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my city ISSN 1982-9922

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MORAIS, Sergio. Itacuruçá: uma história no tempo da estação de trem. Minha Cidade, São Paulo, ano 01, n. 012.01, Vitruvius, jul. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/01.012/2086>.


Estação de Itacuruçá


Estação de Itacuruçá

Estação de Itacuruçá

Estação de Itacuruçá

Estação de Itacuruçá

Estação de Itacuruçá

Estação de Itacuruçá

Estação de Itacuruçá

 

"Narraríamos toda nossa vida se fizéssemos a narrativa de todas as portas que já fechamos, que abrimos, de todas as portas que gostaríamos de abrir."(Gaston Bachelard, A Poética do Espaço)

"A plataforma desta estação é a vida desse meu lugar" (Milton Nascimento e Fernando Brandt, Encontros e Despedidas) 

Antes era apenas o testemunho de um espaço dando para o mar. Era um namoro constante entre a mata e o mar. Ou seria mais alguma coisa? Com certeza foram surgindo outras coisas, interferindo nessa harmonia, criando obstáculos e transformando o lugar. Quem sabe trazendo mais vida, mais enredo? A vida que vinha do mar, a vida que vinha da terra, a vida que vinha do ar, agora contava com um novo componente: o homem. A energia vigente emanada pelas árvores, pelo vento, pela maresia, pelo cheiro, pela vida animal, pela vida selvagem, alterava-se agora pela nova presença. O território bruto de pura beleza - beleza paradisíaca e inconsciente - se rendeu aos caprichos da civilização. Mas os espaços têm personalidade própria. Podem influir em uma história, podem formar a própria história.

Aos poucos vieram as transformações, interferindo consideravelmente naquela harmonia natural. Talvez, criando outras harmonias, cheias de ansiedades. Ansiedades vindas de conhecimentos e da necessidade do novo. Uma evolução natural provocada pela curiosidade permanente.

Surge então uma igreja e uma praça. Em torno da praça surge um povoado, casas simples que vão tomando forma, forma do tempo. Tempo lento, que se pretende eterno. Começa um novo ciclo. É um recomeço ou o começo do começo? Homens e mulheres compõem o cotidiano e constróem vidas, reciclando mitos, transformando a realidade. Destroem também, em nome do progresso. Destroem as matas para diminuir as distâncias, para construírem suas casas e seus instrumentos, poluem o mar e os rios. Inconscientemente, criam seus próprios rituais.

A vida se acelera por necessidade simples e pura de evoluir. Os espaços passam a formar outro sentido, formando outro tipo de organização, obedecendo a outra lógica.Entre o mar e o verde, surgem novos obstáculos construídos pelo homem, como se este fosse um grande inimigo, como se ainda não admitisse tão harmonioso convívio, ou fugisse por completo ao seu conhecimento e entendimento.

O homem constrói por necessidade de sobrevivência e procura fazer com que o abrigo reflita seus anseios e o perpetue. São os testemunhos de sua existência. Uma tentativa de se superar. As construções têm vida, contam histórias, guardam segredos e são cúmplices.

Quantas aflições não estão impregnadas nas grossas paredes da igreja, que parecem ter sido edificadas desta forma, para suportarem o peso da dor humana? As portas, mais que tudo, devem ter testemunhado corações aflitos entrarem angustiados e saírem, na mesma proporção aliviados, por terem compartilhado suas dores, revertidas na esperança da oração.

Concorrendo com a igreja, como espaço depositário de tanta emoção, havia apenas a estação de trem.

A estação foi sempre um lugar de contato com o mundo. Seus espaços não se limitavam às paredes. Eles tinham a extensão que uma mente pode alcançar e que o trem pode levar. Não havia limites. O trem levava e trazia. A estação era sempre o elo de ligação. Um espaço de triagem, de ruptura.

Ela, como um organismo vivo, pulsava sempre com os desejos, devaneios e fantasias dos homens. Quanto de esperança, expectativa e decepção não guardava em seus espaços? A música do vapor do trem embalava muitos sonhos e, cada canto de seus espaços vibrava às chegadas e partidas, fundindo-se com os sentimentos dos homens. A música do vapor do trem se confundia com a música dos homens. Formavam um coral afinadíssimo, com mil vozes produzidas pelo engenho, complementando-se pelo instrumento humano.

Mas como podia um espaço tão pequeno abrigar tanta energia e, ainda, conservá-la, como se armazenasse cada momento lá vivido? Afinal a velha estação consistia em quatro pequenos cômodos e um saguão, igualmente pequeno, onde se compravam os bilhetes e por onde passavam os passageiros que iam e vinham. Na realidade, este arquivo de várias memórias era resgatado pelo sentimento que fluía no momento exato, em que cada personagem se conectava. Eram as lembranças que se impunham.

"A plataforma desta estação é a vida desse meu lugar,
é a vida desse meu lugar.
Tem gente que vem e quer voltar,
tem gente que vai e quer ficar..." (Milton Nascimento e Fernando Brandt, Encontros e Despedidas)

Eram dois trens por dia. Dois trens que chegavam. Dois trens que partiam. Traziam mercadorias, muita novidade, traziam pessoas que preenchiam lacunas afetivas. Levavam o estudante para a escola mais próxima, o trabalhador para a cidade grande. Este era o movimento do dia a dia.

No fim de semana, outras as expectativas. Cumpriam outro ritual. A espera na estação era o melhor programa. Quem será que vai chegar? O pretenso namorado? O amigo ou o parente que vinha para o fim de semana na praia? O desconhecido que gerava expectativas?

