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drops ISSN 2175-6716

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Leia o texto curatorial da exposição "Brassaï", em cartaz no Museu Nacional da República, em Brasília, de 02 de setembro a 02 de outubro de 2011

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SAINT-CYR, Agnès de Gouvion. Brassaï. Drops, São Paulo, ano 12, n. 047.05, Vitruvius, set. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/12.047/4006>.



Plaza Concorde
Foto Brassaï

Ele usava seu nome, ou melhor, seu pseudônimo, como um estandarte. Brassaï, no entanto, que nascera como Julius Halasz em 1899 em Brasso na Transilvânia (na parte da Romênia que estava sob domínio austro-húngaro) só sonhava com a França, fascinado pelo idioma e pela cultura que seu pai, professor de francês na universidade, lhe revelava.

Na volta de sua primeira viagem a Paris, quando ele tinha quatro anos, a cabeça cheia de imagens intensas, ele jura voltar para lá para estudar. Infelizmente, a Primeira Guerra Mundial enterra seu sonho: depois de ter servido no exército austro-húngaro, ele é proibido, como todos os cidadãos de países inimigos, de viver na França. Desmobilizado, ele começa então sua formação artística: na época, pretendia se tornar professor de desenho.

Depois de Budapeste, vai para Berlim em 1921, onde frequenta os cursos da Academia de Belas Artes e estuda desenho, pintura e escultura. Sua curiosidade e seu senso da amizade fazem com que fique muito popular no círculo dos artistas de vanguarda, composto de Kandinsky, Kokoschka, Moholy-Nagy, de músicos já famosos como Varese e daquele que continuará sendo seu melhor amigo, o pintor húngaro Lajos Tihany.

Esses três anos passados em Berlim não servem apenas para a aprendizagem artística, econômica e social, mas também para a realização de um conjunto importante de desenhos, principalmente nus. Brassaï amadurece a certeza de querer dedicar sua vida à arte, quaisquer que sejam as consequências materiais. A inflação galopante da época engole de fato os parcos recursos angariados com a venda de seus desenhos ou de suas gravuras. Ele acha que seu desejo de criação só poderá desabrochar em Paris.

Logo na sua chegada lá, em janeiro de 1924, ele escreve para seus pais que se sente em harmonia com a cidade, “meu campo de batalha”, onde ele estuda “como Paris vive e pulsa, mas também como os homens pulsam com ela”. Ele sente então confusamente o fim de uma civilização e, entre outros, o fim programado dos Anos Loucos, que transformaram Montmartre no lugar dos sonhos para intelectuais e artistas.

Brassaï segue convencido de que conseguirá desenvolver todos seus talentosem Paris. Enquantoisso, multiplica as atividades. Para se livrar dos problemas linguísticos, ele se dedica ao estudo regular da língua francesa e decide aprender dez palavras novas por dia, aquelas que ele descobre no cardápio do restaurante ou nas paredes da cidade, o que tem como consequência justaposições ao menos bizarras: manjar-branco associado a prostituta ou gigolô a bouillabaisse...

Para resolver seus problemas materiais, faz charges para jornais franceses e alemães, além de enviar regularmente a revistas austríacas, húngaras ou romenas colunas sobre assuntos que sua imaginação trata sem complexos: críticas de exposições, análises de concertos, artigos sobre o Salão da Agricultura ou a partida de rúgbi França-Romênia, apesar de não entender nada sobre este esporte... Embora desenhe charges humorísticas para revistas esportivas e receba vez ou outra encomendas de ricos mecenas, sua vida material é complicada. Ele confessa que perde tempo ao executar tarefas menores, perdendo o sentido de sua vida.

