De pronto pode-se perceber uma conjunção de vários aspectos contribuintes da degradação, de certa maneira ligados entre si, e a indicação da responsabilidade maior na fragmentação espacial e impacto ambiental causados pela implantação do corredor de ônibus. No entanto, se comparada à outras importantes avenidas arteriais de São Paulo, que também possuem corredores de ônibus ou trânsito intenso deles, e que também sofrem com a poluição, a sujeira e o emaranhado de redes elétricas; vê-se que a mesma conjunção de fatores produziu diferentes resultados, nem sempre tão impactantes em relação à atividade econômica e dinamismo de seus espaços urbanos que se refletem na vacância imobiliária e no desinteresse.
Veja-se, por exemplo, as Avenidas Paes de Barros, na Mooca (figura 1) e o trecho que atravessa os Jardins da Avenida Nove de Julho (figura 2), ambas possuem corredores de ônibus. No caso da Nove de julho, essa avenida atravessa a região mais valorizada da cidade, mas não tão economicamente superior à região atravessada pela avenida Santo Amaro. Em ambos os casos, porém, são regiões mais valorizadas que a região da avenida Paes de Barros.
Outros paradigmas seriam as avenidas Celso Garcia, no Brás (figura 3) e a Avenida Dom Pedro I, no Ipiranga (figura 4). Nessas avenidas não há corredores de ônibus, porém tem faixas exclusivas e trânsito intenso deles. As regiões dessas avenidas encontram-se num patamar economicamente mais baixo, existem alguns cortiços nos seus entornos e uma grande quantidade de galpões de indústrias desativadas, principalmente no Brás, porém elas estão menos deterioradas que a avenida Santo Amaro. Mas o que faz com que corredores inseridos em bairros tão valorizados tenham aparentemente mais vacância e desinteresse que outros, onde existe um contexto bem diferente?
Um ponto de vista que tem sido pouco considerado nas análises de requalificação urbana, e esse é um ponto crucial que pede a participação dos Arquitetos e Urbanistas, é o papel da morfologia urbana desses espaços, enquanto condicionante fundamental, diria até a mais importante, do sucesso ou fracasso das reformas e intervenções.
Vamos primeiramente esclarecer qual postura conceitual de morfologia urbana se pretende. Entende-se que a morfologia da cidade deva ser primeiramente vista a partir da sua arquitetura, isto é, do seu funcionamento dinâmico.
Morfologia, que seria o estudo das formas, é um conceito relacionado à imagem, à leitura, que os indivíduos fazem dos objetos arquitetônicos e urbanos (edifícios, praças, ruas, cheios e vazios), conforme lhe atribui José Lamas (1) “é a disciplina que estuda o objeto – a forma urbana – nas suas características exteriores, físicas, e na sua evolução no tempo”.
Mas também pode possuir uma leitura interdisciplinar. Ao se relacionar morfologia com a arquitetura da cidade e com o processo de composição espacial, ainda que não necessariamente realizado por Arquitetos, muitos autores reforçam a gênese multidisciplinar da cidade e as propriedades relacionais do espaço. O espaço urbano, enquanto território, possui propriedades de estabelecer relações entre os indivíduos seja como base material de seu desenvolvimento seja como locus de relações de poder e estratégias identitárias Rogério Haesbaert (2). Isso significa que a arquitetura da cidade estrutura-se para afirmar relações ideológicas e culturais onde acontecem diversos processos de troca e vivência urbanas. Constitui, assim, um arranjo dinâmico , associado, desde o princípio, ao universo de processos sociais existentes no cotidiano, como diria Bill Hillier (2) o movimento, nas grandes cidades, não é simplesmente produto da organização espacial, mas causa da sua existência.
