Capital da região autônoma de Galícia, ao norte da Espanha, Santiago de Compostela tem sido um lugar de peregrinação por séculos. Em 2000, o governo galego aprovou um megaprojeto para uma Cidade da Cultura, desenhado e coordenado pelo escritório de Peter Eisenman. A construção, iniciada em 2001, foi alvo de grande controvérsia pelos enormes custos que gerou à modesta economia galega. Críticas baseiam-se em um argumento de que o projeto carece de um propósito definido e tem uma escala exagerada. Só podemos nos perguntar o motivo, frente a um exemplo significativo de crescimento sensato como o centro da cidade de Santiago, da construção de um complexo que se opõe aos valores da comunidade que representa?
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A falta de consideração com relação a escala do projeto da Cidade da Cultura da Galícia é evidente no seu desenho. A intenção do programa era criar um novo centro para Santiago de Compostela, um novo foco de atenção de um tamanho similar, senão maior, que o centro histórico. O complexo de 650000m² é composto por seis megaedifícios, com a intenção de apresentar a Galícia como uma comunidade do século XXI. Segundo Manuel Fraga, ex-presidente da Xunta da Galícia, órgão que promoveu e aprovou o projeto, “se foi o Pórtico (1) na Idade Média e a fachada da Catedral durante os tempos modernos, tínhamos que fazer algo para o presente, para continuar atraindo visitantes à Galícia” (2). Roberto Varela, atual Comissionado de Cultura na Xunta vai mais longe, comparando a Cidade da Cultura com desenvolvimentos emblemáticos (e igualmente controversos) que tem tido efeitos positivos sobre seus respetivos contextos, como o Museu Guggenheim em Bilbao, o Lincoln Center em Nova Iorque e a Opera House de Sydney. O que Fraga e Varela não levam em conta é que, diferentemente dos projetos anteriormente mencionados, a Cidade da Cultura localiza-se totalmente fora da área urbana e histórica de Santiago, sendo acessível unicamente através de uma rodovia nacional, fato que reduz ou quase anula seu potencial de revitalização. Talvez de igual, senão maior, importância é o fato de que o complexo foi concebido como uma enorme e única forma monumental – monumentalidade conseguida através da escala e a qualquer preço –, sem a consideração de seus conteúdos. Aparentemente, os planejadores não pensaram que “desde a ideia ao plano, um longo e difícil caminho deve ser superado, mas a trajetória do plano à execução não é menos complexa e a melhor forma de superá-la com garantias é através do exercício do consenso e dialogo entre a administração e os cidadãos.”(3) De forma eloquente, Rosina Gómez-Baeza, diretora de uma ‘cidade da cultura’ bem menor no litoral norte da Espanha, diz que “a arquitetura deveria responder a seus conteúdos. Esse é o ideal, a realidade é diferente.”(4)
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A Cidade da Cultura de Galícia é o exemplo perfeito do que Christopher Alexander chamaria “crescimento a grandes doses”, no qual “o ambiente se constrói massivamente. Prédios ‘perfeitos’ e isolados são construídos e abandonados a própria sorte.” É o oposto de sua ideia de “ordem orgânica”, que implica que “o planejamento e a construção devem seguir um processo que permita a aparição gradual do ‘todo’ a partir de atos localizados. A comunidade escolhe sua própria ordem através de uma linguagem comum, não de um mapa”; um planejamento que presta atenção aos mais “ínfimos detalhes”. “É um crescimento que depende de uma visão dinâmica e continua do ambiente”(5). De forma contrastante, a Cidade da Cultura de Galicia tem forçado a uma redefinição do Monte Gaias, sobre o qual está construída, e ponto de referência geográfica da cidade de Santiago. Teoricamente, o projeto procura uma releitura do centro histórico da cidade, através da interpretação conceitual das principais ruas do centro e tentando também a mimetização com a paisagem. Porém, a teoria está muito longe da experiência real em todos os níveis, desde a diferença de escalas até a materialidade e relação com o território. Trata-se de um exemplo da completa ‘deificação do conceito’, até o ponto em que vira um absurdo e é totalmente inviável. Sua presença física monumental não é suficiente para atrair a os milhares de visitantes necessários para encher de vida seus milhares de metros quadrados, especialmente em uma cidade de 100000 habitantes e em uma região de pouco menos que três milhões e meio de pessoas. É uma presença que nega as lições da conformação do centro histórico de Santiago de Compostela, um bom exemplo do ‘crescimento orgânico’ de Alexander.