Por isso mesmo, no cair da tarde, ele volta maravilhado para a beira esquerda do Rio Sena, onde se aglutina o mundo de artistas, intelectuais, estrangeiros, aventureiros e senhoritas fáceis que transformou o bairro de Montparnasse dos anos 1920-1930 numa lenda. À medida que a noite avança, ele conversa no restaurante La Coupolecom André Kertés, seu compatriota, mas também com Salvador Dali e Ribemont-Dessaignes, seus amigos mais próximos na época. Mais tarde um pouquinho, ele chega em La Rotondeonde retoma o papo da véspera com Nancy Cunard, Man Ray, Kiki e em breve Henry Miller.Este se torna rapidamente seu alter ego. Inseparáveis, eles vagueiam de noite por toda a cidade, de Montparnasse a Montmartre, ida e volta, o que Miller descreverá muito propriamente na sua famosa obra Dias de paz em Clichy.

É nessas circunstâncias que o projeto “Paris à noite” se torna uma evidência para ele. Já faz algum tempo que os redatores-chefes dos jornais para os quais colabora vêm pedindo para ele acrescentar fotografias às suas crônicas. Ele começa pedindo aos seus amigos fotógrafos, antes de se arriscar pessoalmente nesta disciplina. Rapidamente, contudo, ele não se contenta mais com a função meramente ilustrativa da fotografia e entende já em 1929, na época de suas primeiras imagens, que esta mídia permite expressar emoções estéticas genuínas que ele não consegue atingir com a pintura; ele se dá conta de que esta nova ferramenta é que pode melhor traduzir a complexidade e a diversidade da sociedade contemporânea.

Ele ainda guarda em mente a Paris desconhecida evocada por Atget, velho fotógrafo que admira. Este lamenta não poder fixar suas imagens mais rapidamente e planta sua câmera fotográfica ao raiar do dia, privilegiando as ruas vazias que mostram o próprio espaço urbano. Ao passo que Brassaï, digno concorrente de seus amigos surrealistas, que despertaram sua curiosidade, se apaixona pelos indivíduos e suas idiossincrasias, pela arte bruta e pelas culturas primitivas. Ele desenvolve um gosto pronunciado pelo estranho, pelo diferente e pela vida noturna. Se ele se assemelha a Atget na sua busca pela realidade, ele tenta transcender o real pelo surreal, segundo seus próprios termos, ao caçar na luz noturna da cidade uma Paris insólita, desconhecida, desprezada.

Ele vai edificando esta grandiosa lição sobre as trevas ao longo de suas deambulações solitárias ou na companhia de Henry Miller, Blaise Cendrars ou Léon-Paul Fargue, de Montparnasse até as portas de Paris. Lá, ele traz os humildes para a visibilidade: prostitutas, jovens delinquentes ou trabalhadores noturnos; transforma o rigor clássico da arquitetura parisiense em cenas estranhas; e imortaliza a beleza esquisita das silhuetas fugidias, das iluminações ofuscantes ou das névoas no rio Sena. Ele privilegia os lugares do prazer que a moral até então condenava: casas de prostituição como a de Madame Suzy, com seus ritos, suas grandes figuras e o perfume de proibição que fica no ar; bares frequentados por transexuais; cafés que acolhem fregueses intelectuais e artistas. Alguns preferem o Flore, enquanto outros sentam com mais gosto numa mesa do Dôme.

Para chegar a este resultado, ele lança mão de um vocabulário inventado por ele mesmo, baseado no uso das luzes que a cidade propicia, sejam elas faróis de carros ou iluminação dos postes. As personagens surgem assim do escuro, no meio de suas ocupações as mais insólitas. Paris passa então a ser um cenário onde o Sena reflete a beleza da arquitetura, as pontes abraçam a escuridão, os mictórios escondem histórias insólitas e os muros contêm sombras estranhas.

A obra está pronta para ir à gráfica no final de 1932, mas Brassaï – cujo perfeccionismo beira muitas vezes a obsessão – suplica o editor para adiar a publicação mais um pouco a fim de incluir algumas imagens a mais sobre a primavera. O lançamento do livro com suas 64 fotografias é uma verdadeira revelação, pois até então nenhum fotógrafo tivera a audácia de inscrever o jogo da escuridão, da sombra, da penumbra e no oposto dos estouros de luz no cerne de sua obra.

