O abrangente livro de Fernando de Morais sobre a figura ímpar de Assis Chateaubriand nos conta como ele conseguiu montar em duas décadas um invejável acervo de obras de arte, com a ajuda do marchand e crítico de arte italiano recém-chegado ao Brasil, Pietro Maria Bardi, aproveitando-se de uma Europa semi-destruída do após-guerra. E o fez com recursos cavados à maneira de um Robin Hood, tirando dos ricos para dar aos pobres, das casas burguesas para um museu aberto ao público. Com persuasão ou intimidação, com festas ou com achaques, por bem ou por mal, Chatô foi conseguindo o dinheiro necessário às aquisições. E assim nasceu o MASP, de forma épica e tresloucada.
Lina Bo, esposa de Bardi, com ele chegada ao Brasil em 1946, projetou as primeiras instalações do MASP na rua Sete de Abril e coube também à arquiteta o projeto da sede definitiva: os primeiros esboços de 1958 para o terreno na avenida Paulista, no belvedere do antigo Trianon, serão bastante alterados até se chegar àquela que seria a solução definitivamente construída e inaugurada com a presença da rainha da Inglaterra, em 1968. Um projeto, desde sempre, polêmico; uma solução arrojada mas necessária; um edifício que são dois – um corpo elevado, outro enterrado; um muito visível – volume puro suspenso, isolado e transparente –, outro semi-escondido, acomodando-se gentilmente ao forte declive do terreno, quase querendo dissimular sua presença com a vegetação aquática de seus espelhos d’água.
Complementando o prédio singular, a solução proposta por Lina Bo Bardi para a exibição da coleção permanente, no segundo pavimento do bloco suspenso, foi radicalmente simples e altamente inovadora, combinando a tradição italiana de suportes muito bem desenhados com a transparência do vidro. Qual se fossem cavaletes dos próprios pintores, surpreendidos no ato de acabarem suas obras, os quadros ficavam de pé em meio ao salão, num arranjo que parecia aleatório mas que de fato pretendia ensinar, didaticamente, a ver. Cada obra é uma, mas não se dissocia do conjunto, e todas são arte, apesar das diferenças estilísticas. As informações ficavam atrás, no verso dos quadros, evitando o vício de primeiro ler a plaquinha do lado para saber o que se está vendo e, só então, olhar: Os quadros se apresentavam na sua inteireza, para serem apreciados como se o público fosse cúmplice do autor e passeasse por seu estúdio. Ver com o coração e a pele antes de ver com a lembrança do já visto ou com a secura intelectual do já sabido. Ver com plenitude, e não apenas consumir.
Mas tudo na vida muda: e os museus não são exceção. Nada mudou mais, no século 20, do que a idéia do que deva ser um museu. De templo das musas a depósito empoeirado de relíquias inúteis a centro cultural em permanente efervescência, todos esses papéis contraditórios foram atribuídos aos museus ao longo dos últimos cem anos. Hoje, raramente se vai a um museu apenas – ou sequer – para se ver seu acervo, por mais rico e precioso que este seja. E quase nunca é possível ter o vagar da lenta paixão, do flerte e das primeiras conversas, do toque tímido à crescente intimidade, do lento descobrir-se mútuo até se atingir o clímax do perfeito entendimento: na arte, como no amor, agora tudo é rapidez e obsolescência, desnudez e ausência de mistério, corpo sem alma, tesão sem carinho. Quem tem tempo para apreciar a arte como seria de justiça fazê-lo: como a manifestação mais desnecessária, e ao mesmo tempo mais imprescindível, do ser humano?
Ao invés disso, vai-se a museus, como se vai a parques temáticos, como se vai às compras, como se vai a qualquer parte: para se entreter e perder magnificamente o pouquíssimo tempo que nos sobra na luta diária da sobrevivência. Um museu atrai multidões, que devem ser adequadamente tratadas, industrialmente organizadas: comprar bilhete, entrar, arrastar-se em filas defronte às obras – sem demorar-se demais pois atrapalharia o tráfego – e assim, usufruir do grande jogo e do próspero negócio da cultura. Um admirável mundo novo que abandonou a visão da arte como assunto precioso de elite e pôs seu pé no chão das massas, que finalmente podem comer do fino biscoito do poeta. Pena que, desse jeito, ele tenha perdido grande parte do seu sabor.