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“O importante em um prédio não é sua aparência vista do ar. O importante é como se vive na escala humana” (6) afirma Jan Gehl, responsável por uma grande parte da Copenhagen moderna, aonde mais de 37% da população movimenta-se por bicicletas. As coberturas flutuantes e inclinadas da Cidade da Cultura são, sem dúvida, imponentes. Suas fachadas captam a atenção com um ritmo complexo e, aparentemente aleatório, de formas geométricas. Como se mencionou anteriormente, o efeito de flutuação presente no projeto responde a uma recriação da malha medieval da cidade, que se sobrepõe a outra malha inspirada nas montanhas, transmitindo a mensagem “críptica” do complexo e o conecta com seu local. Porém, qual é a verdadeira relação entre isso e a experiência genuína do projeto? Pode o visitante comum experimentar e entender todo isso ao caminhar ao longo de uma das cinco ruas monumentais da Cidade da Cultura (em referência às cinco principais ruas do centro)? E, a que preço? Gestos ‘estéticos’, como a pendente de 60º em algumas coberturas, o caráter único da maioria das peças construtivas que compõem o complexo e que impedem um mínimo nível de pré-fabricação e eficiência construtiva (uma peça de vidro da fachada principal pode custar até mil euros) ou os enormes vazios inutilizados e inacessíveis, localizados entre o forro e a cobertura estrutural, evidenciam que tal preço é totalmente insustentável. Ao começo do projeto, a Cidade da Cultura tinha um orçamento de 100 milhões de euros. Afogada pela controvérsia e pelas demoras na construção, o orçamento tem crescido, dez anos depois, até a cifra monumental de 500 milhões, equivalente a mais do que 7% do orçamento total de toda a Comunidade Autônoma de Galícia para o ano 2012, ou quatro vezes o orçamento da cidade de Compostela em 2007 (7). Temos que questionar seriamente a viabilidade e a raison d’être de um projeto de tal magnitude. E, adicionalmente a ser construído com as contribuições de todos os galegos, seguramente gerará custos de manutenção monumentais, que só serão calculados e conhecidos na sua totalidade quando o complexo estiver completo (8).
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A história da arquitetura e das cidades fala muito sobre a beleza da ruína e das construções antigas, e sobre seu valor histórico e estético. As ruínas são conservadas e visitadas, pois constituem um vestígio, por vezes, vivo e em uso do passado que adquire significado e simbolismo com o passar do tempo. A Catedral de Santiago é um exemplo arquetípico dessa condição, e as marcas deixadas pelos peregrinos quando chegam a seu destino são o exemplo desse valor agregado produzido pelo tempo. As ruinas são espaços emotivos, que causam admiração e introspecção. Mas, ao longo do tempo, nem sempre tem o mesmo efeito sobre um edifício e seu espaço. No caso da Cidade da Cultura que antes mesmo de seu término já começa a se deteriorar, o envelhecimento, a falta de manutenção e a negligência aparecem ironicamente a frente de seu edifício maior, atualmente em construção. O espaço aqui é alienante e desorientador, e é impossível compreender sua imensidade, não pela sua complexidade, mas porque se perde em todas as direções sob o céu cinza do norte da Espanha.
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Uma das principais ideias por trás do projeto é a de criar um espaço unificado para a integração da cultura galega. Segundo Roberto Varela, “a cultura galega precisa de uma grande biblioteca, um grande arquivo, de um ponto de encontro das avant-gardes artísticas e um centro para a criação e a investigação cujos programas sejam capazes de viajar além de nossa geografia, e todo isso não pode ser conseguido com instalações pequenas e dispersas ” (9)
Porém, “A Galícia do século XXI tem suas próprias multinacionais e talentos individuais (...) Mas a Galícia é também essa região aonde a gasolina tem impostos adicionais porque não a fundos para o Sergas (a comissão regional de saúde), que está sobrecarregado pela quantidade de população da terceira idade. Galícia é a região aonde as maiores cidades, La Coruña e Vigo, esgotam suas águas nos rios porque os sistemas básicos de saneamento ainda não estão completos. Galícia é o curioso país aonde o aeroporto de Alvedro ainda não foi conectado com uma rodovia que passa a 500 metros, ou aonde ninguém pensa em uma linha de metro, enquanto Valencia, Sevilla e Málaga estão já construindo as suas, ou aonde construir uma segunda ponte sobre o Rio Vigo parece uma utopia, mesmo que o Rande (10) esteja perto do colapso. Mas a Xunta tem outras prioridades. O governo galego gastara 54,9 milhões de euros esse ano na Cidade da Cultura (...). Santiago, para a satisfação de todos os galegos, é a cidade com o melhores equipamentos culturais de toda Galícia, em relação a sua população. Além dos tesouros da Catedral e sua Universidade, conta com o Auditório Monte Gozo (que é utilizado menos de uma vez por semana), o Auditório de Galícia (quase nunca utilizado em toda sua capacidade), o Multiusos del Sar (outro centro cultural pouco utilizado), e dois teatros. A Xunta também financiou a construção de um estádio de primeira classe (atualmente aproveitado por um time na quinta divisão do futebol espanhol) e um museu de arte de vanguarda com afluência moderada. Como se esses equipamentos e infraestruturas fossem insuficientes, todos os galegos estão levando a carga da Cidade da Cultura, que custara finalmente uns 25 milhões das antigas pesetas.” (11)
É evidente, deste ponto de vista, que a realização da ideia de “unificar” a cultura galega foi errada em sua localização, ideia e escala.
