001 define que a Extensão Universitária seria o “processo educativo, cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre Universidade e Sociedade” (4).
Trata-se, então, na perspectiva da extensão, de se garantir uma efetiva difusão dos saberes produzidos na Universidade, considerando-se sempre as populações cujos problemas tornam-se objeto da pesquisa acadêmica também como “sujeito desse conhecimento, tendo, portanto, pleno direito de acesso às informações resultantes dessas pesquisas”. A Extensão é uma via de mão-dupla entre a sociedade e a comunidade acadêmica, que encontrará nela “a oportunidade de elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico”. Este fluxo, essa troca de saberes, acadêmico e popular, terá uma importante conseqüência: “a produção do conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira e regional, a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da Universidade” (5). Com isso, o próprio ensino será enriquecido, na medida em que o aluno terá oportunidade de, num processo em que se articulam teoria e prática, referenciar sua formação à realidade.
Extensão universitária e urbanização
A partir desta definição, pode-se perceber que a universidade, de fato, pode – e deve – contribuir para a requalificação do processo de urbanização em curso em nosso país, através de ações que “visem à superação das atuais condições de desigualdade e exclusão existentes” (6). Como intervir, no entanto, num processo tão amplo e complexo, produto do jogo de diversas forças políticas e econômicas? E, propriamente, como intervir a partir de uma perspectiva extensionista adequada – entendendo-se a extensão como um dos ramos da ação universitária, intrinsecamente relacionada ao ensino e a pesquisa, e não como uma ação meramente assistencialista?
No que se refere especificamente à urbanização, vários, são a nosso ver, as temáticas e campos a serem explorados numa ação universitária que combine pesquisa e extensão. A primeira delas, que salta aos olhos, refere-se à carência de profissionais das áreas de planejamento, arquitetura e urbanismo no interior do país, em cidades de pequeno porte, que constituem a maior parte dos municípios brasileiros. No caso de Minas Gerais, por exemplo, essa dificuldade pôde ser constatada por uma pesquisa realizada pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-MG), em 2001, que demonstrou a concentração dos profissionais da área nos grandes centros e cidades médias (7). Este fator, somado à carência crônica de quadros técnicos das prefeituras municipais, gera uma total ausência de planejamento nesses entes federativos. Essa situação se manifesta com toda clareza nesse Estado, caracterizado por uma extensa rede urbana e grande quantidade de municípios de pequeno porte. Tal situação não se restringe, no entanto, a esses municípios, como mostrou a prática nesses anos, sendo também notável a ausência de capacidade de planejamento em cidades de médio e grande porte.
Essa carência de base reflete-se na insuficiência e formulação das políticas públicas setoriais relacionadas à questão da urbanização – habitação, meio-ambiente, patrimônio cultural, entre outras. Assim, é possível dizer que a extensão universitária, além de se dirigir diretamente à população-alvo, que poderia ser a primeira tendência ao se propor uma ação extensionista, deve, necessariamente, abranger também os próprios órgãos do poder público municipal, principal canal de atendimento das demandas locais. As Universidades, como produtoras de saber, estarão, assim, implementando um dos pontos do Plano Nacional de Extensão Universitária, ao participar “na elaboração das políticas públicas voltadas para a maioria da população” (8).
O programa de arquitetura pública
Com essas premissas a Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EA-UFMG) começou a implementar, em janeiro de 2004, o Programa de Arquitetura Pública, conjugando ensino, pesquisa e extensão universitária, bem como assessorando municípios do interior de Minas Gerais em três áreas principais: planejamento ambiental e urbano, patrimônio cultural e habitação de interesse social. O programa tem a participação de estudantes de graduação em Arquitetura e Urbanismo e da pós-graduação, de uma equipe de professores e pesquisadores da Universidade e técnicos das prefeituras às quais está vinculado. Seu objetivo geral é auxiliar os municípios em suas políticas urbano-ambientais, complementar a formação dos estudantes da graduação, aproximando-os da realidade brasileira e permitir maior integração do ensino acadêmico com a prática profissional. O Programa já atuou e ainda atua em diversos municípios do interior mineiro: Sabará, Barbacena, Cataguases, Ouro Preto, Lagoa da Prata, Serro, Paracatu, Leopoldina, Muriaé e Sete Lagoas.
