A capital federal tem recebido denominações as mais diversas como "Capital da Esperança", "Capital do Terceiro Milênio", "Patrimônio Cultural da Humanidade", "Cidade Aérea", "Ilha da Fantasia", "Capital da Corrupção" e que tais. O contexto em que estes epítetos foram e são utilizados liga-se à postura "ufanista", de um lado, ou "crítica-cínica" dos detratores, de outro. Há também, sobretudo no meio acadêmico, os "crítico-construtivos", como veremos abaixo. Para os ufanistas, Brasília se constitui num "marco da epopéia da interiorização do desenvolvimento nacional". Por isso, a capital é da "esperança" e do "terceiro milênio". Nessa visão, só interessa enaltecer os atos que a construíram, ao mesmo tempo em que se entronizam seus idealizadores, com JK, Israel Pinheiro, Lúcio Costa, Oscar Niemayer, Bernardo Sayão e outros. Já para os crítico-cínicos, a cidade é emblemática pela corrupção e por se constituir em "ilha da fantasia". Em ambos os casos, essas idéias atravessaram as quatro décadas, desconhecendo que a cidade mudou, ampliou-se até mesmo o conceito do modelo urbano que a concebeu. Ambos desconhecem, sobretudo, que Brasília é o repositório da cultura brasileira, sendo uma cidade assemelhada a qualquer das grandes cidades brasileiras com problemáticas metropolitanas similares.
Essas posturas são, evidentemente, ideológicas. Muitos dos críticos contumazes estão ligados a correntes antimudancistas que remontam aos 50, quando no Congresso Nacional (então sediado no Rio), se discursava ora a favor, ora contra a transferência da capital do Rio para o Planalto Central. Mais recentemente, referem na grande imprensa ser a "ilha da fantasia", quando interessa denegrir os que estão no poder "distanciados da realidade" (dos grandes centros industriais do país).
Ora, passados 41 anos da inauguração do Plano Piloto de Brasília (ou 45 dos primeiros movimentos para erguer a capital), convém lembrar a essas duas correntes que a capital não apenas mudou do Rio para o atual Distrito Federal (DF). Ela mudou dos anos 60, internamente, constituindo-se num grande aglomerado, uma verdadeira metrópole, onde já não cabem os apelidos lembrados acima, pois se referem, invariavelmente, ao centro político-administrativo da capital, ou seja, o Plano Piloto de Brasília, o centro da cidade. Brasília, hoje, é mais do que o Plano Piloto: ela é formada pelo referido centro e por uma constelação de cidades (até há pouco tempo denominadas de cidades-satélites), num somatório de mais de 2 milhões de habitantes, disseminados no território do DF.
Se, de um lado, o Plano Piloto de Brasília é um núcleo elitizado, habitado por empresários enriquecidos, funcionários bem postos na hierarquia pública, entre os quais se destacam governantes, ministros, senadores, deputados, magistrados, procuradores, etc., de outro, os demais núcleos periféricos (quase duas dezenas), foram construídos como locais de moradia do operariado, seguido de uma classe média-média, média-baixa e trabalhadores braçais, funcionários empobrecidos e desempregados. Portanto, estão redondamente equivocados os crítico-cínicos (e a imprensa que os apóia) quando fazem "tabula rasa" com a malfadada "ilha da fantasia", pois, os desempregados, os trabalhadores da construção civil e tantos outros não apenas construíram a cidade como não podem desfrutar dos equipamentos urbanos do centro. Deve-se lembrar que, como nas demais capitais, a classe trabalhadora também não se beneficia dos serviços e equipamentos urbanos que servem as respectivas elites. Assim, a manter-se o apelido para a Capital, ele deve ser estendido ao Rio, a São Paulo, a Salvador e às demais cidades grandes, onde há ilhas de prosperidade, em meio a bairros pobres e favelas.
