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IOST, Gilmar. Arquitetura sem alma. Lixo e luxo em mostra de design. Minha Cidade, São Paulo, ano 05, n. 058.03, Vitruvius, maio 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/05.058/1976>.
Hoje visitei a Casa Nova – mostra de arquitetura de interiores de Florianópolis. A visita se deu online, pois a distância geográfica me impede de fazê-lo pessoalmente. Mas não importa, pois o que pude ver e ler foi suficiente para me fazer registrar a indignação com relação a atual produção brasileira arquitetônica na área de design e interiores.
Fiquei chocado com a explosão coletiva de equívocos! O verdadeiro desperdício cultural que é fazer um evento de tais proporções com resultado tão "under middle class", qualitativamente falando. Mas talvez o que eu não saiba é que o sucesso do evento esteja exatamente nessa parcela de consumidores ávidos por reconhecimento social. Gente que consome lixo, acreditando ser o luxo que os fará elevar-se no nível da pirâmide de desigualdade social brasileira, que na realidade é inescalável.
É uma pena que num país com tantos profissionais talentosos que lutam pelo reconhecimento e pela valorização da arquitetura e do design que traduzem uma identidade brasileira, o que acaba fazendo sucesso, sejam cópias de originais estrangeiros que enchem as páginas das nossas publicações especializadas. Mas essa história nos acompanha há anos, o que vem de além mar sempre foi melhor, como há 500 anos, com os espelhinhos e as bijuterias dos portugueses para a nossa indiada maravilhosa e maravilhada. A maioria de nós brasileiros, ainda vive com essa herança histórica de valorizar sempre o que vem de fora, negando e negligenciando as próprias raízes, o que na grande maioria das vezes nos faz merecedores de críticas maliciosas por parte dos nossos opressores gringos. Críticas essas que nos tornam objetos de descaso e até de riso. E com razão.
Não se trata de arrogância esses meus comentários apimentados, mas como profissional, é impossível calar ao ver arquitetos, muitas vezes com a responsabilidade de pessoas formadoras de opinião, apresentarem seus trabalhos de forma tão imatura. Profissionais que insistem nos clichês e nas tendências internacionais massificadas, fazendo apologia ao design de fora, utilizando móveis (muitas vezes cópias baratas, não certificadas de designers internacionais conhecidos), que não se encaixam na cultura e no modo de viver tropical brasileiro. Mas isso no Brasil infelizmente é válido e absolutamente impune, pois na nossa realidade o que importa é o ter e não o ser, ou melhor, o mostrar o que se tem.
E os equívocos continuam. Uma mostra de interiores numa das cidades brasileiras mais badaladas e visitadas da atualidade, exatamente pela sua natureza subtropical exuberante, clima agradabilíssimo, gente simples, e pela qualidade de vida que toda essa atmosfera combinada propicia, oferece para apreciação dos seus visitantes ambientes com descrições que eu faço questão de reproduzir: "nesse café inspirado em ambientes franceses, o desenho contemporâneo recebeu toques do provençal...". Ou ainda: "encontra reflexo nesse ambiente que celebra a arte do savoir vivre francês, utilizando soluções estéticas que lembram a atmosfera da Belle Époque parisiense", e seguindo com o absurdo obsessivo pelo estilo francês (mas sem correr o risco de perder o trem da modernidade): "o estilo Provençal – caracterizado pelo uso do branco, cores suaves e estampas floridas, com móveis levemente desgastados – é valorizado num ambiente que alia equipamentos de áudio e vídeo de última geração".
O pior de tudo é que a pieguice não se resume a homenagear a decoração francesa, ou os designers escandinavos e americanos como Arne Jacobsen ou Charles e Ray Eames (esses últimos presentes em um entre cada dois ambientes da mostra). Com o vastíssimo leque de talentos culturais brasileiros merecedores de nossas homenagens rasgadas, alguém teve o descontrole coquético de dar a um modelo fotográfico de cara bonitinha um ambiente inteiro com seu nome: "Paulo Zulu Office Spa", que em realidade não se sabe exatamente o que vem a ser.
E o absurdo não para por aí: Vocês conhecem alguém que tenha em casa um ambiente chamado "varanda da contemplação"? Ou que tenha tempo suficiente para descansar em seu "atelier de inspirações e ócio produtivo"? Ou alguém que tenha bom gosto (e dinheiro) suficiente para receber amigos no seu "boulevard das artes" ou na "sala de coleção e hobbies" esticando na "sala de degustação" antes de terminar a noitada de orgias na "piscina dos encontros", que diga-se de passagem, distribui displicentemente móveis estofados com estrutura de metal do dinamarquês Arne Jacobsen ao ar livre, sobre a grama verde e úmida do outono Florianapolitano? Então eu me pergunto: Quando o tempo se arma para chuva em Floripa, o povo tem que correr para colocar as poltronas Egg (que pesam cerca de 30 quilos cada), na garagem? Ou simplesmente deixam chover sobre o móvel, que em produção original certificada custa a bagatela de 5 mil Euros ou 17.500,00 reais? Bem de acordo com os padrões brasileiros de consumo, não?
Estarão os colegas arquitetos viajando na maionese, como a maravilhosa expressão popular brasileira nos permite colocar? Ou sou eu que estou fora do país há tanto tempo que não vejo mais o que todo mundo por aí anda vendo? Na realidade nenhuma dessas hipóteses é verdadeira. A explicação para esse deslumbre é a vontade intrínseca latente do oprimido igualar-se ao opressor. O velho e conhecido desejo do colonizado identificar-se com o colonizador. De pobre virar rico. De querer ser mais. De alavancar socialmente, ostentando objetos e estilos de vida que representem uma outra classe social a qual gostaríamos de pertencer.
A realidade presente no trabalho desses colegas, que infelizmente são a maioria, condena a produção arquitetônica mais apurada do ponto de vista de coerência concepcional e estética de outros profissionais à marginalidade. E o que poderia ser a cara do Brasil se torna privilégio de uma elite resumida, que compreende arquitetura como parte da vida e da cultura de um povo.
E para encerrar mais algumas máximas da descrição dos ambientes da mostra em Florianópolis:
"Mais que um simples banheiro, uma sala de banho ... para relaxar antes de dormir ou se informar pela manhã com TV, DVD e deck".
"A Piscina dos Encontros tem projeto que enaltece o requinte em peças de design à beira da piscina. Um luxo as duas cadeiras Egg, de Arne Jacobsen, na cor verde, sintonizadas com o verde da vegetação".
"O ambiente faz homenagem ao empresário e modelo Paulo Cézar Fahlubch Pires, o Paulo Zulu, por isso o projeto levou em conta a valorização da beleza aliada ao meio-ambiente".
... sic !!!
sobre o autor
Gilmar Iost, arquiteto radicado na Alemanha, Pós "Latu Sensu" em administração de empresas pela Fundação Getulio Vargas.