O sucesso é imediato e coloca Brassaï em contato com as revistas de arte as mais famosas e as publicações internacionais de maior renome. Ele vai publicar regularmente no Minotaure, onde a série sobre as madréporas e as esculturas involuntárias lhe valem a admiração de Salvador Dali e de André Breton - que lhe pedirá fotografias para ilustrar O Amor Louco e Verve. Ele também iniciará uma colaboração de quase trinta anos com Carmel Snow para o Harper’s Bazaar, para o qual vai realizar reportagens escritas e fotográficas.

Enquanto isso, seu amigo Tériade o apresenta a Picasso com a ideia “de um projeto ainda confidencial”. Ambos os artistas se entendem muito bem e Brassaï entra em diálogo com outro criador começando a fotografar obras de Picasso. Desta longa cumplicidade, que durará até os anos 60, nascerá a obra As esculturas de Picasso e as famosas Conversas com Picasso, onde consta o mais conhecido retrato do Mestre no seu ateliê. A confiança entre os dois homens é recíproca, a influência mútua permanece perceptível, por exemplo quando Picasso cobra de Brassaï o fato dele não mais desenhar: “Você tem um dom e não o explora. É impossível, você está me ouvindo, impossível que a fotografia possa lhe satisfazer plenamente. Ela lhe obriga a uma abnegação total!” Ao que o interessado retruca: “Essa submissão me agrada. Tenho o olho, mas não a mão; não se pode mais tocar nos objetos...” Essa conversa vai levar Brassaï a seguir os conselhos do seu amigo mais velho e a se dedicar tanto à fotografia, à pintura, ao desenho, quanto à escultura, à tapeçaria e até ao cinema com seu filme Tant qu’il y aura des bêtes, que será premiado em Cannes em 1955.

Porém, não esqueçamos que Brassaï também é um homem de convicções. Rechaçando depois da guerra os horrores que violentaram a vida humana, ele se envolve num trabalho tanto desnorteador quanto solitário, catando nos muros de Paris, em ladeiras desconhecidas ou passagens singulares, estes misteriosos sinais portadores da palavra dos desaparecidos, estes traços mágicos cravados contra o esquecimento, esta arte popular no cerne da criação atemporal que são os grafites. Ele decifra a vida ao ler o muro, olha com ternura os juramentos entalhados nas árvores, estabelece a cronologia do mundo ao visitar as paredes das cavernas e as das fábricas. A partir disso ele monta uma nomenclatura: o nascimento do homem, a vida, o amor, a morte, os animais, a magia... Porém, apesar de publicar com imenso sucesso um livro sobre grafites em 1960, apesar das numerosas exposições apresentadas no resto do mundo, Brassaï prossegue nessa busca, sem parar, como uma obrigação obsessiva para com o olhar humano.

É, aliás, por causa de sua capacidade de análise e de diálogo com os outros que as revistas gostam de lhe encomendar reportagens mundo afora e retratos de artistas. Seus arquivos revelam o cuidado meticuloso com o qual preparava suas obras. Tratando-se de países do velho ou do novo mundo, ele toma o tempo de entender, de escolher o momento, a luz e o ambiente ao redor. Dá para sentir nos seus instantâneos um quê indefinível de posa e de eternidade, com uma pitada de malandragem e estranheza.

Mesmo que sua vida tenha se estirado ao longo de suas publicações – as mais recentes sobre Henry Miller, A Paris secreta dos anos 30, os artistas da minha vida – Brassaï tinha consciência da obra imensa que realizara, estabelecendo até pouco antes de morrer uma lista de uns trinta livros para publicar. Henry Miller, que o apelidara “O olho de Paris” resumia assim seu amigo: “Bastavam poucas horas ao lado dele para ter a impressão de estar sendo levado para uma grande peneira que guarda um pouco de tudo o que contribui para exaltar a vida”.

sobre a autora

Agnès de Gouvion Saint-Cyr é curadora da exposição.

 

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