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O objetivo deste escrito não é condenar a construção de obras monumentais ou paradigmáticas, ou mesmo as ideias projetais do arquiteto. A intenção é questionar (como tem sido feito pela sociedade espanhola ao longo dos dez anos de construção) a viabilidade deste projeto específico. Sua utilidade e integração com a paisagem são problemáticos, devido ao contexto econômico e social no qual é construído, especialmente em comparação com o centro histórico de Santiago de Compostela. É um projeto aonde a arquitetura e o urbanismo se perdem em conceitos e ideais afastados da realidade. Além disso, o projeto não consegue dar uma resposta convincente e efetiva aos problemas dessa realidade. É um pronto insustentável, porque seu conceito, seu local, seu momento e a forma como esta sendo feita não coincidem. Não existe aqui a harmonia como a procurada por Christopher Alexander. É simplesmente o produto de um impulso, um extraordinário capricho político (que responde a “bolha” econômica de final da década de 1990) no marco dos descomunais esforços de regiões secundárias para sobressair econômica e politicamente em comparação a cidades como Barcelona e Bilbao. Só o tempo revelará o efeito desses projetos gigantes na experiência da cidade, mas já se ouvem falas chamando-os de “elefantes brancos” – enormes projetos carentes de viabilidade e vida. Na sua forma presente, a Cidade da Cultura parece ser um exemplo claro desse caso, ainda quando a construção não foi terminada. A Cidade da Cultura é um sinal de que provavelmente o que procuramos não é que nosso tempo precisa. Talvez a ideia da monumentalidade hoje em dia não precise de construções faraônicas típicas do passado. Talvez o magnifico em nossos dias seja o manejo sábio de nossos recursos, a consolidação e a decantação que tem feito tanto bem para os trabalhos do passado. A insustentabilidade não é criada unicamente pelo mal manejo de recursos específicos, mas forma parte de um problema muito maior, no qual o planejamento é fundamental. Este planejamento tem que levar em conta o contexto, não só como ferramenta de desenho, mas também como uma forma de compreender a realidade, que é muito mais complexa que um projeto de arquitetura.
Talvez a Cidade da Cultura seja terminada, seus enormes espaços se encham gradualmente de vida e dos arquivos e memórias da história do noroeste espanhol. O preço pago, porém, terá sido muito grande, e a ruina não será bonita.
notas
NE
Artigo originalmente publicado em “Consilience: The Journal of Sustainable Development”, Vol. 8, Iss. 1 (2012), Pp. 34-49
1
Em referencia ao ‘Portico de la Gloria’, na entrada principal da Catedral de Santiago de Compostela.
2
“CIUDAD DE LA CULTURA. Fraga defiende con calor el Gaiás y lo compara con el Pórtico de la Gloria” no jornal Voz de Galicia, novembro 8th 2007.
3
ESTÉVEZ FERNÁNDEZ, Gerardo. 2001. “Santiago de Compostela, conservación y transformación”. In Arbor CLXX, 671-672 (Novembro – dezembro 2001), 473-478pp.
4
“«La arquitectura debería responder a los contenidos; la realidad es otra»” no jornal Voz de Galicia, Janeiro 23, 2009.
5
Todo de: ALEXANDER, Christopher. 1978. “Urbanismo y Participación”. Barcelona. Gustavo Gili.
6
“El Arquitecto de las personas”. Artigo de Marcus Hurst na edição de fevereiro de Yorokobu. Consultado em http://www.yorokobu.es/el-arquitecto-de-las-personas/ Março 12, 2012.
7
“El PPdeG aprueba en solitario los presupuestos para 2012 con un total de 9.135 millones” no jornal Galicia en el Mundo, Dezembro 26 2011. http://www.cronicasdelaemigracion.com/articulo/galicia/2011-12-26/ppdeg- aprueba-solitario-presupuestos-total-135-millones/15089.html, Consultado: 12 de Março, 2012.
8
Roberto Varela: «La Ciudad de la Cultura no es un elefante blanco», no jornal La voz de Galicia, Abril 30, 2010. http://www.lavozdegalicia.es/galicia/2010/04/30/00031272635089566843104.htm Consultado: 12 de março de 2012.
9
“Roberto Varela dice que la Ciudad de la Cultura es una inversión «imprescindible» para el conjunto de Galicia” no jornal La Voz de Galicia, Abril 15, 2011. http://www.lavozdegalicia.es/galicia/2011/04/15/00031302865807757401915.htm Consultado: 12 de março de 2012.
10
Ponte emblemática sobre o Rio Vigo construída no final da década de 1970.
11
“La Obra”, artigo no jornal La Voz de Galicia, Setembro 6, 2004. http://www.lavozdegalicia.es/hemeroteca/2004/09/06/2999940.shtml?utm_source=buscavoz&utm_medium=buscavoz Consultado: 12 de março de 2012
sobre o autor
Simón Fique, estudante de 5º ano de arquitetura na Universidade Nacional de Colômbia, Bogotá. Estudou durante um ano na Escuela Técnica Superior de Arquitetura de Madrid. Estagiário no Bacco Arquitetos Associados.