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my city ISSN 1982-9922

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ZEIN, Ruth Verde. Opacidade versus cidade. Estação Julio Prestes em São Paulo. Minha Cidade, São Paulo, ano 01, n. 009.04, Vitruvius, abr. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/01.009/2090>.


Estação Júlio Prestes (Sala São Paulo de Concertos) e a entrada do Concourse, à esquerda


Foyer da Sala São Paulo de Concertos, com vista para plataformas de embarque

Foyer da Sala São Paulo de Concertos

Croquis para passarelas no Foyer da Sala São Paulo de Concertos, arquiteto Nelson Dupré

 

Há uma premência, mesmo urgência, em se pensar e agir em prol da recuperação urbana do centro de São Paulo, sobre a qual estamos todos de acordo. Mas termina ai mesmo o consenso: na ânsia de agir acabam sendo promovidas atitudes que resultam ser inadequadas, inconvenientes e desnecessárias – ou, boas intenções nem sempre fazem boas obras. Principalmente quando tudo continua a ser gerido, na coisa pública, como se ela privativa fosse daqueles que momentaneamente detém o poder: discricionariamente, sem debate, sem dar satisfações, sem admitir seja importante ouvir opiniões alheias exceto para corroborar-se a si próprio. Muitas e variadas situações se podem identificar, nesta sofrida cidade de São Paulo, e que se adequam ao acima dito. Não pretendo discorrer sobre todas, apenas sobre uma delas.

Em busca de uma sede digna e adequada para a OSESP – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – promoveu-se, por iniciativa do Governo do Estado, o estudo de vários ambientes existentes para se tentar verificar se haveria algum que se mostrasse adequado à sua instalação. Entre as possibilidades aventadas chegou-se a examinar também o "Concourse" da Estação Júlio Prestes - apenas para verificar que não ali mesmo, mas sim no edifício dos escritórios da Sorocabana e no inacabado pátio destinado ao inacabado Grande Hall de espera de sua Estação é onde caberia, perfeitamente, uma adequada sala de concertos, seus espaços de espera e circulação, aproveitando-se os andares superiores para espaços administrativos e de uso interno da OSESP. Nasceu assim a Sala São Paulo de Concertos. Me eximo de dar mais detalhes desse projeto e obra e me permito sugerir aos possíveis interessados em aprofundar o tema a leitura, dentre a bibliografia existente, do livro que junto com Anita Regina Di Marco organizamos sobre o tema, e onde exploramos bastamente o assunto, sobre variados ângulos de abordagem (1).

O tema de debate, aqui, porém, é outro. Parece que ficou pairando no ar a idéia de se usar o espaço do "Concourse" da Estação Júlio Prestes para algum fim cultural; e essa idéia gerou conseqüências, ao ser ali recentemente instalado um espaço cênico para a montagem dos "Os Lusíadas" transformado em peça teatral. Suponho que a intenção foi boa: mas verifico que os resultados arquitetônicos e urbanos foram funestos.

Em primeiro lugar: o que é um "Concourse"? Trata-se do espaço de acesso onde concorrem todas as pessoas que acedem, neste caso, à estação ferroviária; lugar de inquietação e cruzamento, de chegada e partida, de passagem. Quando a estação se prestava a longas esperas de trens viajeiros, e não à correria dos trens de subúrbio, haviam outros ambientes para o estar mais demorado – perdida sua necessidade, os mesmos se transformaram na Sala São Paulo de Concertos e suas dependências.

Mas o "Concourse" jamais havia perdido seu uso original, visto que a Estação Júlio Prestes segue existindo, até prova em contrário; ali as pessoas tomam o trem, por ali entram (ou entravam) e saem (ou saíam). Trata-se de um espaço público: amplo, com pé direito alto, com materiais de acabamento nobres, adequado à sua dignidade de coisa cidadã, ornamentado por belos lustres e por interessantes vitrais. Dali se avista (ou se avistava) a Sala São Paulo, pela transparência do vidro que separa ambos ambientes; dali se acede (ou se acedia) à gare dos trens. Possivelmente os usuários mal se apercebessem, na sua pressa, da beleza comedidamente grandiosa daquele espaço, mas certamente dela usufruíam, naturalmente. O "Concourse" mantinha seu uso original, bem e adequadamente; o projeto da Sala São Paulo compreendeu o quanto essa proximidade com o transporte devia ser devidamente valorizada, e ressaltou, pela transparência, a continuidade visual daquele que é, de fato, apenas um único conjunto edificado: o Complexo Júlio Prestes.

