Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

my city ISSN 1982-9922

abstracts

how to quote

SCHRAMM, Solange. Memórias de Iracema. Minha Cidade, São Paulo, ano 04, n. 042.01, Vitruvius, jan. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/04.042/2026>.



A Praia de Iracema parece estar sempre sendo reinventada. A sua constituição como um espaço de acentuada referência simbólica remonta à sua “criação”, quando deixou de ser a Praia do Peixe, a praia da venda do peixe, para tornar-se a bucólica Praia de Iracema. O bairro surge, na década de 1920, como uma novidade no contexto fortalezense: um balneário que passa a congregar os grupos abonados da cidade, introduzindo uma inédita forma de lazer na cultura urbana local. Impunha-se, pois, construir uma nova imagem para o lugar, onde, até então, só existira “pinga, jogo de caipira e facada de pescador”, nas palavras de um velho morador do bairro. Assim, ao invés “de Praia do Peixe, nome que exhala intenso fartum de vísceras de garôpa expostas ao sol”, como sugere uma crônica de 1925, o bairro ganha, naquele ano, uma sugestiva e sonora denominação, que contribui para promover a assepsia do local, inserindo-o nos padrões de uma nova e refinada sociabilidade. Transformada “numa grande parada de elegância”, a praia passou, então, a ser de Iracema.

A partir de meados dos anos de 1940, as obras do porto do Mucuripe provocaram alteração no movimento das correntes marinhas, que atingiram violentamente a Praia de Iracema. A destruição de parte do casario e a drástica redução da faixa de praia iriam provocar o abandono dos usos que lá se verificavam: o balneário entrou em decadência e os pescadores, em sua maioria, partiram para outras praias, a exemplo do Poço da Draga e do Mucuripe. Surgem falas de saudade, chorando a sua ruína e enaltecendo os seus atributos como o espaço idílico do dolce far niente de um tempo em que todos eram felizes...

São diversas as narrativas – poemas, matérias jornalísticas, canções – que contribuíram para amalgamar a tradição forjada nas primeiras décadas, que, atribuindo à Praia de Iracema a condição de um espaço edênico, obscureceram aspectos do cotidiano dos que habitavam e trabalhavam no bairro. Nesse sentido, são ilustrativas as representações construídas sobre os pescadores, consagrados como elementos exóticos ou idealizados, diluindo-se, de forma velada, possíveis tensões e conflitos. A construção do simbolismo da Praia de Iracema, arrimada naquela tradição, está, pois, vinculada, a grupos aquinhoados de meios econômicos e intelectuais que consagraram aquele território como um paraíso perdido, que, além do mar, o tempo carregou.

Depois, a Praia de Iracema passou a ser identificada como um lugar um tanto underground, escolhida, nas décadas de 1950 e 1960, pela “boêmia seresteira” e, nas duas décadas seguintes, pela “boêmia intelectualizada”, que renovou a “vocação mítica” daquele espaço, transformado no “Território Livre de Iracema”. Um grupo proveniente da classe média, de formação universitária, contribuiu para que suas vivências no bairro passassem a lhe emprestar uma certa “identidade”, como ilustram os atributos que lhe eram, então, consignados: “cenário lítero-etílico-cultural da noite de Fortaleza”, “referencial artístico e político”, além de fortalecer a imagem já existente daquele território como “reduto poético e boêmio”, “local bucólico e sentimental”, “musa inspiradora”.

Como ensinam os estudiosos da memória social, há tantas memórias quantos sejam os grupos sociais. Se a “tradição” da Praia de Iracema está ancorada numa memória que se tornou hegemônica, cabe iluminar aspectos de outras memórias obscurecidas. No bairro, ainda moram alguns dos antigos pescadores, ou seus filhos: João Bajana, Pedro Garoupa, Raimundo Poraquê, Orlando Coró, Batista Mero, Guaiuba. Das suas lembranças, surgem os nomes das jangadas: Jaraqui, Águia Feliz, Talismã, Faustina, Barra do Nordeste, Pau Pereira. Na fidelidade à tradição de serem apelidados com nomes de peixes ou na rememoração dos belos nomes das jangadas permanecem os ecos de uma memória esgarçada, quase perdida, a se apoiar no pequeno grupo remanescente.

