Há uma premência, mesmo urgência, em se pensar e agir em prol da recuperação urbana do centro de São Paulo, sobre a qual estamos todos de acordo. Mas termina ai mesmo o consenso: na ânsia de agir acabam sendo promovidas atitudes que resultam ser inadequadas, inconvenientes e desnecessárias – ou, boas intenções nem sempre fazem boas obras. Principalmente quando tudo continua a ser gerido, na coisa pública, como se ela privativa fosse daqueles que momentaneamente detém o poder: discricionariamente, sem debate, sem dar satisfações, sem admitir seja importante ouvir opiniões alheias exceto para corroborar-se a si próprio. Muitas e variadas situações se podem identificar, nesta sofrida cidade de São Paulo, e que se adequam ao acima dito. Não pretendo discorrer sobre todas, apenas sobre uma delas.
Em busca de uma sede digna e adequada para a OSESP – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – promoveu-se, por iniciativa do Governo do Estado, o estudo de vários ambientes existentes para se tentar verificar se haveria algum que se mostrasse adequado à sua instalação. Entre as possibilidades aventadas chegou-se a examinar também o "Concourse" da Estação Júlio Prestes - apenas para verificar que não ali mesmo, mas sim no edifício dos escritórios da Sorocabana e no inacabado pátio destinado ao inacabado Grande Hall de espera de sua Estação é onde caberia, perfeitamente, uma adequada sala de concertos, seus espaços de espera e circulação, aproveitando-se os andares superiores para espaços administrativos e de uso interno da OSESP. Nasceu assim a Sala São Paulo de Concertos. Me eximo de dar mais detalhes desse projeto e obra e me permito sugerir aos possíveis interessados em aprofundar o tema a leitura, dentre a bibliografia existente, do livro que junto com Anita Regina Di Marco organizamos sobre o tema, e onde exploramos bastamente o assunto, sobre variados ângulos de abordagem (1).
O tema de debate, aqui, porém, é outro. Parece que ficou pairando no ar a idéia de se usar o espaço do "Concourse" da Estação Júlio Prestes para algum fim cultural; e essa idéia gerou conseqüências, ao ser ali recentemente instalado um espaço cênico para a montagem dos "Os Lusíadas" transformado em peça teatral. Suponho que a intenção foi boa: mas verifico que os resultados arquitetônicos e urbanos foram funestos.
Em primeiro lugar: o que é um "Concourse"? Trata-se do espaço de acesso onde concorrem todas as pessoas que acedem, neste caso, à estação ferroviária; lugar de inquietação e cruzamento, de chegada e partida, de passagem. Quando a estação se prestava a longas esperas de trens viajeiros, e não à correria dos trens de subúrbio, haviam outros ambientes para o estar mais demorado – perdida sua necessidade, os mesmos se transformaram na Sala São Paulo de Concertos e suas dependências.
Mas o "Concourse" jamais havia perdido seu uso original, visto que a Estação Júlio Prestes segue existindo, até prova em contrário; ali as pessoas tomam o trem, por ali entram (ou entravam) e saem (ou saíam). Trata-se de um espaço público: amplo, com pé direito alto, com materiais de acabamento nobres, adequado à sua dignidade de coisa cidadã, ornamentado por belos lustres e por interessantes vitrais. Dali se avista (ou se avistava) a Sala São Paulo, pela transparência do vidro que separa ambos ambientes; dali se acede (ou se acedia) à gare dos trens. Possivelmente os usuários mal se apercebessem, na sua pressa, da beleza comedidamente grandiosa daquele espaço, mas certamente dela usufruíam, naturalmente. O "Concourse" mantinha seu uso original, bem e adequadamente; o projeto da Sala São Paulo compreendeu o quanto essa proximidade com o transporte devia ser devidamente valorizada, e ressaltou, pela transparência, a continuidade visual daquele que é, de fato, apenas um único conjunto edificado: o Complexo Júlio Prestes.