Dizem que se namorava muito naquele lugar. Era o melhor cenário. Ali, alguns casamentos tiveram início, mas a plataforma testemunhou também, veladamente, algumas traições.

Nas tardes de sexta-feira, a estação era musical. Jovens reunidos celebravam a espera ao som do violão. Alguns até arriscavam uma dança. A vida acontecia exatamente ali, com muita vibração. Aquela arquitetura estranha, que parecia ali estar para cenário de alguma batalha, devido às suas características militares, funcionava como o lar de todos. Os mais velhos vinham para o cafezinho no botequim mais próximo, mas não perdiam de vista a "fortaleza". Ela era o próprio "lugar" e não apenas um lugar na paisagem. A cidade e a estação cresceram juntas formando um complexo único, orgânico, contando histórias e o tempo. Era um espaço democrático, onde as diferenças não contavam. Era uma extensão da alma e do espírito de cada um.

Mas a estação também tinha o seu lado enigmático, só revelado depois de muita observação. Para enxergar sua complexa simplicidade era necessário ouvir suas paredes. Ouvir com todos os sentidos. Assim era possível captar os vestígios de vida vivida intensamente, que a cal não conseguiu apagar, e que a tornava tão especial. Era necessário ouvir os fantasmas reais que habitavam o lugar, para se entender o sentido e a atração que exercia.

Igual ao homem, a estação também sofreu a ação do tempo e acompanhou solidária o envelhecimento da população. O velho trem a vapor se foi. Em seu lugar, veio um outro que produzia o som do progresso e suas cores vibravam, em contraste com o verde das matas locais. Este, parecia que tinha mais pressa e passava ,agora, quase indiferente, preocupado com a riqueza mineral que transportava para o porto distante. O trem parecia ter se esquecido dos homens daquele lugar.

A estação aos poucos foi se transformando. O povo ainda vinha, mas a música era outra, dissonante de suas expectativas. O movimento agora era contrário, em sentido oposto aos sentimentos. As paredes foram escurecendo, como uma espécie de luto. Os espaços foram se fechando, não permitindo mais nenhuma confidência. As portas permaneciam cerradas. O mundo não chegava mais através da plataforma. A estação, tal um fantasma, devido ao crescente abandono, mantinha sua imponência, segura do que já foi um dia. A estação finalmente se transformara em fortaleza em defesa de si mesma

A população, acostumada àquela presença cinzenta, mal percebia a sua importância. Os mais velhos a olhavam com olhar de indignação, como se aquela visão os agredisse e negasse o seu passado. Onde estavam os sonhos e devaneios ali partilhados? Hoje, apenas um testemunho velado e sujo. Quanto incômodo!

O espaço deteriorado passou a ocultar e atrair outros movimentos, ferindo gravemente o seu passado digno. Agora era um espaço de dejetos, de vícios. As paredes mantinham então registros impessoais que, misturados ao cinza do limo que a cobria parcialmente, formavam um grande painel de decadência.

Mas a estação ainda respirava, tinha vida em potencial, tinha a energia impregnada das memórias. Aos mais sensíveis era possível vislumbrar outro futuro clamando, daquela massa cinza. Era preciso resgatá-la, trazendo-a de volta ao convívio, independentemente do trem que há muito já se fora.

O movimento inverso então começou. Podia-se perceber que alguma coisa se modificava a cada dia. Cada elemento recuperado lentamente, devolvia à velha "fortaleza" seus dias de glória. Seus elementos forneciam as informações necessárias para uma recuperação precisa. Nas diversas camadas lia-se a sua história que seria agora fixada para a posteridade. O que falam os espaços? Deles, o que interpretamos? É uma experiência pessoal e intransferível.

Isto tudo gerava uma grande expectativa. O lugar desprovido de novidades vibrava com a nova possibilidade. Como seria a reinterpretação do espaço? Que sentimentos geraria a sua reapropriação? Seria possível reviver um pouco da vibração anterior? As emoções impregnadas na memória daquelas paredes seriam recuperáveis? Seria possível resgatar a alma do lugar?

O novo dialogo só se tornaria possível a partir da troca, da vivência mútua, partilhada pelo prédio e pelo usuário, que passaria a descobrir, recuperar e transformar seus valores, atribuindo-lhe importância pessoal, de acordo com a experiência vivida.

O espaço, antes carregado da expectativa que o trem proporcionava em suas idas e vindas, agora se tornara mais contemplativo. Espaço de cultura, onde a memória de gerações, com suas visões pessoais e afetivas, abrem novas possibilidades de interpretação, transformando-o em espaço vital. É o novo sentido do lugar. Ele evolui em sua história, cria novos laços e se irradia para fora, integrando-se à paisagem, à terra e à natureza.

A estação está salva. Já há quem transmita a sua história formando uma corrente interminável de memória. Ela torna-se um importante dado na definição de identidade do local. Sua simbologia alimentará a memória do lugar através de gerações.

sobre o autor

Sergio Santos Morais é arquiteto formado pela FAU-UFRJ. Atualmente está cursando o mestrado em arquitetura no PROARQ-UFRJ na área de Historiografia e Preservação do Patrimônio Cultural. Como funcionário da Rede Ferroviária Federal executou diversos trabalhos de preservação na empresa. No IAB/RJ coordena a Comissão de Patrimônio e representa a instituição no Conselho Estadual de Tombamento.

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