A implementação desse programa baseia-se sempre na parceria entre diversos agentes, somente viabilizando sua implantação nos municípios, quando consegue envolver um grupo de parceiros que o apóia, financeira, política ou institucionalmente: a Universidade, as prefeituras, empresas, organizações não governamentais (ONGs), órgãos federais (como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN), Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Minas Gerais (CREA-MG), etc. É interessante perceber como em cada caso, em cada correlação de forças, o programa tem se articulado com parceiros diversos.
De acordo com o município, são atendidas as demandas mais urgentes e prioritárias, sempre discutidas e pactuadas com os parceiros e o governo local. Assim, podemos citar vários exemplos dessa atuação diversificada, ao longo dos últimos cinco anos: os projetos de reabilitação do centro histórico de Sabará, da antiga estação ferroviária de Barbacena, da re-locação de população de baixa-renda do sítio arqueológico do Morro da Queimada em Ouro Preto, o projeto de reabilitação do bairro popular Nove de Março, em Barbacena, a elaboração dos planos diretores participativos dos municípios de Cataguases, Leopoldina, Muriaé, Sete Lagoas, Serro e Paracatu e a ação de assistência técnica em habitação social em Barbacena e Cataguases. Esta última experiência, que conseguiu articular uma ampla parceria, tem, a nosso ver, um caráter exemplar, razão pela qual vamos abordar alguns aprendizados e desafios que dela emergiram.
A Experiência de Cataguases (MG)
Cataguases, município da Zona da Mata do Estado de Minas Gerais, está situado a 310 quilômetros da capital do Estado, Belo Horizonte e possui população de 67.384 habitantes (9). Destacou-se no cenário nacional pela atuação do cineasta Humberto Mauro e do movimento modernista literário “Verde”, a partir da década de 1920, e pela arquitetura e artes modernistas a partir da década de 1940. Teve o seu conjunto arquitetônico modernista tombado como patrimônio nacional pelo SPHAN em 2004.
A forma urbana do distrito-sede é fortemente condicionada, como em muitas das cidades brasileiras, pelos cursos d’água e pelo relevo. Sua ocupação original se deu numa área de topografia plana – o centro histórico, estando as suas áreas periféricas em meias encostas, habitadas, em sua maioria, pela população de baixa renda. Os problemas de habitação em Cataguases dizem respeito, assim, tanto à ocupação dos fundos de vale, que causa inundações em períodos de chuvas intensas, quanto das áreas localizadas em encostas. Essa situação tem como conseqüência deslizamentos freqüentes, tornando essas ocupações periféricas potenciais áreas de risco e acarretando a degradação do meio-ambiente e da paisagem urbana. Este fenômeno ambiental decorre não somente da implantação da periferia da cidade em sítio de relevo acidentado, também da própria falta de planejamento que oriente o crescimento do núcleo urbano e da produção de moradias sem assistência técnica adequada (10). O déficit habitacional do município, de acordo com dados da Fundação João Pinheiro de 2000, é de 1.400 domicílios, sendo que 86,66% deste déficit correspondem a famílias com renda mensal de até três salários mínimos.
O Programa de Arquitetura Pública atuou em Cataguases durante trinta meses, de agosto de 2004 a janeiro de 2007, funcionando num sistema similar ao do “internato rural” ou residência na área de Medicina, adequado aos estudantes de graduação em Arquitetura e Urbanismo. A cada semestre letivo, um grupo de quatro a seis estudantes, entre o quinto e nono período curricular da graduação, residia em Cataguases, ao mesmo tempo em que prestava serviços ao município, orientados por um arquiteto-coordenador local, pelos professores da Universidade e pelos técnicos da Prefeitura. Nesses trinta meses, estagiaram 34 estudantes-residentes, que desenvolveram trabalhos nas três áreas de atuação do programa: assistência técnica em habitação de interesse social, com atendimento individualizado a famílias de baixa renda; planejamento ambiental urbano, participando da elaboração do Plano Diretor Participativo (PDP) municipal, e patrimônio cultural, auxiliando o município na elaboração de inventários de edificações de valor cultural e em projetos para resgate e documentação da memória de duas comunidades rurais. Na área de assistência técnica o programa atuou com maior ênfase no período de agosto de 2004 a novembro de 2005, num total de 16 meses.