Entretanto, ocorreu à Secretaria Estadual de Cultura que não bastava que esse digno espaço fosse de uso de todos, e assim, providenciou para que ele fosse fechado para uso de alguns. Deu-lhe um novo uso, "cultural". Para o lado da Sala São Paulo foi providenciada uma opacidade negra; para o lado da gare, bastou-lhe a opacidade avermelhada das simplórias tábuas de madeira usualmente empregadas na fatura de fôrmas de concreto. A óbvia diferença na dignidade dos acabamentos diz muito sobre as intenções e sobre as mentalidades que providenciaram esse fechamento, e o faz de maneira cruel. O "Concourse" deixou de sê-lo – afinal, para que querem as gentes que apressadas por ali passavam, usufruir de espaço tão belo? Que lhes baste, pois, uma entradinha lateral… Destinê-mo-lo, isso sim, a outras gentes mais gradas, a outro uso mais "importante"… Terá sido essa a idéia, não dita, mas talvez terrivelmente presente, a presidir essa transformação? Digamos que não, que estamos a imaginar coisas. Estaremos?
Por outro lado, se tal transformação fizesse perder o uso original, mas agregasse importante valor ao conjunto edificado, jamais me abalaria a escrever estas linhas. Não perfilho o rol dos que crêem que se deva manter o patrimônio edificado intacto, qual se fôra objeto estático e imutável; a meu ver pode-se e deve-se dispor de edifícios de valor patrimonial e histórico com certa flexibilidade e criatividade, sempre que isso seja feito com respeito e inteligência. Evidentemente, variarão as opiniões sobre o que pode ou não ser feito em cada caso concreto; mas, se assim é, ou melhor é debater aberta, condigna e civilizadamente, as variadas posições possíveis. É o que parece convir numa sociedade que se quer democrática; e nem por as intenções serem boas, não merecem que examinemos mais detidamente seus frutos – e como se sabe, é por eles que efetivamente se avaliam a qualidade das intenções.
No caso do fechamento do "Concourse" da Estação Júlio Prestes, pergunta-se: que valor foi agregado ao conjunto, que justificasse a perda do uso original? Não vejo nenhum. Cortou-se arbitrariamente o entendimento do complexo como uma unidade – ainda mantido, mesmo que simbolicamente, com a instalação da Sala São Paulo, que cuidou de não isolar-se, mas abrir-se, transparentemente, à essa percepção. Os fechamentos são grosseiros e deselegantes. O acesso só está minimamente sinalizado, e apenas pelos "fundos", pois pode-se considerar a frente urbana como a Praça, e apenas se acede ao novo "espaço cultural" pelo estacionamento posterior. E o que sucede de interessante ali dentro? Uma peça teatral. Ora muito bem, mas para isso há outros e melhores sítios por esta cidade.
Há planos para futuramente desativar a atividade ferroviária da Estação Júlio Prestes. Sem entrar nos méritos técnicos dessa decisão, se e quando ela vir a concretizar-se de fato, obviamente então se dará outro destino à gare. Mas mesmo nesse caso, terá que ser compreendido que o "Concourse" seguirá sendo um espaço preferencialmente público, aberto, de acesso e conexão entre a Sala São Paulo e o que lhe esteja adjacente, seja estação ferroviária ou outra atividade qualquer. E, em qualquer hipótese, tudo deverá ser feito com ponderação, planejamento, desígnio e projeto; com autoria e responsabilidade; com senso crítico e respeito efetivo ao patrimônio arquitetônico – sem improvisos, sem atabalhoamentos. Mas, por enquanto, o uso ferroviário prossegue existindo; por que então fazê-lo perder, desnecessariamente, a dignidade?
A cidade, seu centro, precisa ser revitalizada: estamos todos de acordo nisso. Mas é preciso, como em tudo na vida, ter bom senso. O Complexo Júlio Prestes já foi palco de uma ausência: a não viabilização do projeto de sua Praça que foi elaborado pelo Una Arquitetos – uma solução de grande simplicidade e beleza, além de pertinente sensibilidade para o que possa ser um espaço público central. Agora, vê-se palco de uma presença dispensável, inadequadamente alojada no "Concourse". A única esperança que nos resta é que esta última intervenção, inoportuna, opaca, desinteressante, equivocada, e pior que tudo, desnecessária, seja provisória e breve. E não deixe traços.
notas
1
Sala São Paulo de Concertos / Revitalização da Estação Júlio Prestes; o projeto arquitetônico. Di Marco, Anita Regina e Zein, Ruth Verde. São Paulo, Altermarket, 2000.
sobre o autor
Ruth Verde Zein é arquiteta, crítica e professora da FAU Mackenzie.