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Na opinião de Nabil Bonduki, professor da FAU USP, o Museu do Ipiranga é muito mais do que um espaço de exposição, é uma unidade de produção de pesquisas e conhecimento científico multidisciplinar sobre o país.

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BONDUKI, Nabil. Quem for procurar a Independência no Museu do Ipiranga vai encontrar o Brasil. Drops, São Paulo, ano 23, n. 179.02, Vitruvius, ago. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/23.179/8584>.



“Aqui no Museu do Ipiranga, viemos dar início às obras de revitalização e modernização do Museu da Independência. Vamos devolver esse patrimônio cultural e histórico para os brasileiros em setembro de 2022. Viva a Independência do Brasil!”

O tuíte do ex-governador João Doria, em 7/9/2019, tinha a clara intenção de alçá-lo como o protagonista do bicentenário da chamada Independência do Brasil. Parecia um ótimo marketing, na disputa com o atual presidente pela narrativa conservadora que utiliza a data como um marco relevante na história nacional.

O equívoco de achar que o Museu Paulista da USP se limita a um museu sobre a independência oficial do Brasil, como fez Doria no seu Twitter, é comum no público leigo. Mas quem for ao Ipiranga verá que ele é muito mais do que isso.

A visibilidade da reabertura, com onze exposições sobre diferentes aspectos e visões históricas sobre o Brasil, revelará que ele é muito mais do que um museu voltado para exaltar o discurso oficial da Independência.

Elas mostram a diversidade da cultura brasileira e os conflitos de olhares e narrativas sobre um país e um povo que ainda não conquistou a verdadeira independência.

Desde a gestão do professor Ulpiano Bezerra de Meneses (1989-1994), o Museu Paulista vem se afastando do antigo viés memorialista, baseado no culto e mitificação de personalidades da elite, construídas artificialmente para exaltar a leitura oficial da independência e a história dos bandeirantes, e vem se ampliando para trazer a cultura material do povo brasileiro.

Nessa perspectiva ele é muito mais do que um espaço de exposição. É uma unidade de produção de pesquisas e conhecimento científico multidisciplinar sobre o Brasil e de difusão, que aproxima a universidade da sociedade.

Mas apenas com a reabertura em uma estrutura física e institucionalmente preparada para ampliar e diversificar seu espaço expositivo e para receber cerca de 1 milhão de visitantes ao ano, essa janela para o Brasil real se revelará com a intensidade necessária.

Para chegar até o povo brasileiro, será necessário passar pelas antigas pinturas e esculturas de imperadores, nobres e bandeirantes, velhos conhecidos de uma história falseada. Eles continuam lá, no saguão de entrada, na escadaria e no Salão Nobre. Não poderiam deixar de estar, porque a narrativa oficial também faz parte da história.

No Salão Nobre encontramos a famosa tela de Pedro Américo (pintada em Florença, sob encomenda de d. Pedro 2º), “Independência ou Morte”. Ele inventou uma cena de ficção que ocupa até hoje o imaginário da população como se fosse o espetáculo da independência.

Dom Pedro 1º aparece em traje de gala, quando estava com roupa de tropeiro. Grandioso sobre um majestoso cavalo, com a espada na mão, quando estava em uma mula e debilitado com uma diarreia. E o povo assiste à cena marginalmente, como mero espectador.

A imagem, que vale mais que mil palavras, ganhou um simbolismo que atravessa o país em livros escolares, propagandas e comemorações oficiais. A obra, revivendo o evento do Ipiranga, serviu para os governos autoritários instrumentalizarem a data.

Getúlio, em 1934, transformou o 7 de Setembro em “Dia da Pátria”. O marechal Dutra decretou feriado nacional. O presidente Médici, na ditadura militar, aproveitou o sesquicentenário, em 1972, para proclamar sua vitória sobre os opositores no “Brasil, ame ou deixe-o”. E agora Bolsonaro quer utilizá-lo para ameaçar a democracia.

Felizmente, o museu vai além dessa “independência”. Com a ampliação do espaço expositivo (de três para doze espaços expositivos), o acervo de 450 mil peças pode começar a ser conhecido pelo grande público. E ele revela a diversidade de visões sobre a história do Brasil e de São Paulo.

Em múltiplas perspectivas, podemos ver os instrumentos de trabalho artesanal do seu povo, o mobiliário e os utensílios das suas casas, os brinquedos das crianças. Depoimentos de personagens invisíveis aparecem em multimídia, como dona Rigoleta, filha de um escravo que “veio vendido lá do Norte no tempo do cativeiro” e que “desde os oito anos trabalhou em casa de família”.

Diferentes narrativas sobre o Brasil, reveladas pelos textos, áudios e depoimentos mostram o Brasil real, do extermínio dos indígenas, da escravidão, do trabalho doméstico semi-escravizado e das lutas libertárias que foram apagadas. A relação entre os portugueses e os indígenas é problematizada nos títulos: “Aliança ou conflito”; “Do traçado à disputa”.

A sala “Os agentes em conflito” mostra as ações dos portugueses na destruição das aldeias dos povos indígenas e os objetos de pedra relacionados à imposição do trabalho forçado e à catequese católica. Um texto avisa: “você encontrará vídeos com diferentes pontos de vista sobre a colonização”.

Ao final, a versão oficial que transformou o 7 de Setembro em marco da independência estará contraposta por outras narrativas e pela variedade de aspectos da vida e do povo brasileiro que estão revelados.

O excelente projeto de restauro, adaptação e ampliação do edifício realizado pelo escritório H+F Arquitetos mereceria um artigo específico. Os arquitetos interferiram minimamente na volumetria do edifício, respeitando sua implantação.

Ainda assim, para atender todas as necessidades de um museu contemporâneo, a área útil foi dobrada com a ocupação do subsolo, que fica no mesmo plano do jardim Francês e de suas fontes, que acabam conectadas diretamente ao museu através de uma belíssima esplanada de acesso.

Sem a persistência e dedicação dos docentes do Museu Paulista, Vania Carneiro de Carvalho, Paulo Garcez Marins, Solange Ferraz de Lima, Maria Aparecida Borrego e Jorge Pimentel Cintra, que trabalham há mais de uma década para construir uma estratégia capaz de dar novas feições ao espaço, nada disso teria sido possível.

Em 2019, quando Doria assumiu, estava tudo pronto: concepção, programa, projeto e processo de captação de recursos através da Lei Rouanet. A bola estava na marca do pênalti, e com isenção fiscal ele ajudou a captar patrocínios do setor privado que, de fato, são recursos públicos federais.

O Estado entrou com apenas 10% dos R$ 238 milhões do custo da obra, e a prefeitura nem mesmo restaurou o jardim fronteiriço, que seria sua obrigação.

O mérito do resultado obtido é da USP e seria injusto não citar ainda as professoras da FAU USP Sheila Orstein, diretora em 2013, que enfrentou até o governador para interditar o prédio (evitando uma tragédia como a do incêndio do Museu Nacional), e Rosaria Ono, atual diretora, central para viabilizar a gestão e a qualidade da obra.

nota

NE – Publicação original do artigo: BONDUKI, Nabil. Quem for procurar a Independência no Museu do Ipiranga vai encontrar o Brasil. Folha de S.Paulo, São Paulo, 5 set. 2022.

sobre o autor

Nabil Bonduki é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

 

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