O Programa se estabeleceu por meio de uma série de convênios que envolveram a EA-UFMG, a Prefeitura local e uma ONG, o Instituto Cidade de Cataguases (ICC), contando também com o apoio de uma indústria têxtil local, a Companhia Industrial Cataguases, de uma instituição sem fins lucrativos, o Instituto Francisca de Souza Peixoto, do CREA-MG e da Associação dos Engenheiros, Arquitetos e Agrônomos de Cataguases (ASSEA).
Antes do Programa de Arquitetura ser implantado em Cataguases, as famílias de baixa-renda tinham duas alternativas para construir suas moradias: ou procuravam a Prefeitura, que lhes fornecia projetos padronizados, para construção sem acompanhamento técnico, ou construíam suas moradias sem projeto ou qualquer orientação técnica. A proposta do Programa de Arquitetura Pública foi assistir a essas famílias na construção de suas casas, para que cada uma tivesse direito a um projeto gratuito e personalizado de uma moradia de até 60m² (com possibilidades de ampliação futura), com anotação de responsabilidade técnica no CREA-MG e alvará de construção. Cada família, além do projeto arquitetônico, receberia também os projetos estrutural, hidráulico e elétrico. As despesas nesta etapa seriam compartilhadas: as impressões dos projetos ficariam a cargo do Programa e as famílias arcariam com as despesas de anotação de responsabilidade técnica e de retirada do alvará de construção (11). A construção da moradia, por sua vez, ficava a cargo da própria família, que tinha o acompanhamento técnico da equipe da Arquitetura Pública.
O programa foi iniciado com a sua divulgação, feita por uma emissora e um programa de rádio local e também através da Prefeitura, que o indicava às famílias que a procuravam para obter projetos de moradia prontos. No primeiro contato com as famílias, a equipe tinha sempre o cuidado de esclarecer como funcionariam os trabalhos, discutindo o significado da arquitetura, as diversas fases do projeto, quais desenhos seriam entregues, o que seria gratuito e o que deveria ser pago, entre outros pontos. Procurava-se que as famílias aderissem espontaneamente ao programa, cientes do seu funcionamento. Em seguida, selecionavam-se as famílias, sendo um dos critérios a renda familiar de até três salários mínimos. A seleção ficava a cargo da Secretaria Municipal de Ação Social, que avaliava as condições sócio-econômicas das famílias, e da Secretaria de Engenharia e Infra-estrutura, que avaliava a localização, as condições físicas e de propriedade do lote. Nesse processo, foram priorizadas famílias que já possuíam um lote, doado pela própria Prefeitura ou adquirido com recursos próprios.
Iniciava-se então o atendimento personalizado por parte da equipe de Arquitetura Pública, sendo cada família atendida por um estudante acompanhado pelo arquiteto coordenador local. Nesse momento, os estudantes faziam as primeiras entrevistas com a família, para estabelecer em conjunto com ela o programa de necessidades, e, simultaneamente, os levantamentos dos lotes. A partir disso, realizavam-se os estudos preliminares do projeto arquitetônico, que eram apresentados às famílias, reunindo-se com elas a quantidade de vezes necessária para finalizar o projeto arquitetônico, que seria, então, encaminhado à Prefeitura para análise e aprovação. Posteriormente os projetos complementares – estrutural, hidráulico e elétrico – eram realizados, sob a orientação do coordenador local, dos professores da Universidade e dos técnicos da Prefeitura. Com os projetos prontos, a equipe do Programa de Arquitetura Pública auxiliava ainda as famílias na elaboração da lista de materiais, etapas da obra e orçamento, orientando-as também na busca de financiamento junto à Caixa Econômica Federal. Finalmente, quando as famílias iniciavam as obras, a equipe de Arquitetura Pública realizava visitas técnicas para orientar e acompanhar as várias etapas da construção.