Apesar das profundas transformações no perfil sócio-econômico e físico-espacial em curso na Praia de Iracema, há mais de duas décadas, subsistem aspectos que corroboram que a memória é o que ainda pulsa na consciência dos grupos. Uma dessas “reservas” da memória reside nas proximidades da Avenida Monsenhor Tabosa. Numa conversa com alguns de seus moradores, avulta a persistência de fortes vínculos de sociabilidade: “A Praia de Iracema é um coração e a Padre Justino é uma artéria, uma veia muito importante (...) O mais importante é o povo. Se tiver um ai, tem um chá”. Nenhuma referência é feita à Praia de Iracema “oficial”, ou seja, boêmia , romântica ou “cultural”.

Revelar que há outras memórias que pulsam nos interstícios da Praia de Iracema não significa “sacralizar” a presença desses grupos. Entretanto, cabe reconhecer que foram outras as tradições invocadas para legitimar a requalificação de espaços da Praia de Iracema, em meados da década de 1990, quando o bairro renasce para novas apropriações, privilegiado como o locus do lazer e do turismo. Naqueles anos, as ações governamentais, seja no planejamento urbano (elaboração de legislação urbanistica que privilegiou a preservação de um setor do bairro em detrimento de outros), em intervenções no espaço urbano (a construção do calçadão) ou num edifício isolado (reconstrução do Estoril), juntamente com os investimentos do setor privado, buscaram cristalizar uma tradição de bairro bucólico, boêmio e “cultural”, arrimada na memória coletiva de alguns grupos sociais, obscurecendo a existência de outros grupos e de outras memórias. A partir do uso conveniente de referenciais passados, pode-se afirmar que, para legitimar a nova ordem, procurou-se institucionalizar uma memória que se afigurava mais adequada para a fruição turistificada daquele lugar. Assim, a Praia de Iracema foi-se constituindo como um “bairro temático”, simulacro de si mesmo, conformado a partir de uma livre interpretação de seu próprio passado.

Desde então, as invenções adquiriram nova escala: depois de requalificada uma porção de seu território como espaço “histórico e tradicional”, referendada pela legislação urbanística específica para a área, o bairro tem seus limites ampliados informalmente para conter o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, que potencializou sua imagem como lugar de uma fruição elitizada. Mais recentemente, suas fronteiras têm-se expandido em direção ao mar, anunciando a onipresença da Praia de Iracema, seja no areal criado com a justificativa de trazer de volta a antiga praia, seja na proposta do governo estadual de uma grande península artificial, caso do Centro Multifuncional de Feiras e Eventos, que surge no rastro do Dragão.

A manipulação de memórias que se tornaram “honoráveis”, na configuração dos novos espaços, não privilegiou a diversidade de comunidades que compõem o bairro. Pode-se, assim, afirmar que a Praia de Iracema, qual o personagem de Alencar, tem sido reinventada para tornar-se uma tradição local. Vale lembrar que, para legitimar sua obra como uma lenda do Ceará, o grande romancista afirmou, poeticamente, sobre Iracema: “uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares”. No que se refere ao bairro homônimo, há, como foi visto, a hegemonia de algumas memórias a dar sustento e legitimação à imagem do lugar como um espaço tradicional, apoiado num suposto passado de ouro, o paraíso do lúdico ou do “cultural”.

Iluminar a existência de outras memórias é a possibilidade de estabelecer um contraponto, uma tensão no aparente consenso de uma visão instituída que não tem contemplado as memórias sem "prestígio”, a qual tem permeado decisões de política urbana para a Praia de Iracema, com importantes desdobramentos no que se refere à utilização do espaço público. Como tem sido evidenciado por diversos autores, a garantia do pleno usufruto de um espaço por um determinado grupo é condição necessária para a permanência de uma memória. Nesse sentido, importa utilizar a memória social como esteio para a valorização de espaços que acolhem o cotidiano dos diversos grupos sociais, sobretudo os de menor renda, que não dispõem de capital econômico ou intelectual para a disputa desigual numa cidade que se reproduz sob o primado da fruição turística e que tem subvertido, violentamente, práticas, saberes e lugares historicamente consagrados, como se tivesse um destino inexorável a cumprir...

nota

1
O artigo "Memórias de Iracema" foi originalmente publicado no dia 15 de junho de 2003, no caderno "Vida & Arte" do jornal O Povo, de Fortaleza.

sobre o autor

Solange Schramm é arquiteta, graduada pela UFC, professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNIFOR, representante do IAB/CE no Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural e doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Sociologia da UFC .

comments

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided