Historicamente, a invenção das cidades é considerada uma conquista inevitável, já que elas podem ser vistas como gigantescos objetos tecnológicos que protegem o homem da natureza e que permitem a ele usufruir daquilo que ele não encontra no campo e tampouco na própria natureza. Urbano, nome próprio, significa também cortês, civilizado, refinado, o que denuncia o sentido inicial do verbo urbanizar. Por outro lado, ninguém pode negar que o crescimento desordenado das cidades deforma a existência humana ao elevar a níveis absurdos a brutalidade da vida cotidiana. Como todos nós sabemos, o crescimento urbano vem aumentando a ritmos galopantes em países em desenvolvimento, e hoje as cidades são o local onde moram milhões de pessoas agrupadas por motivos pura e friamente econômicos. O planejamento urbano, esse agente messiânico que em princípio cuidaria de solucionar a catástrofe que pode ser morar numa cidade, na maior parte das vezes é impotente e/ou está associado a interesses econômicos, à engenharia de tráfego e à implantação de conjuntos habitacionais; raramente conseguindo atender aos verdadeiros anseios dos habitantes.
Das críticas sobre esse desvio do conceito humanista de urbano, talvez nenhuma seja tão excêntrica e provocativa quanto a do escritor Georges Bataille. A cidade, de acordo com Bataille, é menos o local onde as riquezas são produzidas e multiplicadas, e mais o palco onde a energia deve ser libertinamente gasta e expurgada. Extrapolando esta idéia, o desperdício diria mais que a produção, os eventos seriam mais importantes que a própria substância das cidades, e tudo aquilo que foge ao alcance de modelos racionais seria a principal razão das pessoas morarem nas cidades.
Essa destruição revolucionária do tempo racional seria também a maior revolta do grupo de intelectuais, artistas e arquitetos dito Situacionista, que apareceu na Europa do final dos anos cinqüenta. Inimigos da mesmice, dos enormes conjuntos habitacionais do pós-guerra e da arquitetura pomposa dos monumentos, os situacionistas pregavam valores como a diversidade, a liberdade e mesmo a busca por um modelo de urbanismo que proveria ao homem ferramentas para que ele atingisse menos a frustração e mais a realização. Os problemas do espaço urbano eram combatidos com o tempo, ou seja, eventos e performances na cidade questionavam as condições de vida opressivas impostas pelo espaço definido por planos municipais. Assim, os situacionistas procuravam, ao inventar ‘situações’ na cidade, o desenvolvimento de uma ação coletiva que incentivaria o uso livre do tempo e a transformação do ambiente urbano.
As táticas, slogans e manifestações públicas do grupo causaram rebuliço e influenciaram todos os intelectuais de maio de 1968 mas, por serem muito radicais, pouco mudaram as sempre retrógradas disciplinas da arquitetura e do urbanismo. Mas foi partindo daquele anti-urbanismo que a idéia de vazio ocorreu no livro Em Obras: História do Vazio em Belo Horizonte (1). Como uma resposta radical à condição atual de Belo Horizonte e, por extensão, à maioria das grandes cidades em desenvolvimento, os vazios foram aqui considerados como o principal elemento da cidade – e não sua arquitetura ou seus monumentos.
Belo Horizonte foi inaugurada em 1897 (quando era puro vazio) e se tornou hoje apenas mais uma cidade desplanejada (pura aglomeração de cheios). A poesia das largas avenidas vazias, a perspectiva da avenida Afonso Pena mirando a Serra do Curral, os tempos dos poetas das ruas desertas – tudo isso obviamente foi soterrado depois de cem anos de inoperância e absoluta falta de visão estratégica. Sobraram então os vazios pouco nobres da periferia, os campos de futebol à espera de empreendimentos, as lacunas urbanas ao lado dos viadutos e das pontes, e a cidade prosaica que todos os dias passa por nossa frente.Foi uma certa consideração pela potencial ‘teatralidade’ desses vazios como espaços para novas atividades que nos moveu a procurar lugares residuais totalmente inexplorados e que poderiam ser investigados em instalações, intervenções urbanas e projetos arquitetônicos isolados. Como local para a peça Invento para Leonardo (2), do grupo de teatro Armatrux, sugerimos uma estrutura de concreto de um edifício qualquer no bairro Buritis. A transformação desse espaço no próprio palco do espetáculo se encaixa na idéia de reverter os espaços negativos da cidade, aproveitando-os como “espaços ativáveis”. Os prédios nas ruas daquele bairro só podem contar com quatro pavimentos, ficando sem qualquer utilização as estruturas em terreno de declive acentuado – o que forma as assim chamadas “palafitas” de concreto. Como conseqüência da rigidez da Lei de Uso e Ocupação do Solo, construções onde as palafitas têm a mesma altura ou mesmo são mais altas que o prédio que sustentam são elementos comuns naquela paisagem. A intervenção reverte esse quadro ao tirar partido desses grandes e inúteis espaços privados, que foram então transformados em palco e revelados como espaços públicos.“Invento para Leonardo” inventa uma nova relação entre o teatro e a cidade, traduzindo nos movimentos dos atores a fragmentação do espaço urbano. Em Belo Horizonte, eventos de médio ou grande porte simplesmente não têm onde acontecer por falta de espaço (vide por exemplo o caso do Carná Belô) e, portanto, a idéia de um “evento como curto-circuito” como este provoca o marasmo, mostra o óbvio escondido e diz muito sobre a situação em que estamos mergulhados. Poderíamos então concluir que o futuro de Belo Horizonte, essa jovem que apagou quase todos os traços de seu passado, esteja nos vazios de sua parte anônima? Poderíamos apostar nesse mal-estar da impossibilidade do urbanismo; nos eventos efêmeros que não conformam a cidade? Devemos aceitar essa paisagem de palafitas e favelas e condomínios e shoppings? Sim!, pois esse é o verdadeiro patrimônio que nos resta. Em 2001 – pouco depois de todos terem tentado mitificar um centenário pretensamente glorioso –, o mais sensato parece ser um outro tipo de intervenção: aquele voltado para o que não podemos ver. Aceitemos então o que nós temos sem os escapismos dos utopistas ou dos nostálgicos, sem lamentações sobre o caos urbano, sem artigos sobre a antiga cidade-jardim, sem os chiliques dos defensores do patrimônio histórico. Tudo isso nós enterramos há muito sob a camada mundana e onipresente da periferia. Hoje, capturar a força e a energia dos vazios é a estratégia para uma busca mais equilibrada entre a arquitetura (cheios) e o urbanismo (vazios), tendo em mente que o urbanismo da ecologia cinza e dos vazios deve ser tão estimulante e enigmático quanto um “crime perfeito” o é para os velhos policiadores da cidade.notas1Carlos M Teixeira: Em Obras: História do Vazio em Belo Horizonte. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 199922“Invento para Leonardo” tem direção de Andrea Caruso, coreografia do grupo Armatrux e Adriana Banana, cenário e projeto arquitetônico de Louise Marie Ganz e Carlos M Teixeira.[artigo originalmente publicado no Jornal Estado de Minas]sobre o autorCarlos M Teixeira é arquiteto em Belo Horizonte e autor do livro "Em obras: história do vazio em Belo Horizonte". Atualmente participa do curso de "Paisagismo Urbano" na Architectural Association em Londres com a Bolsa Virtuose do Mnistério da da Cultura brasileiro.