Nesse mesmo sentido e especificando quais seriam essas propriedades espaciais, Hillier (3) propõe que a organização espacial humana é formada por um conjunto de barreiras e permeabilidades de vários tipos e cataloga uma família de geradores de complexidade, que seriam as sintaxes espaciais, as quais dariam nome à sua teoria de análise sintática. Algumas dessas famílias são de fácil compreensão: a simples vizinhança especifica relações simétricas entre células fechadas (construções) e abertas (pátios) em relação direta umas com as outras e com o espaço público, como na cidade medieval. A sintaxe de espaço central, onde várias células fechadas combinam-se para formar uma só aberta, como nas galerias e passagens comerciais, seria uma outra família. A sintaxe de contenção simples, onde uma célula externa contém várias em seu interior, como nos shoppings centers, condomínios fechados ou no castelo medieval, seria uma terceira família
A questão da gênese morfológica da cidade e seu dinamismo, capaz de relacionar determinadas arquiteturas e arranjos espaciais com diferentes processos sociais de apropriação do território é percebida, de modo empírico, pelos próprios especialistas em investimentos imobiliários, quando propõe soluções para o problema desses espaços degradados, como a Av. Santo Amaro em foco na reportagem citada.
Luiz Paulo Pompéia, diretor da Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio, propõe que a Av. Santo Amaro seja alargada, para que as pessoas possam percorre-la confortavelmente, sem ficarem espremidas, e também propõe uma revisão na Lei de uso e ocupação do solo para permitir maior verticalização, ainda que, problematiza Pompéia: “como os lotes são pequenos fica difícil erguer um empreendimento de grande porte” (4). Efetivamente a opinião emitida pelo especialista em investimentos imobiliários parte de um receituário muito usado nos projetos de revitalização urbana, baseados em empreendimentos de grande porte e na adoção de relações morfológicas de “contenção”, isto é, naquelas onde o espaço construído distancia-se do lugar público em troca de uma internalização, as vezes em uma forma mais suave como uma galeria comercial, as vezes mais dura como num shopping center (shopping malls, como dizem os norte americanos).
Ao mostrar as transformações do espaço terciário ao longo do tempo Heliana Comin Vargas (5) demonstra que em sua raiz está a realização dos contatos sociais como base cultural do processo da troca. Nas cidades ocidentais, onde a rua sempre teve papel fundamental, a internalização do espaço público, primeiramente em mercados, depois em galerias, magazines e shopping centers veio para resguardar a possibilidade do contato face a face, num quadro urbano cada vez mais agressivo, dadas as mudanças no uso do espaço público com a industrialização e a desigualdade social. Na gênese do bazzar oriental, que dado a fatores climáticos, faz com que a arquitetura seja internalizada, também o espaço estrutura-se para a predominância dos encontros face a face.
Para os setores sociais mais privilegiados como o capital imobiliário, responsável pelos empreendimentos de grande porte, como os shoppings centers, as localizações estratégicas no espaço público deixaram de ser tão importantes quanto as estratégias de localizações, conforme salienta a autora, justamente devido às estratégias de marketing, ao público alvo que detém maior mobilidade territorial e à própria morfologia intenalizada, que favorece as relações espaciais controladas. Porém a volta às ruas e a valorização ambiental são as tendências dominantes hoje e um dos objetivos deste artigo é alertar como determinadas morfologias favorecem mais ou menos os processos de apropriação do território, que sejam mais abertos ou mais restritivos à participação plural dos diversos agentes sociais e também que sejam mais permeáveis às livres manifestações culturais e iniciativas individuais.
Os pressupostos funcionalistas que norteiam a maioria das intervenções nas vias arteriais de São Paulo e outras metrópoles brasileiras, fragmentaram o espaço público estabelecendo uma ordem morfológica única, não por má intenção, naturalmente, mas por uma falta de visão multidisciplinar no escopo da composição do espaço urbano, onde alguns setores tiveram muito mais peso do que outros – o transporte, por exemplo.
Em verdade, tanto quando da implantação do corredor de ônibus, nos anos 80, quanto nas propostas de revitalização atuais, parecem ter sido menosprezadas as características morfológicas particulares da Av. Santo Amaro, que a situam na faixa de espaços mais correspondentes, onde existe a predominância de edifícios que se relacionam diretamente com o espaço público, mais favoráveis ao contato face a face, próprio do trânsito de pedestres e aos usos múltiplos de comércio varejista e serviços, portanto, e que sofreram muito mais com a exclusão do pedestre.