O Programa foi inicialmente apresentado a 50 famílias cadastradas, que haviam recebido lotes doados pela Prefeitura no bairro São Cristóvão, das quais 43 optaram por aderir à proposta. A atuação inicial concentrou-se no Bairro São Cristóvão por uma circunstância muito específica: quando a equipe da Arquitetura Pública iria começar sua atuação na cidade, os lotes daquele bairro tinham acabado de ser doados a famílias de baixa renda. Nos anos seguintes, o Programa se estendeu a famílias de baixa renda em todo o município, tendo sido atendidas aproximadamente 70 famílias (12).
Aprendizado e desafios
Ao longo dos 16 meses de atuação na assistência técnica em Cataguases, deparamo-nos com uma série de situações que, embora decorrentes da situação específica do município e do programa que desenvolvíamos, também lançam luz sobre a problemática mais geral – e complexa – da produção da habitação em nosso país. A primeira delas se refere à questão da segregação sócio-espacial, tantas vezes identificada e trabalhada por diversos atores e pesquisadores. Como pôde ser observado, o processo de urbanização em Cataguases – repetindo aquilo que se dá no Brasil, de modo geral – deu-se de maneira desordenada, controlada pelo mercado imobiliário e moldada por políticas urbanas inadequadas ou mesmo pela total ausência delas. Com isso, a população de baixa renda foi levada a viver em regiões periféricas, geralmente ilegais, com infra-estrutura precária ou inexistente.
Nesse ponto é importante percebermos, seguindo Ermínia Maricato, que vai ser o próprio investimento público, orientado pelos lobbies bem organizados, que alimenta a relação legislação / mercado imobiliário restrito / exclusão social. “É nas áreas desprezadas pelo mercado imobiliário, nas áreas ambientalmente frágeis, cuja ocupação é vetada pela legislação e nas áreas públicas, que a população pobre vai se instalar: encostas dos morros, beira dos córregos, áreas de mangue, áreas de proteção aos mananciais” (13). Assim, ao ocupar essas áreas, essas camadas da população vêem ainda mais prejudicadas suas possibilidades de um exercício efetivo dos direitos de cidadania, tendo menor acesso “aos recursos materiais materializados no espaço urbano, em razão da localização residencial e da distribuição desigual dos equipamentos, serviços urbanos, da renda monetária e do bem-estar social” (14). Com isso, confirmamos aquilo que já se sabe desde o célebre trabalho de David Harvey sobre a cidade e a justiça social: “a dinâmica urbana não apenas reflete a estrutura social de uma dada sociedade, como também se constitui em um mecanismo específico de reprodução das desigualdades das oportunidades de participar na distribuição da riqueza gerada na sociedade” (15).
No caso específico de Cataguases, vemos se manifestar uma das facetas mais cruéis desse fenômeno, com o próprio Estado promovendo a segregação sócio-espacial. Inicialmente, cabe chamar a atenção para uma situação comum à maioria dos municípios brasileiros: a carência de técnicos da Prefeitura, ausência de planejamento urbano e o desconhecimento – ou falta de interesse – do poder público em aplicar as legislações urbanísticas tais como a Lei 6.766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, ou o próprio “Estatuto das Cidades”. Mas esta atitude negativa não se limita a isso: ignorando a existência de grandes vazios urbanos nas áreas centrais, a Prefeitura de Cataguases, como acontece também em muitos municípios brasileiros, tem permitido e mesmo estimulado, ao longo dos anos, a ocupação periférica e em terrenos de topografia desfavorável.
O caso do bairro São Cristóvão, local em que se concentrou nosso trabalho de assistência técnica, exemplifica bem essa situação. Neste caso, pode-se perceber que, mesmo frente à existência de vazios urbanos diversos na área central, o poder público estimulou o adensamento e a ocupação por população de baixa renda de um terreno distante, implantando o bairro sem qualquer dos atributos legais necessários ou dos serviços e equipamentos urbanos desejáveis – o bairro nasceu, assim, sem espaços públicos, praças ou áreas de lazer. Tal situação agrava-se ainda mais pelo fato de que os melhores lotes – de declividade menos acentuada, em que os custos com aterros, cortes e contenções são menores – foram destinados à Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais (COHAB-MG), sendo os demais, doados diretamente a famílias de baixa renda. Ou seja, o Estado, que possui mais recursos e dispõe de técnicos para resolver as questões construtivas acarretadas pela presença de lotes com condições topográficas desfavoráveis, detém os melhores terrenos, restando à população, que dispõe de menos recursos financeiros e técnicos, os terrenos de aproveitamento mais difícil.
