O ano era 1937 e a administração da Prefeitura de Campo Grande passava para o advogado e ex-juiz baiano Eduardo Olímpio Machado. Ao assumir o cargo, encontrou dois problemas crônicos: as pesadas dívidas das administrações passadas e o saneamento da cidade que com seus 23 mil habitantes na zona urbana, ainda era servida pela rede de abastecimento de água construída em 1921, na administração de Arlindo de Andrade Gomes quando a cidade tinha pouco mais de 3.500 habitantes.
Preocupado com a questão do saneamento básico, que envolvia uma urgente ampliação da rede de abastecimento de água, uma completa rede de esgotos com sistema de tratamento, além dos problemas de drenagem urbana, o Prefeito tratou de resolver o problema e assim conseguiu aprovar na Câmara de Vereadores, através da Lei n. 15, de 10 de julho daquele ano, uma autorização para contratar um empréstimo interno no valor de 10 mil contos de réis (equivalentes a cinco milhões de reais a preços de agosto de 2001), para aplicar exclusivamente em obras de pavimentação da cidade, abastecimento de água, rede de esgoto e outras obras complementares, tudo de acordo com um Plano Urbanístico a ser elaborado por especialistas, além de uma Planta Cadastral da Cidade e diversos projetos de rodovias e de prédios escolares. Esses últimos itens surgiram em função da ausência total de uma Planta de Valores para cobranças do Imposto Predial e Territorial além do também grave problema de ligação da cidade com seus distritos e a existência uma pequena rede escolar municipal.
Para o financiamento da grande importância aprovada, o Município dava como garantia de pagamento as taxas a serem criadas, receita de impostos e décima predial mas, ao contatar a Caixa Econômica no Rio de Janeiro, o Prefeito recebeu orientação de obter, do Governo do Estado, uma garantia mais efetiva e também que seria necessário contratar uma empresa para elaborar o Plano em questão.
No caso da garantia, o Estado concedeu, através da Lei n. 103, de 13 de outubro de 1937, garantia com a renda dos impostos transferidos e no caso da empresa, o Prefeito Eduardo Olímpio encaminhou cartas a três delas (1): Byington & Cia, dos engenheiros Frederico Bondra, Fernando Escorel, José de Faria Júnior e José Maria da Costa Rodrigues em São Paulo e J. Caetano Álvares Júnior e o Escritório F. Saturnino de Brito Filho, no Rio de Janeiro (2). Todos tiveram como incumbência elaborar um Plano Urbanístico e de Obras além da Planta Cadastral e que contivesse soluções para os problemas de saneamento. Outra condição era que a empresa dispusesse de um “técnico em urbanismo” que pudesse residir em Campo Grande durante o período de elaboração do trabalho além de um geólogo para as soluções técnicas de pavimentação.
Em 14 de dezembro de 1937, após receber as cartas respostas das três empresas, o Prefeito opta pela proposta do Escritório Saturnino de Brito (3) e imediatamente converte o plano de trabalho em Lei n. 19 de dezembro de 1937. A Lei autorizava a contratar serviços técnicos e profissionais de um engenheiro de notória capacidade em assuntos de urbanismo e saneamento de cidades, para que pudesse estudar e apresentar um plano detalhado nas áreas já citadas. Além dos estudos técnicos e os melhoramentos, haveria necessidade de elaborar planos de obras complementares nas seguintes áreas:
a) estilo e condições técnicas das construções em geral, de acordo com a topografia, salubridade e geologia dos terrenos (4);
b) prolongamento e abertura de ruas, avenidas, localização de logradouros e de edifícios públicos para estabelecimento de ensino universitário, técnico e profissional, vilas operárias, biblioteca, estabelecimentos fabris, químicos, industriais, depósitos de inflamáveis e explosivos e outros que pela sua complexidade e natureza devam se localizar em áreas próprias (5);
c) macadamização (6) das entradas das estradas de Jaraguari, Bandeira, Lagoa da Cruz, Porto XV de Novembro, Imbirussu, Avenida Calógeras ou Rua João Pessoa (atual Rua 14 de Julho) e no trecho que sai da Rua 7 de Setembro ao Cemitério Municipal; Rua Santos Dumont, a partir da Rua João Pessoa e sua ligação com o bairro Amambaí e o Campo de Aviação;
d) ligação da cidade com o bairro Amambaí e com o Campo de Aviação pela Rua XV de Novembro, avenida Schnoor e Av.Afonso Pena e Praça Newton Cavalcanti;
e) abertura e prolongamento da Rua João Pessoa em direção ao norte, bairro do Cascudo, até a Esplanada da Noroeste do Brasil;
f) retificação dos córregos Prosa e Segredo nos trechos convenientes e sobre a drenagem, uso e conservação dos terrenos de brejos marginais aos mesmos;
g) estudos sobre esgotamento de águas pluviais;
h) estudos para pavimentação das seguintes vias: Rua 7 de Setembro, Rua 15 de Novembro, Av. Afonso Pena até o Obelisco, Rua Barão do Rio Branco, Rua Dom Aquino, Rua Cândido Mariano, Rua Maracaju, Rua Antônio Maria Coelho e Av. Mato Grosso, Rua Pedro Celestino, Rua 13 de Maio, Rua João Pessoa e Av. Calógeras;
i) estudos para a rede de esgotos, compreendendo toda a área a ser pavimentada e com capacidade para 100 mil habitantes;
j) estudos para o abastecimento de água da cidade e seus bairros, com novos meios de captação, para uma população de 150 mil habitantes, inclusive a conveniência de poços artesianos e autorização para que o Município adquira, por compra ou desapropriação, os terrenos dentro dos quais estejam compreendidos os mananciais que forem julgados indispensáveis ao abastecimento futuro da cidade;
k) autorização para adquirir terrenos onde existam pedreiras que sejam úteis de fácil exploração, para uso na pavimentação.