Por isso mesmo é interessante notar que determinadas famílias morfológicas estão melhor associadas ao transito de veículos do que ao de pedestres e isto estabelece uma relação arquitetônica inversa quando se coloca junto a elas as faixas de ônibus, como é o caso da Av. Dom Pedro I, no Ipiranga. Nessa avenida, e também na Nove de Julho, existe o uso comercial e de serviços estabelecido em edifícios cercados de jardins e recuos, construídos de acordo com um “novo” padrão urbanístico, mais próximo das cidades jardins inglesas, e que chamamos de espaços de contenção simples, por conterem uma área de transição, semipública entre si e o espaço público.
Na Av Dom Pedro I a faixa preferencial de ônibus, onde também circulam caminhões, foi colocada junto às calçadas, quando deveria estar justamente no centro, deixando os automóveis mais afastados da família morfológica que se relaciona bem com eles. Nesse tipo morfologia há o favorecimento de relações não simétricas e não correspondentes de apropriação do território, isto é, situações de predominância do espaço individual em relação ao coletivo, do edifício consigo mesmo do que com relação ao conjunto construído, ao contrário do que ocorre no centro velho de São Paulo e outras cidades, por exemplo, com evidentes possibilidades de verticalização e concentração em grandes empreendimentos, situação que em alguns casos é impedida apenas pela legislação, mas que no caso da avenida D. Pedro I, contraria a lógica da especulação imobiliária pois ela encontra-se cercada por bairros deteriorados.
A avenida Santo Amaro, ao contrário, está inserida em bairros com excelente renda per capita e valorização imobiliária, configurando tentadora possibilidade de especulação, porém morfologicamente inadequada, visto que os lotes são pequenos e há pouca possibilidade de alargamento. A alternativa, dentro do quadro de uma morfologia distributiva, embora fragmentada pelo corredor de ônibus, seria um conjunto de medidas urbanísticas mitigatórias que poderia passar pela abertura de quadras, como nas propostas por Christian de Portzamparc (6) com a criação de circulações transversas de pedestres, nos pontos de maior encontro de fluxos e consolidação de famílias de edifícios com menor contenção (figura 5).
A Avenida Celso Garcia também se encontra poluída visualmente pelo excesso de cabos na rede aérea de energia, tomada pelo barulho ensurdecedor dos ônibus e desgastada pelo comércio ambulante, tem, no entanto, uma morfologia predominante dos espaços de simples vizinhança e uma grande vitalidade comercial. Cercada por quadras de antigas indústrias, hoje abandonadas, insere-se num contexto ambiental e econômico totalmente diverso das outras avenidas citadas, com muito menor presença de territórios gentrificados, mas contraditoriamente encontra-se mais viva que todo o seu entorno, podendo inclusive ancorar a revitalização do bairro do Braz, ao contrário da avenida Santo Amaro onde o entorno é que oferece base para a possível revitalização da avenida.
As morfologias e suas relações com o espaço são, portanto, contextualizadas pelos diversos processos de uso em cada região ou locus de relações identitárias. O conceito de revitalização, longe de estar fechado em torno de propostas territoriais de contenção, como são os grandes empreendimentos comerciais e culturais, encontra-se carente de uma metodologia “espacializante”, que parta da análise dos elementos de composição espacial e arquitetônicos da cidade e de seus processos de apropriação territoriais, antes de um receituário ideológico.
notas
1
LAMAS, José P. G. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbentrian, Junta de Investigação Científica e Tecnológica, 1992, p. 38.
2
HAESBAERT, Rogério. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Rio de Janeiro, Anais do ANPUR, vol. 3, 2001, p. 1774.
3
HILLIER, Bill. A lógica social do espaço hoje (excertos do livro). Brasília, FAU-UnB, trad. Prof Frederico Holanda, 1986.
4
REVISTA VEJA SÃO PAULO. A avenida pede socorro. São Paulo, 8 jan. 2003, p.28-29.
5
VARGAS, Heliana Comin. Espaço terciário. São Paulo, Senac, 2001.
6
PORTZAMPARC, Christian. A terceira era da cidade. Óculum. Campinas, n. 9, 1997.
sobre o autor
Ismael Andrade Pescarini é arquiteto, professor da UNINOVE e aluno do Doutorado da FAU-USP.