Em nossa atuação, encontramos muitas vezes aquilo que Flávio Farah denomina de “cultura do mundo plano”: diante de um terreno acidentado, a população tem o hábito cultural de tentar torná-lo o mais plano possível, o que depende de movimentos de terra e adaptações do perfil topográfico original (16). Assim, o Programa de Arquitetura Pública, ao oferecer assistência técnica em Cataguases, encontrou muitas vezes famílias de baixa renda ocupando terrenos de declividade acentuada, e que não aceitavam bem as propostas da equipe técnica em produzir moradias com uma implantação que aproveitasse as condições topográficas do próprio terreno, com o menor movimento de terra possível. No imaginário da população, o terreno só poderia ser ocupado se tornado plano, o que terminava acarretando movimentos de terra bastante onerosos e agressivos ao meio-ambiente. A essa mentalidade, juntava-se o fato da própria Prefeitura oferecer gratuitamente os serviços de terraplenagem, o que terminava consolidando esquemas inadequados de implantação, gerando, inclusive, riscos às famílias
Outro fator com o qual nos deparamos e que merece reflexão foi a freqüente disparidade entre os desejos e as possibilidades financeiras reais das famílias de baixa renda que atendíamos, o que ficava patente já na montagem do programa de necessidades das habitações (17). Um exemplo disso pode nos ser fornecido por um projeto que executamos para uma família com dois filhos pequenos de mesmo sexo, onde a esposa era empregada doméstica e o marido, desempregado. A renda dessa família era, como de se esperar, bastante baixa, contando eles com os recursos de indenização do marido para dar início às obras. O projeto foi realizado e a obra orientada a partir de visitas técnicas periódicas. Para o projeto do banheiro, que contava com 1,10 por 2,00 metros, especificamos revestimentos e louças claras, em comum acordo com a família, tanto pelas pequenas dimensões do banheiro quanto por questões de higiene e eficiência de iluminação. No entanto, durante a execução, as especificações foram radicalmente alteradas, introduzindo-se revestimentos e louças de cor preta (e de custo muito alto), o que contribuiu para a alteração da percepção do espaço. Questionada sobre o fato, a proprietária respondeu: “Mudei de idéia. Eu prefiro um banheiro igual à da minha patroa. O dela é todo preto. O dela é chique. Eu também quero um banheiro chique”. O gasto maior com os materiais do banheiro comprometeu a execução de outras especificações da obra, acarretando no não revestimento do piso do restante da casa e das paredes, que permaneceram em tijolo aparente (18).
Outro aspecto a ser citado, se refere ao papel do projeto arquitetônico nos casos de habitação de interesse social, encarado pelos usuários muitas vezes apenas como uma exigência burocrática. Assim, apesar da orientação quanto aos propósitos do Programa, era perceptível, em algumas situações, que o desejo dos usuários era somente obter um “documento” que facilitasse a regularização de sua propriedade. O projeto arquitetônico e suas especificações pouco importavam, sendo totalmente ignorados por alguns usuários quando começavam a construir. É interessante perceber que, contraditoriamente, durante o processo de elaboração do projeto, as famílias se mostravam muito interessadas, ajudavam na organização do programa de necessidades, mostravam-se opinativas e compareciam a todas as reuniões para apresentação do projeto. No entanto, com os projetos em mãos, depois da anotação de responsabilidade técnica no CREA e da retirada do alvará de construção na Prefeitura, no momento em que a obra se iniciava, o projeto era, muitas vezes, abandonado. Nesse momento, ao iniciar as obras, parecia se manifestar uma distância entre o mundo do projeto e o “mundo real”: os futuros moradores riscavam e definiam-no no chão, minutos antes de fazer as marcações da obra, ignorando inclusive as orientações sobre as movimentações de terra. Em alguns casos se conseguiu reverter a situação, mas isso se mostrou inviável em outros.
Esse conflito entre projeto e obra era reforçado na medida em que não havia qualquer tipo de acompanhamento pelo poder público, sendo praticamente nulas as possibilidades de fiscalização da Prefeitura, o que terminava por reforçar o abandono do projeto. Assim, anulava-se a posteriori uma das grandes vantagens da assistência técnica: o estímulo ao cumprimento da legislação urbanística, fortalecendo-se a aplicação de instrumentos como o Plano Diretor e a Lei de Uso do Solo. Como o cumprimento desses instrumentos depende de uma ação de fiscalização por parte das prefeituras, e essa fiscalização é, via de regra, muito deficiente, gera-se o descrédito no cumprimento das leis. Esse problema se manifestava também no caso do nosso Programa: algumas famílias, ao iniciarem as obras, questionavam as medidas dos afastamentos, alegando que eram muito grandes e que obedecer à lei significava perder terreno que poderia ser aproveitado para quintais maiores ou até mesmo para ampliação da moradia. Frente a esses argumentos, alegávamos sempre que esses condicionantes estavam ali para garantir qualidade de vida, melhor ventilação, insolação, privacidade, evitar mofo, umidades nas paredes, doenças respiratórias, entre outros, principalmente numa cidade de clima quente e muito úmido como Cataguases. Mesmo assim, as famílias insistiam em descumprir a legislação, descumprimento que era potencializado pela crença de que a fiscalização nunca chegaria ali.
Outro fator que, a nosso ver, poderia contribuir para o abandono do projeto era o grande período de tempo que normalmente decorria entre a entrega do projeto e o início das obras, dada a conhecida dificuldade da população de baixa renda em levantar recursos ou financiamento. Assim, era como se o projeto fosse sendo esquecido com o passar do tempo, com o arrefecimento do entusiasmo inicial e o aparecimento de novas necessidades e novos desejos, ficando muitas vezes superado aquele projeto aceito em outra ocasião. Nessa mesma linha, lidávamos com freqüência também com a questão das ampliações sucessivas, muito comuns nos bairros populares, que nos levavam a sempre considerar a hipótese de que no projeto de uma edificação têm que ser previstas ampliações, não somente da moradia destinada àquela família, mas mesmo a construção de outras moradias no mesmo lote. Neste sentido, um dos grandes desafios, ao lado do correto agenciamento do terreno, era a escolha de um sistema estrutural adequado, dada a imprevisibilidade dos acréscimos que a moradia poderia sofrer ao longo do tempo.
Também a questão do uso da cultura e técnicas construtivas locais constitui um ponto digno de reflexão em nossa experiência. Inicialmente adotávamos como sistema construtivo a alvenaria estrutural, em blocos de concreto ou mesmo em tijolos cerâmicos, com o que eliminávamos grande parte dos custos com ferragens, concreto e fôrmas. Mais adiante, no entanto, tivemos que rever, em vários casos, esta opção pela alvenaria estrutural, na medida em que percebemos que essa ainda não era difundida entre a população, havendo preconceito em relação a ela e mesmo o receio de se morar numa casa construída com essa técnica. Segundo a opinião das famílias que atendíamos, moradias sem os pilares em concreto armado não seriam seguras.
No processo de discussão, tentávamos demonstrar a viabilidade e a segurança da alvenaria estrutural, apontando alguns exemplos na própria cidade e fazendo a comparação de custos entre a residência estruturada com pilares em concreto armado, e aquelas com alvenaria estrutural, sem, no entanto, conseguir grande sucesso. A essa resistência de ordem cultural deve ser acrescentado o fato mais palpável de que não havia no mercado de Cataguases ou das cidades vizinhas, blocos ou tijolos que tivessem passado por testes de laboratório que assegurassem a resistência mínima determinada pelas normas técnicas. Era interessante constatar que não havia também na cidade ou na região empresas produtoras de materiais de construção preocupadas com esse tipo de questão, sendo muito comum encontrar ainda ali empresas domésticas de blocos de concreto, com fabricação manual e secagem ao ar livre, sem preocupação com normas ou padronização.