O Plano Urbanístico elaborado pelo Escritório Saturnino de Brito foi entregue à Prefeitura Municipal em 1938, conforme atestam os documentos do arquivo municipal, muito embora nenhum documento relativo ao plano em si, não tenham sido encontrados. De posse do Plano e das propostas das obras, o Prefeito Eduardo Olímpio Machado foi atrás da contratação do financiamento, mas, em função das mudanças e oscilações mundiais da taxa de juros bancários, por força do episódio da Segunda Guerra, atravessa toda a sua gestão e apenas em 1942, já no mandato do Prefeito que o sucedeu, Demóstenes Martins, é que se iniciam as obras que vão transformar Campo Grande numa cidade urbanizada; a aplicação do Plano Urbanístico, que se converteu em Decreto-Lei 39, de 31 de janeiro de 1941 é um dos últimos atos do Prefeito Eduardo Machado.
O Plano do Escritório Saturnino de Brito, foi materializado através de uma lei municipal que consta no seu caput: “divide a cidade em zonas de construção e dá outras providências”. A lei possui 66 artigos e decretou um zoneamento para a cidade; nominou as regras para loteamento e desmembramento; as normas técnicas para construções, onde trata das taxas de ocupação, recuo, tipos de construções, número de pavimentos, altura e gabarito dos prédios e de seus detalhes, das licenças para edificar, dos projetos e da aprovação e dos profissionais aptos a trabalhar.
Essa norma municipal era uma lei completa, que cumpriu suas funções durante todo o período em que a cidade cresceu em média 8% ao ano, em termos econômicos e populacionais, o que exigiu do setor público, normas mais rígidas quanto ao uso e ocupação do solo urbano. Ela perdurou como norma urbanística até 1965, quando uma nova lei municipal, com 468 artigos, a de nº 26, de 31/05/1965 foi aprovada, com mais destaque para as construções embora tivesse um novo zoneamento para a cidade.
A grande novidade do Decreto-Lei n. 39 era o zoneamento (7) da cidade. Cinco zonas de uso foram criadas e para cada uma delas, uma norma para as atividades, empreendimentos e para a ocupação do solo.
A Zona Central ou Comercial compreendia a parte mais histórica e central de Campo Grande, constituída de um polígono com as ruas comerciais mais importantes, como a Rua 14 de Julho e seus arredores. Nessa zona era admitida a testada dos lotes de 10,00m (enquanto que no resto da cidade era de 12,00m) e profundidade de 30,00m. Era permitido construir até o limite de 60% do terreno e se houvesse, nos fundos, atividades residenciais, o que era típico na época, o índice cresceria para 65%. A construção deveria ser no alinhamento predial
A Zona Industrial era compreendida pelas ruas mais antigas da cidade, às margens do Córrego Prosa, no caso a Rua 26 de Agosto, Barão de Melgaço e Joaquim Murtinho, onde havia terrenos brejosos e de difícil construção naqueles tempos. Nessa região havia ainda algumas pequenas olarias de tijolos e outras fábricas e era permitido ocupar 70% do terreno, pois os lotes eram maiores, por conta da profundidade das ruas até o córrego. A construção poderia ser no alinhamento predial.
A Zona Residencial era um quadrilátero formado pela Av. Mato Grosso, 25 de Dezembro, Av. Afonso Pena e 13 de Maio, uma clara separação das demais zonas comercial e industrial, apesar da proximidade destas. O recuo frontal exigido era de 4,00 m e o lateral de 1,50m e no mínimo seis cômodos, num claro sentido de que as casas operárias de dois ou três cômodos ficaram para o bairro Amambaí e para a Zona de 2ª Categoria. Após a promulgação da lei, as residências existentes nos fundos das lojas comerciais existentes na Rua 14 de Julho começam a se transferir para as ruas localizadas nessa zona residencial, com destaque para a Rua Antônio Maria Coelho, Cândido Mariano, as preferidas da classe de maior renda.
A Zona Mista de 1ª Categoria compreendia diversas ruas da área central e residencial, enquanto a de 2ª Categoria constituía todo o restante da cidade não delimitado pela lei municipal. Tinha um sentido de corredor, pois era possível ocupar 50% do solo na primeira e 33% na Segunda categoria.
Alguns itens da Lei tinham claro compromisso com a modernidade, como a exigência de construção com, no mínimo, dois pavimentos na Rua 14 de Julho, entre a General Mello e a Rua 7 de Setembro, na Rua Dom Aquino e Barão do Rio Branco e Avenida Afonso Pena entre a Calógeras e a 13 de Maio; as vilas, só poderiam ser construídas nas Zonas Mistas de 1ª e 2ª Categoria, e afastadas uma da outra, no mínimo, 200 metros, numa tentativa de retirá-las da área mais central e até não permitindo na zona residencial, evidenciando o uso uniresidencial; nos loteamentos novos já se exigia um percentual de 20% da área total da gleba para o arruamento e outros 20% reservados para as áreas de praças e jardins, percentuais bem maiores que os determinados pela Lei federal 6.766/79 em vigor até recentemente para todo o país; os profissionais encarregados pelas obras, engenheiros ou arquitetos, eram obrigados a informar o nome do eletricista e do encanador encarregado e o mesmo deveria também estar cadastrado na municipalidade.
Outro ponto muito importante do Plano do Escritório Saturnino de Brito, ocorreu com o Ato 16, de 27 de março de 1939, quando o Prefeito Eduardo Machado resolveu, a seu pedido, criar a Comissão Municipal de Saneamento, para analisar e encaminhar para aprovação junto ao Departamento de Saúde do Conselho de Administração Municipal do Estado de Mato Grosso, a proposta de adução das águas do Córrego Desbarrancado, localizado na parte leste da cidade, naqueles anos distantes uns 4.000m da área urbanizada da Av. Afonso Pena, o Obelisco. A área adquirida pela municipalidade nos anos 40, por orientação do Plano, foi utilizada parcialmente para adução e hoje abriga a nascente do Córrego Prosa, com águas do Desbarrancado e Córrego Português e é a sede o Parque dos Poderes, local onde estão instalados os prédios da administração estadual e uma reserva ecológica de cerrado das maiores entre as cidades brasileiras, além de captar e fornecer água para diversos bairros. Ainda hoje, uma pequena barragem construída nos anos 44, lá se encontra, formando um pequeno lago, e um espaço construído para o turismo ecológico.
O Plano foi sendo implantado em Campo Grande, ao longo dos anos, pelos engenheiros da Secretaria Municipal de Obras e todos tinham um grande respeito pelo trabalho técnico do Escritório Saturnino de Brito, como pode atestar o Engenheiro Hélio Baís Martins (8) que trabalhou como Secretário do Prefeito Wilson Martins e ficou encarregado, em 1959, de contratar, mais uma vez, o Escritório Saturnino de Brito para continuar os trabalhos de saneamento, dessa vez usando uma nova adução, através do Córrego Lageado, localizado na parte leste da cidade, utilizado até os dias de hoje para o abastecimento da cidade.
Nos anos 60, portanto, o Escritório Saturnino de Brito mais uma vez retorna a Campo Grande, representado, dessa vez, pelo engenheiro José Alves Braga, para continuar os trabalhos de abastecimento de água. O contrato foi assinado em agosto de 1960.
notas
1
Fonte: Arquivo Histórico de Campo Grande, livro de correspondência da Prefeitura de Campo Grande: Correspondências expedidas, ano de 1937.
2
Nomes constantes das cartas endereçadas pelo Prefeito de Campo Grande. No caso de F. Saturnino de Brito Filho, o endereço do escritório constante da Carta: Rua Mauá, 7 salas 1516 e 1517 - Rio de Janeiro.
3
Antônio Lopes Lins, em seu livro Eduardo Olímpio Machado: o homem, o meio e seu tempo, afirma que ao chegar à Caixa Econômica Federal, agência centro do Rio de Janeiro, o Prefeito de Campo Grande foi orientado a contratar os serviços do Escritório Saturnino de Brito, pela sua tradição em fazer tais serviços para diversas cidades brasileiras.
4
O decreto-lei n. 39, de 1941, é uma lei que trata do zoneamento, parcelamento e das construções.
5
Essas propostas que devem ter saído do Plano, foram utilizadas pelo Prefeito para deslocar os depósitos de inflamáveis da cidade, colocando-os na saída da cidade em direção ao oeste-Pantanal.
6
Técnica inventada pelo inglês Mac Adam, no século XIX, que consistia numa mistura de pedra britada com saibro e compressão através de máquinas pesadas, adicionando um pouco de piche ou massa asfáltica quente e pó de pedra por cima [MACHADO, 1990, p. 19].
7
Desde 1905, a cidade já tinha normas urbanísticas expressas em Código de Posturas, mas nenhum deles tratava do zoneamento da cidade, por conta da época. O zoneamento enquanto função surge nos anos 30, após a Carta de Atenas do CIAM de 1931.
8
Hélio Baís, em entrevista realizada em sua fazenda em 1999, informou-nos que assim que assumiu, os mesmos problemas de saneamento de 1937 estavam ocorrendo, por conta do alto crescimento da cidade. A saída foi, mais uma vez, procurar o Escritório Saturnino de Brito em 1960.
[trabalho original completo, apresentado no IV Encontro do DOCOMOMO em Viçosa- Nov. de 2002]
sobre o autor
Ângelo Marcos Arruda é arquiteto e professor da Uniderp.