Entretanto, ocorreu à Secretaria Estadual de Cultura que não bastava que esse digno espaço fosse de uso de todos, e assim, providenciou para que ele fosse fechado para uso de alguns. Deu-lhe um novo uso, "cultural". Para o lado da Sala São Paulo foi providenciada uma opacidade negra; para o lado da gare, bastou-lhe a opacidade avermelhada das simplórias tábuas de madeira usualmente empregadas na fatura de fôrmas de concreto. A óbvia diferença na dignidade dos acabamentos diz muito sobre as intenções e sobre as mentalidades que providenciaram esse fechamento, e o faz de maneira cruel. O "Concourse" deixou de sê-lo – afinal, para que querem as gentes que apressadas por ali passavam, usufruir de espaço tão belo? Que lhes baste, pois, uma entradinha lateral… Destinê-mo-lo, isso sim, a outras gentes mais gradas, a outro uso mais "importante"… Terá sido essa a idéia, não dita, mas talvez terrivelmente presente, a presidir essa transformação? Digamos que não, que estamos a imaginar coisas. Estaremos?

Por outro lado, se tal transformação fizesse perder o uso original, mas agregasse importante valor ao conjunto edificado, jamais me abalaria a escrever estas linhas. Não perfilho o rol dos que crêem que se deva manter o patrimônio edificado intacto, qual se fôra objeto estático e imutável; a meu ver pode-se e deve-se dispor de edifícios de valor patrimonial e histórico com certa flexibilidade e criatividade, sempre que isso seja feito com respeito e inteligência. Evidentemente, variarão as opiniões sobre o que pode ou não ser feito em cada caso concreto; mas, se assim é, ou melhor é debater aberta, condigna e civilizadamente, as variadas posições possíveis. É o que parece convir numa sociedade que se quer democrática; e nem por as intenções serem boas, não merecem que examinemos mais detidamente seus frutos – e como se sabe, é por eles que efetivamente se avaliam a qualidade das intenções.

No caso do fechamento do "Concourse" da Estação Júlio Prestes, pergunta-se: que valor foi agregado ao conjunto, que justificasse a perda do uso original? Não vejo nenhum. Cortou-se arbitrariamente o entendimento do complexo como uma unidade – ainda mantido, mesmo que simbolicamente, com a instalação da Sala São Paulo, que cuidou de não isolar-se, mas abrir-se, transparentemente, à essa percepção. Os fechamentos são grosseiros e deselegantes. O acesso só está minimamente sinalizado, e apenas pelos "fundos", pois pode-se considerar a frente urbana como a Praça, e apenas se acede ao novo "espaço cultural" pelo estacionamento posterior. E o que sucede de interessante ali dentro? Uma peça teatral. Ora muito bem, mas para isso há outros e melhores sítios por esta cidade.

Há planos para futuramente desativar a atividade ferroviária da Estação Júlio Prestes. Sem entrar nos méritos técnicos dessa decisão, se e quando ela vir a concretizar-se de fato, obviamente então se dará outro destino à gare. Mas mesmo nesse caso, terá que ser compreendido que o "Concourse" seguirá sendo um espaço preferencialmente público, aberto, de acesso e conexão entre a Sala São Paulo e o que lhe esteja adjacente, seja estação ferroviária ou outra atividade qualquer. E, em qualquer hipótese, tudo deverá ser feito com ponderação, planejamento, desígnio e projeto; com autoria e responsabilidade; com senso crítico e respeito efetivo ao patrimônio arquitetônico – sem improvisos, sem atabalhoamentos. Mas, por enquanto, o uso ferroviário prossegue existindo; por que então fazê-lo perder, desnecessariamente, a dignidade?

A cidade, seu centro, precisa ser revitalizada: estamos todos de acordo nisso. Mas é preciso, como em tudo na vida, ter bom senso. O Complexo Júlio Prestes já foi palco de uma ausência: a não viabilização do projeto de sua Praça que foi elaborado pelo Una Arquitetos – uma solução de grande simplicidade e beleza, além de pertinente sensibilidade para o que possa ser um espaço público central. Agora, vê-se palco de uma presença dispensável, inadequadamente alojada no "Concourse". A única esperança que nos resta é que esta última intervenção, inoportuna, opaca, desinteressante, equivocada, e pior que tudo, desnecessária, seja provisória e breve. E não deixe traços.

notas

1
Sala São Paulo de Concertos / Revitalização da Estação Júlio Prestes; o projeto arquitetônico. Di Marco, Anita Regina e Zein, Ruth Verde. São Paulo, Altermarket, 2000.

sobre o autor

Ruth Verde Zein é arquiteta, crítica e professora da FAU Mackenzie.

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