Um último ponto a se considerar refere-se à questão, já muito discutida, da descontinuidade administrativa nas políticas publicas em nosso país (19). Neste caso, pudemos perceber que a implantação do Programa de Arquitetura Pública em Cataguases, apesar de constituir numa política pública, se fez muito mais pela vontade de parceiros, empresários, e da sociedade civil organizada, que se mobilizou para viabilização e manutenção da proposta, que pela atuação do próprio poder público. Como relatamos, depois de ser negociado desde janeiro de 2004, o projeto foi implementado no município a partir de agosto daquele ano, faltando apenas cinco meses para o fim da gestão municipal em curso. A gestão seguinte, que assumiu a Prefeitura a partir de janeiro de 2005, sendo adversária política da anterior, não tinha muito interesse em continuar as políticas implementadas pela gestão anterior, e nosso Programa somente continuou por mais 24 meses porque alguns setores empresariais e ONGs de importância na cidade se mobilizaram e pressionaram a nova gestão. Com isso, o apoio institucional da Prefeitura, necessário para que a assistência técnica obtivesse sucesso, era sempre precário e se dava mais pela boa vontade de alguns técnicos que acreditavam na importância do projeto que pelos agentes políticos que estavam no comando das ações.
Como podemos ver, efetivar o direito à Arquitetura e ao Urbanismo das famílias de baixa renda é um desafio complexo, que envolve uma ampla série de variáveis. A nosso ver, a “arquitetura pública” deveria ser vista como uma política complementar ao planejamento ambiental e urbano, e neste sentido, o poder público – principalmente o local – deveria ter um papel fundamental na formulação das políticas de habitação, que devem necessariamente se relacionar com as políticas mais gerais de ordenamento do espaço urbano para serem minimamente eficientes. No caso de Cataguases, a assistência técnica foi encerrada exatamente porque o poder público não assumiu suas responsabilidades no processo, não entendendo que a assistência técnica deveria ser uma política de Estado e não o feito pontual de uma gestão.
notas
1
A esse respeito, confira: SILVA, Maria do Socorro; VASCONCELOS, Simão Dias. Extensão universitária e formação profissional: avaliação da experiência das Ciências Biológicas na Universidade Federal de Pernambuco. Estudos em Avaliação Educacional, v. 17, n. 33, jan./abr. 2006. p. 119/135. Disponível em: <www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/eae/arquivos/1280/1280.pdf>. Acesso em 12/03/2009.
2
Entre as iniciativas, cabe se destacar a da Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG), que, já nessa nova concepção, tem lançado, desde 2007, editais para projetos que conjuguem pesquisa e extensão. O Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, por sua vez, está chegando a sua quarta edição, tendo tido acontecido em 2002, em João Pessoa (PB); em 2004, em Belo Horizonte (MG); em 2006 em Santa Catarina (SC) e em 2009 vai ter lugar em Dourados (MS).
3
JEZINE, Edineide. As Práticas Curriculares e a Extensão Universitária. Anais do 2º Congresso Brasileiro de Extensão Universitária. Belo Horizonte: UFMG, 2004. Disponível em <www.ufmg.br/congrext/Gestao/Gestao12.pdf>. Acesso em 12/02/2009.
4
BRASIL. MINISTERIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. PLANO NACIONAL DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA. Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e SESu / MEC. Brasil: 2000/2001. Disponível em: <www.extensao.ufba.br/planonacionaldeextensao.asp>. Acesso em: 25 nov. 2008.
5
Idem.
6
Idem.
7
DEPARTAMENTO DE MINAS GERAIS DO INSTITUTO DE ARQUITETOS DO BRASIL. Perfil do profissional arquiteto-urbanista em Minas Gerais. Belo Horizonte: IAB-MG, 2001.
8
BRASIL, op. cit.
9
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Contagem da População em 2007. Disponível em: <www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php>. Acesso em: 12 dez. 2007.
10
ESCOLA DE ARQUITETURA DA UFMG. Plano Diretor Participativo de Cataguases. Leitura da Realidade Municipal. Belo Horizonte: Escola de Arquitetura da UFMG, 2006. (relatório impresso)
11
Aqui cabe anotar que tais despesas teriam um valor simbólico, graças ao convênio firmado com o CREA-MG e a Prefeitura Municipal, voltado às famílias atendidas pelo Programa.
12
A experiência em assistência técnica de Cataguases foi uma das doze selecionadas como exemplar, em todo o país, em chamada pública do Ministério das Cidades no ano de 2005, da qual foi apresentada no primeiro Seminário Nacional “As experiências em habitação social no Brasil”, realizada em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Cf. ARRUDA, A.M.V., CUNHA, E.M.P., MEDEIROS, Y. (org.). Experiências em Habitação de Interesse Social no Brasil. Brasília: Ministério das Cidades, 2007. 216p.
13
MARICATO, Ermínia. Conhecer para resolver a cidade ilegal. In: CASTRIOTA, Leonardo Barci (org.). Urbanização Brasileira: Redescobertas. Belo Horizonte: C/Arte, 2003, p. 79.
14
QUEIROZ RIBEIRO, Luiz Cesar de; SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos. Democracia e segregação urbana: reflexões sobre a relação entre cidade e cidadania na sociedade brasileira. EURE. Santiago, 2003, v.29, n.88, p.79-95. Disponível em: <www.scielo.cl/scielo.php?pid=S0250-71612003008800004&script=sci_arttext#Harvey#Harvey>
15
HARVEY, David. Social justice and the city. London:Edward Arnold, 1973.
16
FARAH, Flávio. Habitação e Encostas. São Paulo: Instituto de Pesquisas Tecnológicas, 2003. 312p.
17
Sobre a influência de um imaginário de classe média sobre os desejos da população de baixa renda esse ponto, confira um interessante estudo na área da Comunicação, que mostra como o consumo, numa era da comunicação de massa, funciona simultaneamente como meio de integração e de distinção social entre as classes: JATENE, Íris de Araújo; WANZELER, Ercília Malcher. Saara versus Luxus: o consumo contemporâneo escrachado em “Cobras e Lagartos”. In: XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2007. Disponível em <www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0530-2.pdf>. Acesso em 12 de março de 2009.
18
Confira um interessante estudo a esse respeito: BITTENCOURT, Leonardo. “Meu, dele ou de outros? Especulações sobre o desejo no projeto arquitetônico”. In: LEITAO, Lucia; AMORIM, Luiz (Org). A casa nossa de cada dia. Recife: Edição Universitária da UFPE, 2007. p. 151-173, onde se lê: “A elaboração de projetos residenciais café repleta de situações em que os desejos de seus moradores se manifestam de formas variadas. Na maioria das vezes, entretanto, o arquiteto não está preparado para reconhecê-los. Em outros casos, nem o próprio cliente conhece seus genuínos desejos, autorizando o profissional a imprimir seus próprios desejos na casa onde outra pessoa – neste caso, o cliente – vai morar.” (p. 166)
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Em relação à descontinuidade administrativa, confira FREY, Klaus. “Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas públicas”. Planejamento e Políticas Públicas. No 21 - Jun 2000. p. 211-259. Segundo esse autor, trata-se de um fenômeno “que se opõe à consolidação de formas mais nítidas e confiáveis dos processos de negociação política”, dizendo respeito “não apenas à definição das prioridades técnicas e materiais, mas freqüentemente também às formas de cooperação e de participação como também à maneira de colaboração e de regulação de conflitos entre executivo, legislativo e sociedade civil” (p. 246)
sobre os autores
Leonardo Barci Castriota é arquiteto-urbanista, especialista (1989) e doutor em Filosofia pela UFMG (2000). Professor da Escola de Arquitetura e coordenador do Mestrado Interdisciplinar em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da UFMG. Ex-presidente do IAB-MG, é pesquisador do CNPq e autor de vários livros e artigos sobre história da arquitetura, planejamento urbano e patrimônio cultural.
Paulo Henrique Alonso é arquiteto-urbanista, especialista em Revitalização Urbana e Arquitetônica (1995), cursando atualmente o Mestrado Interdisciplinar em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da UFMG. É bolsista do CNPq e presidente do Instituto Cidade de Cataguases (ICC).