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my city ISSN 1982-9922

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CASCO, Ana Carmen. Sobre a idéia desmiolada de reconstruir o Palácio Monroe. Minha Cidade, São Paulo, ano 02, n. 022.01, Vitruvius, maio 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/02.022/2062>.


Palácio Monroe, Rio de Janeiro [Arquivo da Câmara dos Deputados]


Palácio Monroe, Rio de Janeiro [Arquivo da Câmara dos Deputados]

 

A reconstrução do Palácio Monroe junto à praça Mahatma Gandhi, no prolongamento da Cinelândia no Rio de Janeiro, ocupa a pauta política de intervenções urbanas imaginadas pelo prefeito Cesar Maia e também algumas páginas nos jornais.

Construído para representar o Brasil na feira internacional que comemorou os cem anos de aquisição do território da Louisiana nos EUA, em 1904, o projeto contratado tinha como principal exigência a de que o prédio fosse construído segundo tecnologia que permitisse o seu desmonte na  dita feira e reconstrução no Brasil. No que foi prontamente atendido pelo autor, general Francisco Marcelino de Souza Aguiar, que projetou o premiado prédio eclético todo em estrutura metálica desmontável, conforme permitiam o estilo e a técnica de seu tempo.

Autor também do prédio da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, o general Souza Aguiar não considerou falta de criatividade reproduzir a grande cúpula metálica que encima a Biblioteca no Palácio Monroe. Menor do que a primeira, a cúpula do Monroe recobre uma edificação mais leve  rodeada de pilastras coríntias e bastante vazada por panos de vidros que fechavam os interstícios da estrutura metálica também usada nas paredes. Talvez as cúpulas repetidas tenham sido intencionais na estruturação de forças de equilíbrio no espaço urbano então criado pela implantação do Teatro Municipal, da escola Nacional de Belas Artes (hoje Museu Nacional de Belas Artes), da Biblioteca Nacional e do Monroe.

Nesta tensão urbana o Monroe vai se contrapor ao Teatro Municipal e, em incógnita perspectiva, terão entre eles a Biblioteca e a Escola de Belas-Artes.

Reconstruído com sucesso foi, em 1976, demolido sem merecer a mesma distinção preservacionista que guardou o Teatro, a Biblioteca e o Museu (Escola Nacional de Belas Artes). Problemas políticos, urbanísticos e até mesmo de preconceito em relação ao estilo eclético da chamada Belle Époque alimentam as versões que chegaram até os nossos dias sobre a dita demolição, todos já resolvidos, senão pelo esclarecimento dos fatos, pela terapêutica passagem do tempo.

O que a reconstrução do Monroe provocaria do ponto de vista urbano? Apenas mais uma nova intervenção a ser digerida pela cidade com o passar do tempo. Foi assim com o desmonte do Morro do Castelo, a abertura da Avenida Central, a criação da esplanada dos Arcos da Lapa, o Aterro do Flamengo, a construção do edifício Cândido Mendes na praça XV, os embelezamentos do Rio Cidade. O problema não é, principalmente, no que resultaria a intervenção e seus danos ou ganhos imediatos, mas o fato de ser um erro do pensamento que idealiza o projeto de reconstruir.

Uma cidade é feita também dos desmandos, das ausências de sensibilidade, visão política ou compreensão, das destruições que atitudes democráticas ou autoritárias inscrevem na grossa casca histórica que a reveste.

A obsessão de reescrever a história é um traço cultural ou neurótico de alguns dirigentes contemporâneos que inspirados por razões diferentes da do Super Homem, querem fazer o tempo retroceder. À luz do fugidio lampejo que serão capazes de lançar sobre o passado pretendem inscrever seus nomes, para sempre, nas pedras que calçam nossa história.

Seria menos danoso moldar a mão numa placa de cimento fresco na avenida de Hollywood em que os grandes astros se eternizaram, opção perigosa depois que aviões pilotados por guerrilheiros semitas sobrevoaram o império americano, ameaçando-o de súbito desaparecimento.

Ao acúmulo de uma história que se explicita fisicamente nos espaços de uma cidade vêm, muitas vezes, somar-se novos ângulos, outras perspectivas, gente diferente, hábitos transformados, paisagens retorcidas, comportamentos transgressores, que aos poucos vão parecendo sempre terem estado ali...

É o eterno renascer das cidades que envelhecem e, ao contrário das cebolas, vão acumulando, sobrepondo ou justapondo cascas. Não para se encobrirem, mas para se revelarem outras e seguirem fiéis à história da passagem do homem pela terra.

Tempos de longa ou curta duração determinam muitas das mudanças que vemos estamparem-se nos cenários urbanos, mas a maestria do tempo em esculpir cidades está na demonstração da irreversibilidade de sua passagem, em nos impor doce ou duramente a lógica de que jamais retornaremos ao passado, mesmo visitando lugares antigos, porque seremos sempre outros.

O tempo que Heráclito nos revela na observação acurada do rio que passa. É o tempo a que rendemos homenagem quando vivemos cada instante como se fosse o último, o único, o que não se repete; e por isso tentamos ser os melhores possíveis.

A reconstrução do passado em nome do reparo de um gesto incorreto pode ser um gesto de desavisado desrespeito ao presente que somos capazes de modificar pensando nas gerações que virão depois da nossa.

Pode ser um gesto de desavisado desrespeito pelo passado original que ainda reveste trechos das cidades ambivalentes, múltiplas, heterodoxas, contraditórias, nas quais os vários tempos dialogam, se confrontam, medem força e, de alguma forma, encontram o equilíbrio.

Vamos guardar nossos bravos gestos para preservar a História – também  guardada em documentos, livros, iconografias, jornais – e não para reparar gestos que nos aventuramos a julgar como os piores, como se fôssemos mais potentes do que a historicidade dos fatos.

Vamos guardar nossos bravos gestos para, respeitando nossas cidades em sua dinâmica nem sempre justa de desenvolvimento e transformação, construirmos um presente melhor. E ser melhor, neste caso, pode ser ter que aceitar o legado do passado como algo que não deve se repetir e por isso mesmo deve permanecer sem reparos.

sobre o autor

Ana Carmen A J Casco é arquiteta do SPHAN e professora de Técnicas Retrospectivas na escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense.

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