Como qualquer museu, o MASP precisou mudar e se adaptar aos novos tempos. Nem cabe questionar se devia fazê-lo pois trata-se, certamente, de uma imposição inelutável: mudar ou morrer. Não é uma exceção: muitos edifícios das nossas cidades perdem seu uso original ou têm seu uso tão transformado que, de uma maneira ou de outra, precisarão sofrer acréscimos, alterações, modificações. Preservar o patrimônio é, também, dar-lhe um uso ativo, pois nada destrói mais um bem do que seu abandono. Seria um engano de graves conseqüências persistir em manter formas e usos ultrapassados ou impedir que elas sejam corretamente adaptadas ou atualizadas para novos usos.
Mas pode ser também um erro de graves conseqüências a tolerância fácil a toda e qualquer mudança: nem tudo o que é novo, por ser novo, é necessariamente bom. Quando se lida com um patrimônio não se deve temê-lo demais, a ponto de não poder encostar-lhe o dedo; mas não se deve desrespeitá-lo, e meter a mão sem cuidado, sem critério, sem intenções claras e, sobretudo, sem sabedoria. É a busca de equilíbrio sobre uma navalha de fio muito afiado, e dificilmente deixa de ser polêmica toda e qualquer intervenção sobre um bem patrimonial edificado. E quando se trata de uma obra do valor e da importância, brasileira e internacional, de um edifício como o do MASP, a situação ficará sempre, de qualquer maneira, crítica.
Seria bom se existissem fórmulas seguras para intervir. Não há. As normas, no caso, servem apenas para balizar procedimentos e estão, elas mesmas, sujeitas a transformações; indicam caminhos preferenciais ou descartam vias inadequadas, mas não podem, nem devem, apontar soluções. É preciso cuidado, mas é preciso coragem: com tibieza só se chega à mediocridade. E deve-se, no MASP, fazer jus à sua ousadia: a obra de Lina Bo Bardi, como a própria autora, é brava, bravíssima, sem contemplações, total. Nem por isso, menos amada pelos que dela usufruem. Veja-se o Sesc – Fábrica da Pompéia, outro aporte magistral da arquiteta, onde a reciclagem convive com o novo na base do contraste, onde os detalhes fazem toda a diferença, onde as pessoas são bem-vindas para fazerem o que quiserem e, mesmo, não fazerem nada. Como embaixo do vão livre do MASP: um gesto de liberdade macunaímica do direito à preguiça, do espaço do ser e estar, apenas.
Assis Chateaubriand conseguiu para o MASP, usando provavelmente seus métodos de sempre, um terreno singular e belíssimo – público – para ali instalar seu museu. Quando o acervo do Masp quase foi sequestrado por dívidas, salvou-o o dinheiro da república. Parte considerável dos custos da sua construção foram providenciados pelo poder municipal, público. O MASP, de fato e de direito, é um patrimônio de todos nós, paulistanos, brasileiros, cidadãos do mundo. Permitimos que ele seja administrado, mas não que ele nos seja tomado, nem que seja violado.
O MASP vem sofrendo, desde há alguns anos, mudanças e alterações. Várias delas com muita certeza são necessárias: reparos nas impermeabilizações, na estrutura, as mil-e-uma manutenções que qualquer edifício complexo precisa promover cotidianamente. De quebra, vem sofrendo outras alterações, nem tão necessárias, mas sim oportunas: uma mega exposição afastou os suportes originais dos quadros, exigiu equipamentos de segurança e melhorias na circulação, tudo provisoriamente definitivo, como sói acontecer com demasiada freqüência na nossa cultura cordial do deixa prá lá que amanhã a gente resolve isso melhor, e vamos ficando assim mesmo. O necessário vai assim legitimando o nem tanto, e por fim, sabe-se lá mais o quê, e de pouco em pouco chega-se ao muito. Um muito que não é uma totalidade, mas a somatória de partes fracamente conexas. E assim, uma obra que tinha uma proposta clara, mesmo se com eventuais deficiências – devidas muito mais às mudanças da vida do que a possíveis enganos de concepção – pode chegar a tornar-se uma proposta obscura, ou uma ausência de proposta, ou apenas um prédio. Esse, o grande risco que se está correndo, no caso do MASP.
Deve-se louvar, e não é pouca coisa, a iniciativa e a garra de seus atuais administradores, que vêem os problemas e saem a campo para enfrentá-los, com muita energia: batalham verbas, conseguem viabilidades, e fazem. Fazer é bom, e quem faz deve sempre ser respeitado. Mas pode também acontecer que tanta força, sem direção justa, esteja fomentando um engano histórico, que talvez as futuras gerações venham a lamentar. Tínhamos um Museu de Arte que era um edifício único no mundo, com um arranjo interior de grande originalidade. Temos agora um museu, que talvez funcione melhor (em termos: melhor em relação a que, exatamente?), mas também temos um edifício que pode já ter perdido parte de seu valor arquitetônico sem que, em troca, outro valor maior lhe fosse agregado.
Muitos e muitos museus foram reformados e ampliados, no mundo, nas últimas décadas. Os melhores exemplos são sem dúvida aqueles mais ousados. É o caso do Louvre de Pei, é nem tanto o caso, mais difícil, do Guggenheim de Nova York – exemplos não faltariam para nos estendermos e corroborarmos uma premissa simples: quando se trata de uma obra de arte única, a melhor solução é agir em grande estilo, e não no varejo. Viver é muito perigoso, dizia Riobaldo. Mas navegar é preciso.
Aceitamos as mudanças, elas são necessárias, e é preciso admití-las, ao menos como possibilidade a ser profundamente debatida. O MASP precisa viver e enfrentar o novo século, e isso talvez signifique que ele tenha que mudar. Mas o que não pode ser, o que não podemos aceitar – nós, o povo, os verdadeiros donos desse magnífico patrimônio de todos, que é o MASP – é que tudo se faça, mesmo que seja para o bem, mesmo que resulte bom e necessário, assim, desse jeito: sem debate, sem critérios explícitos, sem proposta, sem projeto. Ou, se os há, não estão ao alcance do conhecimento geral. Até porque parece haver um certo receio do debate aberto, fica-se no escuro – e isso nunca é correto. Parece haver temor de expor a questão porque até agora ela aconteceu de forma maniqueísta, entre os preciosismos excessivos de quem nada quer alterar de um lado enfrentando a prepotência e arrogância do faço porque posso, do outro.
Gostaríamos, todos, de acreditar que tudo vai pelo melhor dos mundos possíveis, e que o MASP será re-inaugurado tão íntegro como quando nasceu e tão renovado quanto é de seu direito. Mas como sabê-lo, se a discussão não está ao disponível aos simples mortais? E como garantí-lo, sem a boa ousadia que, de fato, o fez nascer?
Adendo, quatro anos depois
O texto acima foi escrito em julho de 2001, e publicado no jornal O Estado de São Paulo. Naquele momento, estavam para ser inauguradas uma série de obras de reforma então praticadas no edifício do Masp. Então, a programação do museu era um sucesso nacional e internacional: grandes exposições importadas, badalação explícita de sua diretoria na imprensa escrita, falada e televisiva, muito auê escondendo a pouca substância. Aqueles, como nós, que pensavam ser necessário ter mais cautela, menos pressa, mais critério, menos arbítrio, mais clareza, menos decisões de gabinete afetando o futuro desse patrimônio, éramos considerados empecilhos desagradáveis, moscas inoportunas. Tudo ia aparentemente pelo melhor dos mundos possíveis, e o brilho do sucesso ofuscava a visão clara.
Assim, nas vacas gordas, o faraó não teve a prudência de preparar o tempo das vacas magras e em quatro anos a situação parece ter se invertido: notícias jornalísticas dão conta da decadência da situação financeira do museu, concomitantemente à sua perda de prestígio. Será coincidência? Será, como querem alguns, conseqüência da vacuidade cultural da nossa burguesia endinheirada? Deve de ser, pois em vez do assunto ser o museu, agora a imprensa prefere badalar, de maneira excessiva e beirando o ridículo, um tema totalmente secundário – como foi, por exemplo, a inauguração de uma nova loja de departamentos que quase nenhum paulistano poderá freqüentar, sem nunca lembrar de dizer, sobre o assunto, o que interessa mesmo a todos os cidadãos: que em termos urbanos aquilo lá é um acinte, que em termos arquitetônicos trata-se de uma coisa de mau gosto fingindo que é uma coisa fina, que em termos culturais é um enorme e vergonhoso retrocesso. Será verdade então que venceu a mediocridade, e perdeu o museu? E que em vez de ir ao museu, prefere a burguesia gastar fortunas nos hiper-inflacionados preços das mercadorias daquele horrososo empreendimento arquitetônico?
Ou será, também, que o Masp atingiu o ponto inferior de uma curva descendente revelando um impasse inevitável, que vem a furo só agora, mas já se fermentava antes? O que tinha o Masp, que lhe falta agora? Ou, pior ainda: o que o Masp não tinha, há quatro anos, mas cuja ausência só agora fica clara? A resposta é complexa, mas pode ser resumida em uma palavra: faltava, e falta, um bom e duradouro projeto, projeto arquitetônico e projeto museológico, dando conta das necessárias mudanças no edifício e na instituição, mas fazendo-o com proposta, adequadamente e com a vontade de permanência e seriedade que só a ação ponderada pode almejar. E além disso, fazendo-os às claras, para que todos nós, os que somos donos desse patrimônio nacional, possamos saber como o estão a administrar.
Projetar, diz o dicionário, é atirar longe, arremessar, planejar. E projeto é um plano, um designio, um intento. Fazer sem projetar é atirar perto e talvez acertar, mas curto, fraco e com pouca duração. E mexer num edifício e numa instituição, sem projeto, pode ser possível para resolver este ou aquele problema imediato, mas sem maiores garantias de que os problemas mediatos e futuros sejam atendidos, muito menos resolvidos.
Como bem comentou recentemente em editorial da Folha de São Paulo o jornalista Mario Cesar Carvalho, um projeto atual para o Masp não pode ser o de propor fazer, ao seu lado, um prédio para se ver o mar – quando não se consegue, dentro dele, sequer ver bem o mangífico acervo ali exposto, porque a iluminação é péssima, o arranjo feio e a ambientação contrária ao espírito do prédio. Se era para mudar, só se fosse para ficar melhor, mas não foi o caso: mudou-se para pior e de quebra perdeu-se o valor de originalidade, único no mundo, da museografia proposta por Lina. Trocou-se seis por nada. E agora a administração quer passar para o prédio ao lado e do topo olhar a paisagem externa, talvez para não ter mais que conviver com o estrago interno. Em que isso pode beneficiar o museu?
O Masp continua sendo um patrimônio de todos: só que agora está numa fase difícil. Porém, convenhamos: quando estava bem de vida, não pedia nem dava satisfação a nós, povo. Será que vai conseguir um dia sair desse impasse apenas recolhendo as migalhas das lamentáveis torres de marfim pseudo-neo-clássicas? E mesmo se os abonados voltarem a dar dinheiro ao museu, resolve? Pois que o problema, de fato, é mais em cima: se vai ter verba, é para fazer o quê, mesmo?
nota
Texto originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2. São Paulo, 2 jul. 2001
sobre o autor
Ruth Verde Zein, arquiteta FAU-USP, 1977, mestre e doutoranda pelo PROPAR-UFRGS, professora da FAU Mackenzie, foi colaboradora e editora da revista Projeto (1983-96), é membro da CICA-Comitê Internacional de Críticos de Arquitetura. Tem mais de uma centena de artigos publicados em revistas brasileiras e internacionais bem como livros, sendo o mais recente “O Lugar da Crítica. Ensaios Oportunos de Arquitetura”, Editora Ritter dos Reis+Prolivros, 2001.