Quanto à desabonatória denominação "capital da corrupção", entenda-se como o desabafo de alguns até bem intencionados que desejam implantar a moralidade pública, em um centro urbano constituído por políticos e empresários em evidência por atos merecedores de apuração criteriosa. Mas, corruptores e corruptos migraram (e migram) sazonariamente de outros estados para se beneficiarem das facilidades proporcionadas em alguns (não todos) órgãos governamentais. Para se instalar a moralidade pública em Brasília, portanto, deve-se, em primeiro lugar pensar em moralizar empresários e políticos, que procedem de outros centros e que, aqui, extraem benefícios à sombra do poder federal.
Como geógrafo, que acompanhou a evolução urbana de Brasília, desde o fim dos anos 60, penso na cidade como um todo, erguida pela sociedade brasileira para ser a sede dos poderes federais. Na evolução do processo, a cidade, que foi pensada para se circunscrever ao Plano Piloto, extrapolou para uma constelação de cidades, algumas com avantajada população como Ceilândia (mais de 330 mil habitantes) e Taguatinga (com cerca de 240 mil). Assim, dos 600 mil habitantes pensados nos anos 50 para o Plano Piloto de Brasília, no ano 2000, se chegou a apenas 240 mil. Contudo, a pressão populacional e um forte conteúdo preservacionista, acabaram segregando aqueles sem poder aquisitivo para fixar residência ou estabelecer algum negócio no Plano Piloto. Para esses, restou a pressa dos governantes em erguer "núcleos semi-urbanizados" na periferia do centro, por vezes distanciados em mais de 40 km, mas carentes de oportunidades de trabalho.
Assim, a cidade polinucleada de hoje, constituída por mais de 2 milhões habitantes, pouco se beneficia das denominações ufanistas como "Patrimônio Cultural da Humanidade", pois este não abarca os núcleos periféricos ao Plano Piloto; nem de "Capital da Esperança", pois, alguns núcleos semi-urbanizados possuem infra-estrutura urbana precária, não se vislumbrando no horizonte qualquer possibilidade, por exemplo, de gerarem empregos para seus desvalidos moradores. Mas essa periferia do Plano Piloto não imagina sequer o significado de "ilha da fantasia", que não lhes diz respeito, pois vivem o pesadelo da falta de segurança, de déficits de bancos escolares e de professores, com hospitais superlotados e destituídos de corpo médico compatível com as respectivas demandas. O que essa população deseja é que se criem novos postos de trabalho, pois o desemprego atinge a mais de 160.000 pessoas, algo ao redor de 18% da PEA, de quase 900 mil ativos. E desejam mais: que esses lugares de trabalho não se abram apenas no Plano Piloto, hoje responsável por quase 70% dos empregos formais, mas nas respectivas cidades, na já referida constelação urbana que forma parte da grande Brasília. Para os que desejarem subsídios a propósito do quadro urbano polinucleado e das demandas de seus respectivos habitantes, inclusive em termos ambientais, recomenda-se a leitura das obras da Coleção Brasília, da Editora UnB. Nessas coletâneas abordam-se temáticas do Distrito Federal, desde 1987, contendo contribuições científicas de urbanistas, sociólogos, geógrafos, economistas, historiadores, arquitetos e antropólogos, num leque de abordagens que poucas cidades brasileiras conseguiram reunir. Eles formam o que se denominou de consciência crítica construtiva da cidade. Nelas, além das análises de campos profissionais, sempre há direcionamento para as soluções compatíveis com relação às demandas das populações envolvidas e com as possibilidades técnicas, científicas e políticas para serem postas em prática. Se levados em consideração estes estudos sepultam os argumentos de ufanistas e crítico-detratores, pois a cidade é uma síntese do Brasil e foi erguida para representar a nação. Aqui, deveriam ser cimentados os pilares de um novo ethos urbano, que somente será viável se o país inteiro se re-estruturar em termos sociais, éticos, econômicos e políticos. O futuro dirá se isso pode ser atingido.
[artigo publicado no jornal Correio Braziliense, edição de 04/maio/2001, Caderno Opinião, p 2]
sobre o autor
Aldo Paviani é Geógrafo, professor titular aposentado e pesquisador associado do Depto. de Geografia e do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais/CEAM, da UnB.