O reconhecimento do potencial urbano e urbanístico da Luz, ressaltando desde sua posição estratégica na estrutura metropolitana até a riqueza arquitetônica de suas principais edificações, parece hoje, mais do que nunca, ponto pacífico. (1) Porém a realização desse potencial tem sido paradoxalmente negada em face do quadro de deterioração física e de marginalização social que há décadas marca (de modo duro e duradouro) a paisagem e a vida do bairro. Se isto reflete a soma de equívocos (ou descasos) técnicos e políticos levados a cabo no bojo do "assimétrico" modelo ecológico da cidade, os "resultados" do processo de obsolescência (ou depredação) do importante capital fixo social representado pela Luz, não deixam dúvidas quanto ao "desperdício" (irresponsável) de uma situação urbana privilegiada. As mais recentes inciativas levadas a cabo pelo poder público, embora inquestionavelmente importantes (se não vitais) para deter o círculo vicioso da decadência, no entanto, parecem incapazes de romper a resistência ou a inércia a mudanças, necessariamente mais abrangentes e profundas. Neste marco, discutir alternativas de um projeto de tranformação urbana implica, implica rearticular conceitualmente a noção de identidade e multiplicidade, limite e escala. Para o caso da Luz, conforme argumentado em outro lugar , tal rearticulação talvez possa ser indagada através de uma "imagem espacial significativa" , construída a partir da presumida relevância e potencialidade do papel de dois "eixos" no processo de estruturação e configuração, funcionamento e transformação do bairro.
Neste sentido, como primeira observação, não é demais notar que a construção da metáfora dos "eixos" se assenta sobre um paradoxo e supõe —"positivamente"— sua superação como componente fundamental de ações de recuperação urbana . No entanto, restringir aos eixos "em-si" a possibilidade cognitiva e projetual da imagem não significaria —pela parcialidade empobrecedora— nenhum ganho. Se essa imagem constitui (ou fornece elementos para) um modelo de representação da realidade e de "exploração" das mudanças adequado e fecundo (no sentido de (pres)supor sucessivos "ajustes", "aperfeiçoamentos" e "inclusões"), avançar a perspectiva interpretativo-propositiva sugerida por ela implica reconhecer certas questões e escalas fundamentais com as quais inciativas de transformação que se queiram abrangentes, conseqüentes e duradouras não podem deixar de se medir. Ainda que aqui não caiba senão mencioná-las resumidamente, sua consideração é dado fundamental para a construção do problema. São elas:
à escala urbana
– modernização funcional e integração dos serviços ferroviários-metroviários como fator de reversão dos efeitos negativos sobre a imagem e o funcionamento de tecidos urbanos adjacentes, particularmente tendo em vista a ampliação e o reforço do papel polarizador protagonizado pela Estação da Luz;
– continuidade da "contra-rótula" em face da lógica radio-concêntrica da circulação motorizada central da cidade e dos impactos físicos e ambientais produzidos pelo trânsito de passsagem pelas ruas da Luz;
– implicações (ou "exigências") da configuração da nova geografia das relações metropolitanas, suas "referências" e sua conexão em "rede": a reconversão dos vazios e a definição dos espaços da articulação metropolitana são os seus temas "naturais".
2. à escala local
– obsolescência e marginalização das atividades e práticas, e esgarçamento do tecido social da área (ressaltando as graves mazelas relacionadas a prostituição, drogas, encortiçamento, etc);
– degradação da função residencial pari passu a deterioração do arcabouço construído (que se singulariza pelo conjunto de imóveis particulares que apresentam especial interesse cultural, como o indicam não só a proteção vigente pelo "tombamento" de edifícios e espaços, mas também, apesar das dificuldades, o processo aberto pelo do Condephaat, a partir do reconhecimento do valor de um conjunto mais amplo de bens);
– integração das "novas" e "velhas" funções e mistura de usos diversos, garantindo condições de vida adequadas à população residente (já moradora ou nova).
Vide SALES, P. M. R. Luz, São Paulo: condições e possibilidades de um projeto urbano, Texto Especial Arquitextos nº 108, novembro 2001.2
Este trabalho, iniciado em 1997, contou ainda com participação de técnicos do IPHAN de São Paulo, do CONDEPHAAT, da Secretaria de Estado da Cultura, do Departamento de Patrimônio Histórico, além de representantes do próprio Programa (cuja implantação em São Paulo hoje se encontra sob a responsabilidade da EMURB e do DPH).3
A Operação Urbana Centro, segundo a lei nº 12.349/1997, “estabelece condições para que direitos adicionais de uso e ocupação do solo possam ser concedidos aos proprietários de imóveis contidos na área de intervenção em troca de uma contrapartida financeira paga à prefeitura, que será empregada em melhorias urbanas na região” (EMURB, Cartilha da área central. São Paulo: EMURB, 2ª ed., nov. 2000). A lei prevê também – tendo em vista o incentivo à sua recuperação – transferência do potencial de construção de imóveis tombados para outras áreas da cidade. Em relação ao que aqui interessa discutir ressalta principalmente a necessidade de rever o tratamento de extensa e desigual área segundo critérios homogêneos, generalizadores, abstratos, além de exageradamente permissivos (no caso específico da Luz, as conseqüências seriam desastrosas em tanto em termos da sua morfologia espacial quanto da social).sobre o autorPedro M. R. Sales é formado e doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (FAUUSP), professor e arquiteto da Secretaria de Planejamento Urbano da Prefeitura.